quarta-feira, 29 de abril de 2020

NÃO É PARA VOCÊ!


Vai, enfrenta o mar, amiga! (Arquivo JRS)

Homens e bichos (Arquivo JRS)


                Dias atrás, escutando o valoroso Miguel Nicolelis (Nicolelis Night News), fiquei sabendo o quanto foi importante a sua vó materna na sua formação. Quantos têm uma vó assim!?! “Eu tinha todo um quintal, bichos, livros, televisão...Eu era o rei da casa! Em tudo a minha vó Lygia me apoiava e incentivava, inclusive na decisão de ser cientista após terminar o curso de medicina”. Assim, nós temos este grande cientista, capaz de contar boas histórias, tal como a sua mãe Giselda Laporta Nicolelis. Vale a pena conferir!

                Comecei dessa maneira porque no meu mundo, assim como no seu, quantas vezes não escutamos frases deste teor (“Não é para você!”)? Geralmente quem diz coisa assim está na defensiva (porque teme concorrência, tem “culpa no cartório”, acha que pode continuar se aproveitando dos outros, quer se redimir desmerecendo o outro etc.). Na sociedade, desde a família até o governante, é emblemática essa frase.

Não é para você porque é para poucos, os escolhidos? Ou por que, tendo isso você pode se destacar muito, ganhar mais autonomia? Será ainda porque, suas ações, tanto pretéritas quanto ainda hoje, são contraditórias aos princípios  de justiça, de bondade? E se, na verdade, a pessoa que dar um golpe maior, bem mais baixo do que o anterior, deixando outros a só ver as ondas na praia? Ah! Quantas possibilidades ainda são possíveis para quem afirma tal frase?!?

                Minha vó Eugênia nunca deixou de ser uma testemunha de respeitar, de acolher as pessoas e de ouvir as suas opiniões. Nunca fui capaz de imaginá-la dizendo “não é para você”. Na sua simplicidade, ela se abaixava para nos escutar e para contar histórias. Na sua confiança, ela nos levava ao trabalho ao redor da casa, na costeira e na roça. E como incentivo, nos deixava fazer aquilo que estava fazendo. Assim aprendemos a colher café, secar, pilar para destacar a casca, torrar e moer; escolher as palhas para as tranças de chapéu; cuidar da criação (galinha, porco...); consertar (limpar) peixe no rio etc. etc. Meus pais também, vendo a teimosia em mim, deixavam margens para iniciativas. “Então tenta, vai! Faz do seu jeito!”.

                A vovó, bem diferente da vó do Nicolelis (do centro da capital paulista) que até tocava piano, adotava os mesmos princípios: incentivar os pequenos, escutar os mais novos. Hoje, se consigo ser ainda desafiado a melhorar o meu ser e o mundo, reconheço que devo me espelhar em exemplos que seguem, em seus devidos papeis, os princípios da minha vovó de nos valorizar, de nos estimular. Gente assim, tal como o Nicolelis, jamais dirá: “Não é para você!”. Obrigado, doutor, pelo bom exemplo!

domingo, 26 de abril de 2020

QUANTO VALE?

Praia Vermelha- Ilhabela (Arquivo Rê)
Cada canoa tem a sua história e o seu contexto de comunidade, de atividades, de amores, de conflitos contra a cultura que a criou etc. Hoje, a inspiração do Roberto seguiu neste rumo. Rema, amigo!

uma canoa feita do cerne do cedro
dura uma vida toda
carrega rede
gente, peixe

e também o Meu amor
sentada na proa
sorrindo pra mim
com as mãos no bordo
debruçada sobre imensidão
tão gentil
alcança o fio d'água
com gesto de suas mãos
de dedos compridos
que escorrem o mar
azul anil
como se essa fosse a essência do tempo
a própria dilatação da vida

uma canoa feita do cerne do cedro
dura uma vida toda
carrega rede
gente, peixe

leva
traz
dá condição

e uma só já basta

convívio indecifrável
de gente com um pedaço de pau
que na lógica do mercado
não existe
e nem tem aceitação

quanto vale a puxada
como se paga o mutirão?
E se tem balança
alguém pergunta
quanto pesa o meu quinhão?

Um tabuleiro de peixe
igual uma saudade
e o sorriso do meu amor
são medidas tão reais
quanto o palmo e a braça
ou discurso Brutal da propriedade

que dizima

Praia do Itaguá (Arquivo JRS)

quanta família se desfez quando ditaram valor na terra
por causa de metro
na precisão dura da cerca?

quanta família se desfez quando ditaram valor na terra?
quando atravessaram rodovia no quintal
na roça
no rancho?

no cotidiano de seus jardins
atravessaram uma rodovia que
carrega gente
leva
traz

e se uma só não basta
duplica-se

sábado, 25 de abril de 2020

É DA NOSSA NATUREZA


 
Galhetas, onde Ubatuba faz divisa com Caraguá (Arquivo JRS)
Roberto , bisneto do Velho Henrique e da Judith, da praia da Enseada, expressa que é da nossa natureza ter a Natureza em nós. Beleza, amigo!

