Pitirão no sertão do Ubatumirim - década de 1970 (Arquivo Olympio Corrêa) |
Durante uma conversa com o
saudoso João Roberto, o assunto era misticismo. Falamos de um monte de coisas e
de pessoas, querendo chegar a uma explicação para nós mesmos. Por fim, definimos
que misticismo religioso é uma espécie de contato com uma experiência divina. Ou
seja, uma experiência libertadora muito boa. Mas logo em seguida ele, estimado
amigo da família afirmou: “O que define
uma experiência divina somos nós, no nosso cérebro. É algo que não tem ambição,
que quer amar uma causa justa sem medo de se entregar a ela, dando um
verdadeiro sentido à vida, se realizando. Então, resumindo, vemos que ao longo
da história da humanidade muitas pessoas contribuíram para a nossa definição de
divindade, de experiência divina hoje. É por isso que lemos e refletimos a partir
de escritos que descrevem suas vidas, suas ações e suas entregas de vidas; de
comunidades que toparam suas intuições e suas práticas. Dessas muitas pessoas e
grupos, nasceram as religiões. E nelas se nutrem até hoje! Porém, ao longo do tempo, o misticismo (no
viés religioso) foi contaminado pelo poder político e econômico, pelo desejo de
dominação; se fez discurso opressor mascarado de sagrado. A partir disso, os
registros deixados para edificação humanitária já não cumprem sua função”.
Não discordei dele. “É mesmo, João! Perfeito!
Gostei da sua fala!”.
Hoje, caso este amigo estivesse
vivo, diante da necropolítica instaurada (no governo do nosso país) e sustentada
principalmente por cristãos brasileiros, ficaria totalmente indignado. Há uma
contradição insolúvel entre essas práticas genocidas, excludentes,
perseguidoras etc. e os ensinamentos supostamente pregados por Cristo, razão da
sua existência. Perante isso, eu questiono é como esses cristãos estão
combinando atitudes ou práticas devastadoras dessas, notórias deste tempo de
trevas, com os ensinamentos dos Evangelhos que, teoricamente, deveriam sustentar
uma mística humanitária? Pode ser porque esses cérebros nunca alcançaram a
dimensão mística, nunca se fixaram nela. Nem têm uma convicção de amor,
bondade, justiça, misericórdia e acolhimento do diferente, do migrante, do exilado etc. Depois de ler nesses dias um parente cristão defender o
militarismo e os opressores do povo, lembrei-me de do único comunista da
História - caso acreditemos nos Evangelhos -, cuja
recomendação consta de “bem-aventurados
os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os
aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a
terra. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os
que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os
que são perseguidos por causa da justiça, porque dele é o reino dos céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo,
disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e
exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus. Do mesmo modo
perseguiram os profetas que vieram antes de vós". A minha atenção principal nesta mensagem é: por que
ele insiste na justiça?
Eu concluí que fome e sede de justiça, junto com
perseguição por causa da justiça é a tônica de uma mística para um mundo
melhor, onde as condições miseráveis desapareçam. Dividir é querer compartilhar os bens,
superar as injustiças sociais tão gritantes. Isto é divino! Coisa de comunista de verdade! “Cremos, de fato, que as primeiras
comunidades cristãs dividam tudo entre si e não havia necessitados entre eles?”.
É por isso que eu digo: ou a mensagem de
Cristo é mentirosa ou os cristãos são mentirosos, somente dizem que acreditam nos
Evangelhos e ficam repetindo um palavreado inútil. Os dizeres estão aí. Os atos
também! “Vamos acabar com esses comunistas!”; “O presidente é um homem
de Deus, um mito!”; “Prostitutas, gays e lésbicas merecem ser apedrejadas!”; “Preto
é inferior mesmo!”; "Quem disse que índios e pretos precisam de territórios respeitados? “Mais importante que a vida é a economia!”; “Só quem pode
pagar merece cursar uma faculdade. Pobre tem mesmo é de trabalhar!”; "Os direitos trabalhistas só atrapalham os lucros"....
Acredito que o misticismo da pessoa cristã deve
contagiar pela partilha. Partilha é justiça. Só é capaz de partilhar quem ama. Amor e
Justiça são, no meu entender, a base do misticismo que contagiou aquele grupo
judeu, uma minoria (pescadores, prostitutas, zelotas...) simpática à mensagem de Jesus, perseguida pelas autoridades religiosas e
romanas há dois milênios. Os misticismos mais antigos, o misticismo budista, o
misticismo islâmico e os outros tão caros à Humanidade também se norteiam
assim. Que mística cristã pode haver em
louvar o autoritarismo, o privilégio de classes, o poder de matar os mais
pobres, de diminuir os seus direitos? Que mística cristã é essa de causar um inferno aos vizinhos e
parentes? Que mística cristã é essa de se conformar com as injustiças, de
crucificar quem persegue a justiça? Que mística é essa de abraçar a banalidade
do mal?
Por fim, se é verdade que Jesus recomendou ao jovem
rico a se desfazer de suas riquezas e repartir com os pobres para
alcançar a verdadeira felicidade, devemos repensar nossas concepções de vida, nossas ambições. “Ah! Você é comunista!”. Pode ser por aí, mas... “Comunista só Cristo, caso aquilo que
escreveram acerca dele for verdadeiro. Eis a mística dele. Se for assim, ele é
Caminho, Verdade e Vida para a felicidade plena”. Eis a força do misticismo das comunidades de
caiçaras-pescadores onde me gerei. Eis a mística de tanta gente querendo se
unir, festejar e preservar nossas riquezas culturais e ambientais. O que
seríamos sem a busca de superar os desafios em comunidade?
Nenhum comentário:
Postar um comentário