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Alcides Bambá tratava a minha mãe
como prima. Nós, os filhos, éramos os primos. Natural da ilha do Mar Virado,
era filho da Maria Balbina, irmã da Nhanhá Gaidinha, segunda esposa do Nhonhô
Armiro. Explico agora: do primeiro casamento nasceram vovô Armiro e tio
Genésio. Do segundo, com a Gaidinha, nasceram Salomão, Clemente, Salvador e
Maria. Depois, falecida a segunda esposa, Nhonhô continuou viúvo até a morte. Esse
pessoal do Mar Virado era negro e mestiçado,
de origem escrava. Dizia o Alcides: “Lá
quem não era preto, era pardo. Com o tempo foram se casando e se mudando para
outros lugares”. Eu escrevi em outra ocasião que os meus parentes da praia
da Fortaleza tinham roças na mesma ilha por não ter saúva, a praga das lavouras.
Ou seja, eles atravessavam remando aquela distância e lá passavam dias
trabalhando a terra. Assim garantiam a produção para a subsistência.
Eu conheci o Alcides por volta dos
oito anos, quando a minha família foi morar na praia do Perequê-mirim. Era funcionário
público, trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem (DER), cuidando da
estrada que liga Ubatuba a Caraguatatuba. Uns dez anos depois se aposentou.
Tinha um ponto fraco: era viciado na pinguinha. Por adorar prosear, eu escutei
muito dele a respeito da nossa família, desse ramo do Mar Virado. Também me
estimava, pois aceitava as minhas broncas quando eu notava ele estar além da
conta, mas ainda insistia em “mais umazinha, primo Zezinho”. Foi do Alcides
que eu escutei a respeito do Bito Carranca.
“Bito Carranca morreu faz tempo, de velho. Era bem mais velho que eu. Também morava no Mar Virado, perto da Pedra Lanhada.
Naquele lugar nasceu e morreu. Não era longe da nossa casa. Aquilo tudo era o
nosso lugar! Foi afilhado de fogueira do papai. Ele tinha esse apelido porque, na proa da
sua canoa, havia uma carranca entalhada. Uma careta medonha! Até hoje não sei
dizer se era um bicho ou uma mistura de gente com bicho. Só sei que eu sentia
medo de ficar olhando aquilo e depois não conseguir dormir à noite, de ter
pesadelos. O Bito dizia sempre que aquilo servia para espantar os espíritos de
maldades que pairavam sobre o mar. Acreditava que por isso nunca aconteceu nada
de ruim com ele no mar. Num serão, no porto dele, um de nós lhe perguntou de
onde vinha a crença que aquela cara feia podia ser a livrança de sinistros, de
infortúnios no mar. Foi quando eu escutei ele explicar que o seu bisavô,
escravizado em Terra da Guiné, na África, do outro lado do mar, foi trazido no
único navio daquele tempo que não morreu nenhum preto no mar, sem a precisão de
abandonar corpos para os peixes bravos. Era uma embarcação de porte médio, bonita, por
nome de Capitão africano. Alguém da roda, acho que meu primo João Batengo, quis
saber porque não aconteceu nenhuma ruindade aos pretos embarcados, porque
ninguém morreu. A razão de tão boa travessia, de acordo com o Bito, era pelo mar
ir sendo aberto por uma grande carranca de proa do Capitão africano, medonha de nem poder ser
descrita, capaz de manter os maus espíritos afastados, só assistindo a navegação. E, continuou ele, desde que tiveram
a primeira canoa, faz parte dos costumes da família manter uma carranca
parecida. O pai dele era muito bom em entalhes; foi quem fez aquela da sua canoa que
estava ali perto, no rancho. Pode ser mesmo que fosse verdade. Decerto era isso
mesmo, mas nunca mais vi ninguém ter uma criatura feia entalhada em uma canoa.
Eu não teria coragem disso. O Bito Carranca era casado com uma prima do meu pai, mas nunca tiveram filhos. Os dois, já faz tempo, estão sepultados no nosso cemitério, na ilha”.
Em tempo: Alcides detestava o
apelido de Bambá. O motivo? Pode ser que
eu conte um dia.
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