Dentro de nós mesmos
Não estamos
Nem sequer permanecemos

Sem entender que
A vida é como uma ressaca
De estranhos acontecimentos de uma manhã tão cinza
E fria
Como o concreto
Mas sem a sua dureza
Ou forma fixa

A chuva fina que cai no começo da primavera
É o peso que enverga os galhos do Ingá
E amolece a terra
Onde a Sabiá caça despercebida
A terra molhada é a vida explodindo.
Pelos cantos crescem ervas daninhas
Mais verdes do que a baía do Flamengo
Ou o manto da Saíra.

Uma manhã de Sudoeste
É a vida te lembrando
Que ela é líquida
Escorre em cada fio d’água
E mesmo que isso lhe tome tempo
Infiltra

E enche as gamboas
E transbordam os rios
Que redefinem suas margens
Em si mesmados corpos d’água
Ainda te servem. Frágeis memórias
De que os rios que correm para o mar
São os mesmos que correm em suas veias
E que a violência do mar grosso
Invadindo o Lagamar
É o alimento específico da areia

sexta-feira, 24 de abril de 2020

SOMOS ESTRELAS

Helena, minha sogra (Arquivo JRS)


                Nascemos após um breve tempo aninhados no útero quente de uma mulher. Ela se torna a nossa mãe. Coisa maravilhosa mostrar ao mundo um novo ser! Não é à toa que as primeiras divindades à nossa imagem e semelhança eram femininas!

                Uma vez neste mundo, começa a nossa luta para manter a vida. E vale a pena lutar! Um ditado dos antigos diz: “Se a morte é um descanso, prefiro viver cansado”. Vamos driblando a morte, criamos cultura para adiá-la ao máximo, investimos na ciência neste ideal:  ter uma vida feliz. Mas a morte vem porque ela é parte da vida. Cada um de nós é uma estrela: nascemos, alcançamos um momento de maior fulgor e vamos perdendo energia, se apagando.

                Tal como uma estrela, um desses corpos brilhantes que se irmanam com o Sol no infinito espaço sideral, de vida alimentada nós nos tornamos alimentadores de vida. E geramos outras vidas! E essas vidas, um dia dependentes de nós, gerarão outras vidas... e outras... e outras... Nossas energias se esvaem em outras energias, chegam a um fim aparente que chamamos de morte. Na verdade, elas tinham uma função e a cumpriram. Se bem ou mal é apenas uma questão moral.

                Ontem a minha sogra completou parte de seu trabalho. A minha Gal, bem como seus irmãos, netos e netas, herdou parte dessa energia que se compôs, se espalhou e agora retorna aos braços da Mãe Terra. Como todo ser vivente, os elementos provenientes do chão voltam a enriquecer o chão depois de espalharem um volume de energia indizível pelo ar. A vida é um milagre assim como a morte é o sentido quase derradeiro desse milagre, porque a última razão está a cargo dos que continuam viventes, pois preservar a memória é continuar recebendo energia dessa vida que se foi à outra condição. Mas é energia! Quem não continua se espelhando em tantos outros que já não estão presentes fisicamente? De vez em quando dou uma despertada para pensar: “Os avós que tanto admirei emprestam seus nomes à Maria Eugênia e ao Estevan José, neles continuam como energia... A minha mãe me transmitiu o desejo de viajar, de prestar atenção nas falas de todos... O meu pai me ensinou os ofícios de pedreiro e carpinteiro, de buscar os sinais da natureza... E de onde vem as habilidades da minha Gal e as energias que recebo dela? Grande parte nasceu das energias dessa mulher que a gerou!".

É isso! Somos estrelas, mas nosso apagão é aparente! Viajamos num sentido, mas continuamos a viagem com outras luzes! Somos estrelas, ajuntamos energias para depois dispersá-las em formas de vidas. No céu estrelado, cada estrela tem a sua distância de nós, mas todas juntas, brilhando de seus lugares, resultam no nosso encantamento! Repleto de orgulho da minha Gal, tenho certeza que a dona Helena fez bem a parte dela!

terça-feira, 21 de abril de 2020

VOZES NA ESCURIDÃO

Baguari de fora (Xilogravura minha- JRS)


                      Napoleão, grande amigo! Parabéns!

