sábado, 23 de julho de 2022

NEM TE CONTO...

Ateneu Ubatubense - Arquivo Ubatuba


    Ultimamente tem se falado bastante acerca das narrativas, de como elas são reforçadas ou destruídas, qual a importância delas para os rumos da sociedade, do planeta etc. Eu me encontrava mexendo nas plantas quando ouvi alguém passando e gritando ali perto:  "Fala aí Irmão Torresmo!". Imediatamente um outro, o suposto Irmão Torresmo respondeu: "Fala, Ladrão de Internet!". 

    Essas falas, parece coisa boba, me direcionaram as reflexões. É bem possível que o que foi 'xingado' de Irmão Torresmo é crente, professa religião evangélica. O outro, ao ser classificado como ladrão de internet, deduzi ser um 'esperto' a viver acompanhando tudo no mundo virtual graças aos pontos eletrônicos bancados pelos outros. Mas...também pode ser um aplicador de golpes via internet. Pelo que eu ouvi das reações, o Irmão Torresmo não gostou muito de ter este apelido, ao passo que o outro pareceu se sentir orgulhoso em praticar alguma espécie de malandragem virtual. Ou seja, as narrativas desmerecem um aspecto e reforçam outro. Outro exemplo do cotidiano: é corriqueiro topar com adolescentes afirmando que estão faturando graças à venda de drogas. Isto não parece um estímulo a uma profissão execrada pela sociedade em geral? Acabei de ler um livro onde estava registrado: "Os Estados Unidos são os maiores compradores de drogas via fronteira com o México". Ou seja, de onde parte a maior repressão às drogas a nível mundial está o maior mercado consumidor dos tempos atuais. Quando eu comentei isto com um amigo, eis a reação dele: "Eu já sabia! Os ricos são os que estão no topo da cadeia consumista. Quer ver e comprovar? Dá uma volta na madrugada pela principais ruas do bairro, repare nos carrões que aqui adentram e adquirem os produtos nas mãos dos 'meninos', dos vendedores. É um movimento intenso, amanhece o dia". Isso tudo são exemplos de narrativas relativamente novas no universo caiçara. Outrora, o ritmo era outro, as necessidades eram outras, as ambições eram restritas porque os contatos com as novidades do mundo eram limitados. Na minha infância, a energia elétrica estava começando a se espalhar pelos bairros, as ruas eram escuras, a vida caiçara se envolvia entre a pesca e a agricultura porque o turismo ainda era fraco, acontecia em dois períodos do ano. (Agora é o ano inteiro!). Ou seja, tais narrativas compunham a vida de pescadores e roceiros, os causos reforçavam o nosso universo místico caiçara. Quando bem mais tarde, já na juventude, eu quis aprender o que a cultura científica (das universidades) dizia desse meu mundo, escutei o seguinte do professor Diegues:

   - Consideramos a pesca artesanal como sendo aquela em que os pescadores autônomos, sozinhos ou em parcerias, participam diretamente da captura, usando instrumentos relativamente simples. A remuneração  é feita pelo sistema tradicional de divisão  da produção em "partes", sendo o produto destinado preponderantemente ao mercado. Da pesca retiram a maior parte de sua renda, ainda que sazonalmente possam exercer atividades complementares. No entanto, eles se distinguem dos pescadores/agricultores ou de subsistência, cuja atividade principal é a agrícola e pescam principalmente para consumo familiar.  É, parafraseando disse Pedro Bandeira: "Devo muito aos livros e à escola".

     Resumindo: os tempos são outros, as narrativas são outras. Quais os desdobramentos das modernas narrativas (do Irmão Torresmo, do Ladrão de Internet, da Profissão Traficante etc.)? A  que modelo de sociedade elas servem? Quais narrativas de poder político elas reforçam ou destroem? A que reflexões, lições de vida, elas se prestam?

    Nem te conto o que acabei de saber agora, neste instante! Nem te conto...

Nenhum comentário:

Postar um comentário