segunda-feira, 13 de abril de 2020

ELES SE VIRAM!


 
Peixes na bacia (Arquivo JRS)

         Olhei os peixes ali perto, pensei em nossas manhãs caiçaras de outros tempos, no café com peixe e farinha de mandioca logo cedo. Senti os cheiros passando pelas frestas, entre barro e madeira, se esvaindo pelos vãos das telhas em direção ao céu, driblando as folhas de bananeiras que pareciam sufocar a casa. Os estalos do fogo, onde debaixo do fogão uma galinha aninhava seus ovos, pediam atenção: “Não deixe queimar porque carvão não presta pra comer no café”. Era o alerta de alguém ocupado com outra coisa. Em volta da chapa, para depois adoçar a boca (porque o sal se sobressaía no peixe), as bananas nanicas assavam aos poucos. "Benção, mãe". E um a um iam despontando na porta do corredor, deixando as camarinhas, esfregando os olhos que enfrentavam a claridade. “Ande logo! Já tem gente passando pra escola!  Ligeiro!”. E lá íamos nós, molhando as canelas no orvalho frio, com um caderno cheio de 'orelhas', um lápis e uma borracha dentro de um saco plástico. Uma carreira de bastão marcava a última etapa do caminho, a subida.  Ali perto tinha um coqueiro, onde moravam os morcegos brancos. Eu sempre estava entre os primeiros a chegar porque queria brincar um pouco antes da professora nos chamar. A maioria dos meninos adorava subir nas árvores; a maioria das meninas jogava amarelinha assim que chegava. De vez em quando farejávamos uma fruteira mais afastada, e, como famintos de dias, até as verdes se iam. De repente uns gritos: “A professora tá chamando, a aula vai começar!”. Era uma corrimaça só.

                Nossa escola, aquela que me acolheu na primeira vez, era num começo de morro. Na verdade, era a casa da tia Martinha, do falecido tio Crode. Tio Crode era tio Cláudio, irmão do nhonhô Armiro (hoje se diz bisavô). Cláudio, o neto dele, estudava comigo, pois temos a mesma idade. Até hoje é um grande parceiro, mas mora no Rio de Janeiro desde 1981. Ele - danado! – entendia rapidamente as coisas, logo estava lendo e fazendo continhas. E me ajudava porque percebia que eu sempre me enroscava em alguma lição. “Você não terminou ainda, primo?”. Era notório que não. “Estou primeiro desenhando esta abelha que achei muito bonita”. E vinha a professora vendo os exercícios, dando vistos, parabéns e broncas. “Por que o ‘senhor’ não fez ainda?”. E eu me envergonhava, como se todo mundo estivesse olhando para mim e dando risada. No dia seguinte, como era custoso enfrentar novamente a vida escolar! Só que eu sabia o quanto era importante saber ler e escrever. Qualquer embalagem em cima da mesa era um desafio a ser superado. “O que será que está escrito nela?”. Me lembro bem da lata de leite que tinha umas letras maiores e uma vaquinha malhada. Um dia chegou para o café o primo do vovô, o Mané Bento (que também nunca soube ler!). Ao me ver ali, olhando a lata enquanto dava a desculpa que o café estava muito quente, ele perguntou: “Sabe ler, menino?”. Eu só balancei a cabeça dizendo não. “Pois saiba que está escrito: a vaca malhada da Carmelina. Logo você vai aprender na escola, você vai ver!”. Acreditei nele até no dia em que vi na casa da tia Carmelina uma lata igual na mesa da cozinha. Mais tarde, chegando na lição do macaco, aprendi a decifrar o enigmático objeto que me desafiava de cima da mesa, fazia tempo: Leite MOCOCA.

                Num entardecer, escutei a mamãe dizendo para o papai: “As crianças estão com dificuldades na escola, o Zezinho tem até faltado sempre”. E a resposta dele? “Eles têm de estudar. Eles se viram, pode deixar. Eles se viram, você vai ver!”. E nós nos viramos! A lição que ficou é que nunca devemos nos conformar e ceder às dificuldades. E quantos, neste momento, estão até mesmo sem as mínimas condições para estudar? Ou pior, escutando: "Estudar pra quê?". Certamente nunca perceberão que o sistema dominante está planejado para ser assim: a maioria deve ser apenas trabalhador, proporcionar riquezas à minoria. Lembro-me do dizer tão comum quando se reclamava da falta de mistura (carne, ovo, peixe...) na comida: "Não reclama não. O que enche a barriga é feijão com arroz". É, estudar pra quê? 

              Entendeu tudo até aqui? É por isso e muito mais que continua sendo importante estudar!

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