                Tal como os nossos mais antigos, os tupinambás que habitavam este território caiçara, nós também temíamos a escuridão. Sempre havia uma assombração nos espreitando, um bicho da noite que podia nos atacar, um coisa-ruim a soltar seu cheiro de enxofre a qualquer momento pelos caminhos. A escuridão era para ser evitada. “Só gente ruim, com maldade, prefere a escuridão”, ensinava a mamãe.

            Crescemos nos apoiando nessa moral que continua em nossos traços culturais. Porém, fomos vendo que a escuridão faz vítimas, que elas clamam sempre à espera de ajuda quando não desaparecem de imediato. Constatamos que, apesar de alertados, muitos caíram no lado ruim, se aliaram com gente que já estava na escuridão oprimindo os mais simples, acabando com comunidades inteiras bem próximas de nós. “Se as portas são muitas, também são muitas as possibilidades de se perder, mas os caminhos são só dois: o do bem e do mal”, diria o saudoso tio Clemente. Infelizmente para alguns eu preciso dizer:“Eu já não posso considerar a nossa amizade porque, claramente, seus discursos e suas práticas estão favoráveis aos que habitam nas sombras”.

            Não é de hoje que pessoas decentes ousam enfrentar a escuridão, denunciam as forças do mal responsáveis pela destruição da cultura, do nosso povo caiçara. Relatos e imagens são publicados constantemente a favor do reerguimento, do resgate de nossos valores. Eu só tenho a agradecer por pessoas que estão enraizados do lado da luz e contribuem para desmascarar o lado da escuridão. Hoje, acordando neste pensamento, fui buscar um texto da valorosa Priscila Siqueira. O título é:  Vomitando sangue, do livro Genocídio dos caiçaras, publicado em 1984.

Poluição do mar, expulsão da terra, caminhos centenários fechados por cancelas e guaritas. Agora é assim, na ilha da Madeira, Itaguaí, no litoral sul do Rio de Janeiro, desde que há 18 anos a Metalúrgica Ingá se instalou no lugar. A empresa é responsável por 50% da produção nacional de cádmio  - lançando somente por uma de suas chaminés duas vezes mais zinco e 30 vezes mais cádmio do que é permitido por lei, conforme relatórios da Feema.

            Com isso, o mangue situado na área estuarina, que era nascedouro natural de camarões, caranguejos e mexilhões, é agora uma imensa lagoa de águas lamacentas e mortas. E os peixes, segundo os pescadores da ilha, “só dão muito longe da praia”. Com isto, “só os que têm barco muito grande podem ir buscar os peixes”.

            Quando a Ingá chegou na ilha da Madeira tratou muito bem os pescadores que aí viviam. Manuel Francisco da Silva, 74 anos, nascido na ilha, neto de madeirenses, um dos mais velhos do lugar, lembra-se do “médico japonês que a empresa trouxe para nós  - era uma beleza. Ela trouxe até um caminhão de remédio”.

            Mas foi só o começo. Logo em seguida, a empresa fechou a passagem de servidão, isolando as mais de 42 pessoas que moravam na ilha do resto da comunidade. Atravessar a cancela da empresa, constantemente guardada por homens armados, somente os funcionários e os moradores da ilha que têm com que se identificar. Um verdadeiro gueto, com a direção da Ingá pretendendo até a adoção de um cartão de identificação.

          Depois de descrever mais absurdos contra esses irmãos, caiçaras como eu, Priscila conclui:

Diante de tantos desmando, os moradores da ilha chegaram a fazer um abaixo-assinado enviando ao presidente da República, João Figueiredo, onde expunham os problemas que enfrentam por conta da instalação da Ingá. Sobre resultados positivos nada se sabe. Do que se tem certeza é que “acabou tudo o que havia dentro do mangue, os peixes estão fugindo do litoral”, por causa da poluição. Também os mariscos, os mexilhões são coisas do passado: “Morreu tudo que havia de vivo por aqui”...

            As maiores denúncias, entretanto, dizem respeito à saúde dos moradores da ilha e aos operários da Ingá. Os madeirenses se queixam de que suas crianças são constantemente atacadas de bronquite e que todos sofrem de ardência nos olhos. E são muitos os operários que morrem com idade de 40 anos, “vomitando sangue. E a causa ninguém sabe”.

                     E quantos ainda estão do lado de um governo que sempre se declarou contra as minorias? Lembre-se que o caminho são apenas dois! Que tal refletirmos a respeito da luz e da escuridão para agirmos a favor da vida?

segunda-feira, 20 de abril de 2020

QUE MOCIDADE MAIS SEM FORÇA!

