Tempo de criança (Arquivo Tio Marcelino) |
Meu avô Estevan, pai do meu pai,
órfão total no início de século XX por causa da gripe espanhola, era tão
simples como a vida caiçara do seu lugar, uma praia por nome de Caçandoca, no
sul do município de Ubatuba. Ele adorava contar histórias, de preferência nos
serões e no jundu, naquele momento do ritual de se despedir do dia olhando o
mar, quando o dia vai se apagando e a as ondas começam a
brilhar conforme a claridade da Lua e das estrelas. Também nos encantava em
muitas ocasiões sentado num banco, debaixo do abacateiro imenso do terreiro, na
praia do Sapê. A criançada, nessas ocasiões, rodeava o vovô ou o imitava no seu olhar lá longe, para lugar nenhum, como se
encontrasse com as imagens daquilo que ia falando. Hoje é a história da onça do
Cedro.
“Numa
ocasião, faz muito tempo, no cisqueiro de alguém, na praia do Cedro, vizinha da
Deserta, de onde veio essa gente dos Lopes, apareceu uma onça acompanhada de
uma oncinha. Assim que a cachorrada embafustou, a grandona correu, mas a
pequena, do tamanho de um gato grande, ficou e se afeiçoou ao pessoal. E a onça-mãe
nunca mais se viu. ”. Quando um de nós perguntou a razão disso, vovô continuou:
“É que ela, a onça velha, enxergava
longe, sabia que os homens têm mais chances nesta vida, conseguem se sair
melhor. Assim, por parte do pai da família, a oncinha foi criada como todo
mundo era criado naquele tempo, aprendeu de tudo e se mostrou muito sabida,
merecendo agrado em tudo aquilo que se atrevia fazer. Respeitava e era
respeitada por todo mundo. Toda gente dali gostava dela”. De repente, uma voz: "Como assim? Ela era onça ou era gente?” Ele continuou desse ponto: “Era bicho-gente. Só que um dia, já tendo
corrido bastante tempo, apareceu um homem com uma faca enorme, a tal de espada,
viu no que tinha se transformado a onça e se irou contra quem estava mais perto.
Se enfureceu, levantou aquela medonha arma e já ia desferindo um golpe no pai
da família, também pai da onça, né? Ele não reagiu, pois só sabia que não tinha
feito nada de mal, além de alimentar e ensinar tudo aquilo que foi possível à
oncinha. Então era morrer, ué! Nesse momento, contam os mais antigos, a espada
caiu e o estranho que o ameaçava caiu no chão, de joelhos, agradecendo por tudo
que havia feito. Na verdade, criançada, aquele homem era a mãe da onça, aquela
que correu dos cachorros e nunca mais voltou. Ela se desarmou porque enxergou a
bondade e a verdade naquele momento, naquela pessoa”. Depois de um
silêncio, a pergunta: “E aí, o que mais
aconteceu?” O vovô, olhando para nós, tranquilo como sempre, encerrou: “Mais nada, ué! Sempre escutei que todos
dessa história morreram de velhice, no Cedro, numa grande família. Só sei dizer
que o lugar do pescador que acolheu a oncinha sempre foi ocupado por alguém,
nunca ficou abandonado. Hoje [por volta de 1971], quem mora lá é o Lindo Lopes,
primeiro marido da Maria da Barra, da Fortaleza. Um dia, se houver chance,
perguntem a ele a respeito da onça que morou naquele lugar. É capaz de se recordar de mais coisa ainda! Sei que ele está muito doente, talvez nem dê tempo de
vocês especularem mais desse causo. É assim... a vida passa... e o que sabemos vai
virando cinzas. O que fica é o espírito das coisas pairando por aí, sendo a razão de continuar vivendo e contando a respeito delas”.
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