sexta-feira, 17 de abril de 2020

A ONÇA DO CEDRO

Tempo de criança (Arquivo Tio Marcelino)


                Meu avô Estevan, pai do meu pai, órfão total no início de século XX por causa da gripe espanhola, era tão simples como a vida caiçara do seu lugar, uma praia por nome de Caçandoca, no sul do município de Ubatuba. Ele adorava contar histórias, de preferência nos serões e no jundu, naquele momento do ritual de se despedir do dia olhando o mar, quando o dia vai se apagando e a as ondas começam a brilhar conforme a claridade da Lua e das estrelas. Também nos encantava em muitas ocasiões sentado num banco, debaixo do abacateiro imenso do terreiro, na praia do Sapê. A criançada, nessas ocasiões, rodeava o vovô ou o imitava no seu olhar lá longe, para lugar nenhum, como se encontrasse com as imagens daquilo que ia falando. Hoje é a história da onça do Cedro.

                “Numa ocasião, faz muito tempo, no cisqueiro de alguém, na praia do Cedro, vizinha da Deserta, de onde veio essa gente dos Lopes, apareceu uma onça acompanhada de uma oncinha. Assim que a cachorrada embafustou, a grandona correu, mas a pequena, do tamanho de um gato grande, ficou e se afeiçoou ao pessoal. E a onça-mãe nunca mais se viu. ”. Quando um de nós perguntou a razão disso, vovô continuou: “É que ela, a onça velha, enxergava longe, sabia que os homens têm mais chances nesta vida, conseguem se sair melhor. Assim, por parte do pai da família, a oncinha foi criada como todo mundo era criado naquele tempo, aprendeu de tudo e se mostrou muito sabida, merecendo agrado em tudo aquilo que se atrevia fazer. Respeitava e era respeitada por todo mundo. Toda gente dali gostava dela”. De repente, uma voz: "Como assim? Ela era onça ou era gente?”  Ele continuou desse ponto: “Era bicho-gente. Só que um dia, já tendo corrido bastante tempo, apareceu um homem com uma faca enorme, a tal de espada, viu no que tinha se transformado a onça e se irou contra quem estava mais perto. Se enfureceu, levantou aquela medonha arma e já ia desferindo um golpe no pai da família, também pai da onça, né? Ele não reagiu, pois só sabia que não tinha feito nada de mal, além de alimentar e ensinar tudo aquilo que foi possível à oncinha. Então era morrer, ué! Nesse momento, contam os mais antigos, a espada caiu e o estranho que o ameaçava caiu no chão, de joelhos, agradecendo por tudo que havia feito. Na verdade, criançada, aquele homem era a mãe da onça, aquela que correu dos cachorros e nunca mais voltou. Ela se desarmou porque enxergou a bondade e a verdade naquele momento, naquela pessoa”. Depois de um silêncio, a pergunta: “E aí, o que mais aconteceu?” O vovô, olhando para nós, tranquilo como sempre, encerrou: “Mais nada, ué! Sempre escutei que todos dessa história morreram de velhice, no Cedro, numa grande família. Só sei dizer que o lugar do pescador que acolheu a oncinha sempre foi ocupado por alguém, nunca ficou abandonado. Hoje [por volta de 1971], quem mora lá é o Lindo Lopes, primeiro marido da Maria da Barra, da Fortaleza. Um dia, se houver chance, perguntem a ele a respeito da onça que morou naquele lugar. É capaz de se recordar de mais coisa ainda! Sei que ele está muito doente, talvez nem dê tempo de vocês especularem mais desse causo. É assim... a vida passa... e o que sabemos vai virando cinzas. O que fica é o espírito das coisas pairando por aí, sendo a razão de continuar vivendo e contando a respeito delas”.

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