A rede tá chegando (Arquivo JRS)


                Tio Genésio, irmão do vovô Armiro, um tipo franzino, parecendo sem força alguma, era um grande mestre de rede. Não conheci outro igual. Em outras ocasiões eu já expliquei que todo lugar tinha uma rotina de puxada de rede na praia, geralmente num dia por semana. Só em ocasiões de grandes cardumes chegando no nosso litoral é que mais vezes era descida a canoa maior, com sua imensidão de pano de rede, cortiças e chumbeiros. Então, na madrugada, bem antes de o alvorecer, se aguardava em casa o toque do buzo chamando os camaradas da rede. Vovô e tio Genésio, na praia da Fortaleza, eram os líderes nessa movimentação tão essencial à comunidade local.  “Ah! Quantas vezes, na madrugada, além de ouvir os galos se revezando no chamamento do dia, eu prestava atenção no som diferente, de tão importante significado!”

                Em uma ocasião, adolescente ainda, eu fui na faina. Após descermos as canoas, saímos remando dali para a praia vizinha, a Prainha do Costa, também chamada por nós de Prainha do Tio Rita. Era tempo frio, com uma chuva fina que arrematava a dureza daquilo tudo. E para piorar, havia uma correnteza forte que exigia de todos mais força ainda. Ainda bem que foi um lanço só! Após a canoa da rede desovar toda a tralha bem longe, começamos a fazer força nos cabos. Enquanto estava longe, tudo bem. Era tranquilo, estávamos descansados. O saudoso tio Genésio, mestre nato, puxava um pouco em cada cabo, controlando a chegada das peças. Como ele sabia que a rede vinha no mesmo ritmo, sem um lado se adiantar mais do que outro apesar da distância entre os dois lados? Era fácil para quem, desde criança vivia naquilo: bastava olhar os  nós das peças dos cabos chegando em cada lado. Daí a importância daquele vai e vem do titio, empeçando aquela montoeira pelo lagamar, vendo a situação e passando as ordens: “Diminuam esse lado, tem quase meia peça na frente”, ou, “Adiantem, adiantem, tem peixe batendo na rede e podem sair pelo lado de cá”. “Puxa mais daí. Que mocidade mais sem força!”. Nessa ocasião foi uma canseira para todos mesmo! Não tinha como fazer corpo mole, ficar enrolando com o puxador na cintura. Ficamos extenuados, com vontade de se deitar debaixo da garoa após a chegada da rede. Aquele peso todo, na verdade, era peso morto: uma carga de folhas que estava no fundo veio na rede. Tinha até um tronco de árvore, dessas que passeiam com as correntes até serem jogadas um dia em alguma praia. Peixe mesmo era pouco, tipo “nem paga a pena”. Depois vem o pior: limpar toda a rede, não deixar nenhuma folha grudada em seu pano, embarcar na canoa, subir no rolo aquele peso todo para mais tarde, já no juréu de bambu, ver os buracos e remendá-los, porque logo vem a outra ocasião, o mesmo ritual. “Na semana próxima tem mais”.

                Era muito trabalho? Era pesado? Era mesmo! Trabalho igual eu testemunhei com os outros saudosos mestres  da pesca, de rede puxadas nas praias: Aládio e Florindo Teixeira na praia do Itaguá, João Zacarias na Maranduba, Pedro Cabral no Perequê-mirim, João Vitório na Enseada, Horácio e Dito da Matta na Caçandoca, Catarino e Mané Barrasseca na Tabatinga, Acácio e João Araújo na Ponta Aguda, Bernadino do Prado no Pulso, tio Zaca no Bonete... E quantos outros não viveram a mesma coisa nas tantas praias de Ubatuba, no tanto de tempos atrás? É isso! Viva essa gente toda!

domingo, 19 de abril de 2020

PRAINHA DE OUTRO TEMPO


A casa do Matarazzo (Arquivo JRS)

Vista da Prainha (Arquivo JRS)

        Há muito tempo aprendi que era na Prainha do Padre, do morro do Ocaraçu (Morro do Padre), logo depois da Barra do Rio Grande (de onde saem tantas embarcações em busca dos pescados desse imenso mar), que chegava e saía produtos no tempo antigo, desde quando o país ainda era colônia. Ali se localizava o atracadouro de Ubatuba, o antigo porto. As grandes embarcações fundeavam mais para os lados do Acaraú, onde havia proteção dos ventos e das ondas, e só se deslocavam quando vagava um espaço para carga e descarga.  Então sempre imaginei que devia haver mais coisa naquele lugar, mas nunca achei nada de registro escrito. Porém, nunca deixei de acreditar que, por debaixo do mato que ainda não mexeram, deveria existir coisas interessantes. Assim, na primeira ocasião, adentrei naquela capoeira e achei os tais vestígios: cacos de telhas, restos de objetos tomados por ferrugem, cacos de vidros e de louças. “Ah! Aqui tinha uma casa! E era de gente rica porque naquele tempo a casa de pobre tinha cobertura de sapê!”.  Nada mais... Agora, relendo mais atentamente o Terra Tamoia, da Idalina Graça, achei! Trata-se de uma prosa entre a nossa primeira autora caiçara e um pescador.


