sábado, 25 de julho de 2020

ÁGUA QUE SE AJUNTOU COM O MAR


Patobi servindo suco (Arquivo JRS/Luzia)


Venâncio era um homem muito bravo, assim diziam. Eu nunca tive a tentação de provar se era verdade. Falavam também da dose considerável de ruindade nele. Mas deixa para lá, pois agora, “entre mortos e não mortos, tudo é passado, água que passou e se ajuntou com o mar”. A verdade é que ele serviu no Exército Brasileiro.    Depois de aposentado, fez a sua igreja (Evangélica) num cômodo grande da própria casa, onde atualmente funciona uma sorveteria popular. Foi o terceiro lugar de oração do bairro: a primeira era a capela católica, numa esquina da mesma rua, do lado oposto  da mesma quadra; a segunda, na mesma estratégia (de ser na própria casa), estava no Belmiro Barreto (Cristã do Brasil). 

         O pai do Venâncio, “gente brava também”, foi um fervoroso católico até o fim da vida. Era do tipo que não perdia nenhuma oração na capela. “Me impressionava ver, no primeiro banco, em todas as rezas, aquele homem imenso compenetrado nos rituais. Ao findar, ele cumprimentava os mais próximos, pegava o chapéu e saía na maior respeitabilidade. Após passar pela porta, se voltava para o altar e se benzia. Em seguida, ajeitava o chapéu na cabeça e lá se ia com tranquilidade, na maior segurança, para a sua casa distante apenas duzentos metros dali”. Estava sempre sozinho. A sua esposa seguia a mesma religião do filho.

                Certa vez, se referindo à igreja do Venâncio, o finado Mané Fialho me contou: “Sempre o Venâncio está tentando me converter. Sempre, sempre, sempre.  Diz que Deus vai me tirar dessa bebedeira, vai me dar um bom emprego e coisa e tal. Mas eu não quero saber disso porque eu nasci católico e vou morrer católico. Deixa para lá. Me dá uma pinguinha aí, Zezinho. E capricha na dose!”. Bebia demais esse filho do bondoso Dito Graça.

                Mané Fialho e seo Zé Barrigudo eram os primeiros fregueses do bar onde eu trabalhava. Diziam que precisavam logo cedo de uma “mardita” para deixar de tremer. Num desses momentos matutinos, ele contou: “Na noite passada, quando estava indo para a casa do meu pai, passei pela igreja do Venâncio bem na hora do culto. De longe escutei uma barulhada: eram choros e gritos que vinham lá de dentro. Aquilo me assustou, mesmo estando bem chapado de riopedrense. Então perguntei para o rapaz, um tal de Firme, que estava de porteiro. Eu queria saber o que estava acontecendo. ‘Por que tanto barulho? Que choradeira é essa aí dentro?’ Ele tranquilamente respondeu: ‘Não é nada não, seo Fialho. Tá tudo bem. É só Jesus operando, não precisa se assustar’. Então... acho que arregalei ainda mais os olhos e disse assim: ‘Nossa Senhora! Deus me livre! Pelo desespero do pessoal, ele está operando sem anestesia!’.  Depois disso continuei o meu caminho para descansar um pouco”.   Eu e  seo Zé Barrigudo rimos até.

         Na semana seguinte me encontrei com o Patobi (padrinho Tobias), em um passeio com a criançada até a praia da Caçandoca. Não teve como não deixar de contar a ele a história. Demos boas gargalhadas com a prosa do Mané Fialho. “Pode Jesus operar sem anestesia?”. Assim, sempre sorrindo, gracejou o querido Patobi. Agora ele também é “água que se ajuntou com o mar”.

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