       Naquela manhã de luz e harmonia, livre como uma andorinha,  lá ia eu, em companhia do velho Gonçalo, pescador amigo, que viera chamar-me para a compra de camarão. Paramos no Morro do Padre. Gonçalo, apontando uma pedra que se projetava para o mar, disse: 

-   A senhora está vendo aquela rocha, maior que as outras?

-  Sim, acho-a interessantíssima. Tenho a impressão que ela desafia o mar.

-   E é mesmo, dona. Pois a malvada roubou a menina da Prainha, sua companheira de todos os dias, a pequena mais bonita do lugar!  Antigamente, ali onde só há ruínas hoje, havia um grande armazém. Ubatuba exportava café em quantidade. Desciam continuamente a serra tropas de muares carregadas de café, toucinho, milho e feijão, que os tropeiros trocavam por peixe seco e outros produtos de que a nossa terra era tão farta naqueles bons tempos. Pois bem. O armazém do Nhô Bento era mais frequentado pela gente de cima e do lugar, porque era mais rico e sortido. A gente, olhando do mar para a terra, pensava que era um jardim, tantas eram as flores que a Rosinha faceira, luz dos olhos do pai, plantava à volta da casa. A menina era órfã. Morrera-lhe a mãe quando ela nascera. E Rosinha era tão engraçadinha, que todos lhe queriam bem. Assim, Nhô Bento, que era um português casmurro, via-se obrigado a ser alegre como todo mundo, por causa da encantadora menina. E Marta, sua mucama, fazia-lhe todas as vontades.

       Viram que eu tinha razão! Provavelmente Cicillo Matarazzo, prefeito desta cidade no final da década de 1960, que ali na costeira construiu uma casa, registrou mais coisas. O Seo Antônio e a Dona Benedita, caseiros que ali se findaram, poderiam ter contado mais coisas daquele lugar, de algo mais para atiçar nossa curiosidade. Prometo escutar seus familiares, sobretudo suas filhas, a respeito disso.

sábado, 18 de abril de 2020

O MUNDO É AÇÃO NOSSA

Canoas caiçaras - prova feminina, Itaguá (Arquivo JRS)


     "Quem cria a visão sacralizada e mágica do mundo? Somos nós mesmos! O nosso lugar é um lugar sacrossanto!" (Antônio Maior -  caiçara de Ubatumirim)

                Surgimos no mundo dentro de um processo evolutivo, desenvolvemos a cultura (que é uma adaptação necessária à vida na natureza e na sua transformação). O mundo é a nossa casa, daí ecologia, de oikos, casa. Cuidar da casa, cuidar do nosso lugar... do planeta que é a nossa casa maior.

                Nos distinguimos no mundo, mas temos consciência que ele é uma sopa cultural resultante de criações, combinações e recombinações constantes desde os primórdios da humanidade. Cada elemento particular nesta sopa tem sua razão de estar aí, significando o seu sabor específico, o seu tempero ímpar capaz de dar sentido à vida de alguém, à vida de muitos até. Eis a importância da diversidade cultural, das etnias abundantes. Quanto pode contribuir a cultura caiçara para um bem maior?

                Procurar respostas, questionar, propor olhar diferente a partir de sua etnia, de seu grupo cultural, é estar nesta casa (mundo) e abrir uma porta para iluminá-la, para arejá-la. É natural que os filhos, as novas gerações sejam atraídas por outras portas, por suas luzes e ares distintos.  Também não é de se espantar, ao ver pais  sem rumo, desnorteados pelas escolhas dos filhos. É evolução o nome disso. Daí a importância de grupos de estudos, de reflexão para entender novas portas que se abrem e assim desmistificar essas movimentações culturais, essas alterações na sopa cultural capazes de até mesmo gerar fanatismos fatais. Desse modo entenderemos as razões do nosso viver, explicitaremos as razões do nosso mundo. No fundo, essas manifestações revelam o componente de autonomia que temos em busca do conhecimento, do autoconhecimento, da realização do nosso ser, no nosso aperfeiçoamento pelo bem-estar corporal e mental. (Possivelmente componentes do que chamam de consciência cósmica?).

                Vamos chamar de espiritualidade essa busca de uma base que não seja materialista, aquilo que paira sobre tudo depois que as cinzas são dispersas no ar.  Muitos aspectos dessa espiritualidade transparecem nos ensinamentos de personagens de outros tempos, de vivências de outras comunidades, de anônimos do nosso cotidiano (Por exemplo: ao olhar um morador de rua, enxergo um ser que vive um desapego impressionante, uma penúria angustiante). Quando me deparo, por exemplo, com um seguidor de KRISHNA, me pergunto: como ele se relaciona com a sociedade, com a nossa sociedade? Quais questões me esclarecem com o seu modo de vida? Qual a luminosidade dele me socorre pelos caminhos? 

         Uma atenção, conforme já disse, numa tarde distante, o saudoso tio Clemente: “Se as portas são muitas, também são muitas as possibilidades de se perder, mas os caminhos são só dois: o do bem e do mal”. E o que é se perder? Creio que se resume em se afastar dessa dimensão (cósmica?) de felicidade, de bem maior que lateja em nós. "A minha casa está num lugar desse lugar maior, infinito?". É isso mesmo! Certo é que as nossas vivências podem nos colocar numa via contrária a essa realização e a essa autorrealização. Ao ver uma boa parcela da população apoiando ideais egoístas, de perseguição às minorias e aos mais pobres, não tem como omitir a percepção de que portas contrárias à felicidade ampla estão abertas e sufocando outras portas essenciais à nossa Humanidade, destruindo a diversidade cultural,  quebrando a possibilidade dessa fraternidade e corresponsabilidade pela vida em abundância. Enfim, arruinando com a casa maior, onde se enraízam as razões mais virtuosas da nossa cultura, das culturas diversas. Tenho dito.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A ONÇA DO CEDRO

Tempo de criança (Arquivo Tio Marcelino)


                Meu avô Estevan, pai do meu pai, órfão total no início de século XX por causa da gripe espanhola, era tão simples como a vida caiçara do seu lugar, uma praia por nome de Caçandoca, no sul do município de Ubatuba. Ele adorava contar histórias, de preferência nos serões e no jundu, naquele momento do ritual de se despedir do dia olhando o mar, quando o dia vai se apagando e a as ondas começam a brilhar conforme a claridade da Lua e das estrelas. Também nos encantava em muitas ocasiões sentado num banco, debaixo do abacateiro imenso do terreiro, na praia do Sapê. A criançada, nessas ocasiões, rodeava o vovô ou o imitava no seu olhar lá longe, para lugar nenhum, como se encontrasse com as imagens daquilo que ia falando. Hoje é a história da onça do Cedro.

                “Numa ocasião, faz muito tempo, no cisqueiro de alguém, na praia do Cedro, vizinha da Deserta, de onde veio essa gente dos Lopes, apareceu uma onça acompanhada de uma oncinha. Assim que a cachorrada embafustou, a grandona correu, mas a pequena, do tamanho de um gato grande, ficou e se afeiçoou ao pessoal. E a onça-mãe nunca mais se viu. ”. Quando um de nós perguntou a razão disso, vovô continuou: “É que ela, a onça velha, enxergava longe, sabia que os homens têm mais chances nesta vida, conseguem se sair melhor. Assim, por parte do pai da família, a oncinha foi criada como todo mundo era criado naquele tempo, aprendeu de tudo e se mostrou muito sabida, merecendo agrado em tudo aquilo que se atrevia fazer. Respeitava e era respeitada por todo mundo. Toda gente dali gostava dela”. De repente, uma voz: "Como assim? Ela era onça ou era gente?”  Ele continuou desse ponto: “Era bicho-gente. Só que um dia, já tendo corrido bastante tempo, apareceu um homem com uma faca enorme, a tal de espada, viu no que tinha se transformado a onça e se irou contra quem estava mais perto. Se enfureceu, levantou aquela medonha arma e já ia desferindo um golpe no pai da família, também pai da onça, né? Ele não reagiu, pois só sabia que não tinha feito nada de mal, além de alimentar e ensinar tudo aquilo que foi possível à oncinha. Então era morrer, ué! Nesse momento, contam os mais antigos, a espada caiu e o estranho que o ameaçava caiu no chão, de joelhos, agradecendo por tudo que havia feito. Na verdade, criançada, aquele homem era a mãe da onça, aquela que correu dos cachorros e nunca mais voltou. Ela se desarmou porque enxergou a bondade e a verdade naquele momento, naquela pessoa”. Depois de um silêncio, a pergunta: “E aí, o que mais aconteceu?” O vovô, olhando para nós, tranquilo como sempre, encerrou: “Mais nada, ué! Sempre escutei que todos dessa história morreram de velhice, no Cedro, numa grande família. Só sei dizer que o lugar do pescador que acolheu a oncinha sempre foi ocupado por alguém, nunca ficou abandonado. Hoje [por volta de 1971], quem mora lá é o Lindo Lopes, primeiro marido da Maria da Barra, da Fortaleza. Um dia, se houver chance, perguntem a ele a respeito da onça que morou naquele lugar. É capaz de se recordar de mais coisa ainda! Sei que ele está muito doente, talvez nem dê tempo de vocês especularem mais desse causo. É assim... a vida passa... e o que sabemos vai virando cinzas. O que fica é o espírito das coisas pairando por aí, sendo a razão de continuar vivendo e contando a respeito delas”.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

GARÇAS, SOCÓS, SARACURAS...

Na lagoa da Cocanha (Arquivo JRS)
Na beira do rio Acaraú (Arquivo Mary)

                       

                São José dos Campos é uma grande cidade, com mais de setecentos mil habitantes. Dista menos de cento e cinquenta quilômetros de Ubatuba. É repleta de indústrias, com uma malha viária que funciona muito bem ao meu ver. Nesse tempo de pandemia já passei um bom tempo lá, em idas e vindas ao Hospital Regional, onde minha sogra está sendo tratada. E, por ali mesmo, nos arredores, alugamos um espaço simples para não precisar viajar tanto. Numa manhã, estando lendo e fazendo minhas anotações, além de escutar pássaros comuns, urbanizados (sanhaço, rolinha, pardal, periquito, andorinha, bem-te-vi, bonito-fogo...), também fui afetado pelos pios de saracura. “Nossa! É a primeira vez! Será mesmo? Se for, tem que ter um água (rio, brejo, várzea, lagoa...) aqui por perto”. Fica uma vontade de confirmar isso! “Mas no centro da cidade?”.

                Na minha história, na minha vida, as saracuras se destacavam quando eu, criança ainda, na casa da vovó Eugênia, escutava seus alaridos nos córregos e valas existentes por perto, um vargeado de ciosas entre a casa do Dário e a casa do nhonhô Armiro. Bem cedo e no serão as saracuras pareciam estar em festa. Vovó dizia: “Essa é a prosa delas, todo dia, a vida inteira é assim. Por ali namoram, chocam os ovos, criam e se recriam porque tem fartura para elas. Também tem garças, savacus, curicacas, socós... Peixes, sapos, cobrinhas, minhocas, camarões... Essas aves comem tudo isso!”.

                Agora, recordando do nosso lugar quase todo aterrado e tomado por casas e prédios, me pergunto: “Onde estão as saracuras? Será que muita gente, além de perceber os pássaros comuns, também presta atenção aos piados delas? E, na cidade grande, estão se adaptando às águas que já não são limpas? O que comem por ali?”.

                  É... São tantas coisas para caiçara pensar...

segunda-feira, 13 de abril de 2020

ELES SE VIRAM!


 
Peixes na bacia (Arquivo JRS)

         Olhei os peixes ali perto, pensei em nossas manhãs caiçaras de outros tempos, no café com peixe e farinha de mandioca logo cedo. Senti os cheiros passando pelas frestas, entre barro e madeira, se esvaindo pelos vãos das telhas em direção ao céu, driblando as folhas de bananeiras que pareciam sufocar a casa. Os estalos do fogo, onde debaixo do fogão uma galinha aninhava seus ovos, pediam atenção: “Não deixe queimar porque carvão não presta pra comer no café”. Era o alerta de alguém ocupado com outra coisa. Em volta da chapa, para depois adoçar a boca (porque o sal se sobressaía no peixe), as bananas nanicas assavam aos poucos. "Benção, mãe". E um a um iam despontando na porta do corredor, deixando as camarinhas, esfregando os olhos que enfrentavam a claridade. “Ande logo! Já tem gente passando pra escola!  Ligeiro!”. E lá íamos nós, molhando as canelas no orvalho frio, com um caderno cheio de 'orelhas', um lápis e uma borracha dentro de um saco plástico. Uma carreira de bastão marcava a última etapa do caminho, a subida.  Ali perto tinha um coqueiro, onde moravam os morcegos brancos. Eu sempre estava entre os primeiros a chegar porque queria brincar um pouco antes da professora nos chamar. A maioria dos meninos adorava subir nas árvores; a maioria das meninas jogava amarelinha assim que chegava. De vez em quando farejávamos uma fruteira mais afastada, e, como famintos de dias, até as verdes se iam. De repente uns gritos: “A professora tá chamando, a aula vai começar!”. Era uma corrimaça só.

                Nossa escola, aquela que me acolheu na primeira vez, era num começo de morro. Na verdade, era a casa da tia Martinha, do falecido tio Crode. Tio Crode era tio Cláudio, irmão do nhonhô Armiro (hoje se diz bisavô). Cláudio, o neto dele, estudava comigo, pois temos a mesma idade. Até hoje é um grande parceiro, mas mora no Rio de Janeiro desde 1981. Ele - danado! – entendia rapidamente as coisas, logo estava lendo e fazendo continhas. E me ajudava porque percebia que eu sempre me enroscava em alguma lição. “Você não terminou ainda, primo?”. Era notório que não. “Estou primeiro desenhando esta abelha que achei muito bonita”. E vinha a professora vendo os exercícios, dando vistos, parabéns e broncas. “Por que o ‘senhor’ não fez ainda?”. E eu me envergonhava, como se todo mundo estivesse olhando para mim e dando risada. No dia seguinte, como era custoso enfrentar novamente a vida escolar! Só que eu sabia o quanto era importante saber ler e escrever. Qualquer embalagem em cima da mesa era um desafio a ser superado. “O que será que está escrito nela?”. Me lembro bem da lata de leite que tinha umas letras maiores e uma vaquinha malhada. Um dia chegou para o café o primo do vovô, o Mané Bento (que também nunca soube ler!). Ao me ver ali, olhando a lata enquanto dava a desculpa que o café estava muito quente, ele perguntou: “Sabe ler, menino?”. Eu só balancei a cabeça dizendo não. “Pois saiba que está escrito: a vaca malhada da Carmelina. Logo você vai aprender na escola, você vai ver!”. Acreditei nele até no dia em que vi na casa da tia Carmelina uma lata igual na mesa da cozinha. Mais tarde, chegando na lição do macaco, aprendi a decifrar o enigmático objeto que me desafiava de cima da mesa, fazia tempo: Leite MOCOCA.

                Num entardecer, escutei a mamãe dizendo para o papai: “As crianças estão com dificuldades na escola, o Zezinho tem até faltado sempre”. E a resposta dele? “Eles têm de estudar. Eles se viram, pode deixar. Eles se viram, você vai ver!”. E nós nos viramos! A lição que ficou é que nunca devemos nos conformar e ceder às dificuldades. E quantos, neste momento, estão até mesmo sem as mínimas condições para estudar? Ou pior, escutando: "Estudar pra quê?". Certamente nunca perceberão que o sistema dominante está planejado para ser assim: a maioria deve ser apenas trabalhador, proporcionar riquezas à minoria. Lembro-me do dizer tão comum quando se reclamava da falta de mistura (carne, ovo, peixe...) na comida: "Não reclama não. O que enche a barriga é feijão com arroz". É, estudar pra quê? 

              Entendeu tudo até aqui? É por isso e muito mais que continua sendo importante estudar!

domingo, 12 de abril de 2020

A RIQUEZA DAS PRAIAS

          
Imagens do Guia de Turismo (Arquivo JRS)


Perequê-açu, no Guia de Turismo (Arquivo JRS)


    Eu já nasci com o advento do turismo em Ubatuba, quando os primeiros loteamentos se consolidavam em torno do núcleo urbano e até mesmo em praias distantes (Maranduba, Lagoinha, Lázaro, Enseada e Tenório). As primeiras casas de veraneio, várias com um estilo arquitetônico modernista segundo o estudo do grande amigo Carlos Lunardi, se mostravam entre o verde dominante. Quem tinha mais condições, entre os da terra, construíam casas para alugar aos turistas nesse tempo. Assim despontaram os "ricos" caiçaras. Hotéis eram alguns, pousadas nem sei se havia. Bem, tinha a Pensão do Maestro ao lado do Casarão do Porto, a do Braga, ao lado da Farmácia do Filhinho, mas nada comparável às acomodações de hoje. A do Braga, por exemplo, era a sua própria casa que servia mais para abrigar alguém que precisava ficar no centro da cidade a fim de aproveitar os festejos regulares. Quando estávamos sedentos, zanzando por ali, o Braga era o nosso socorro: "Dá licença, Seo Braga? Posso tomar água?". A mamãe, em tempo mais recuado, dizia: "Eu ficava, em época de festa, na casa da prima Margarida, que nasceu no Corcovado, mas morava na rua Maria Alves, quase na esquina da máquina. Ali era a entrada da cidade para quem vinha pelo Morro da Berta".

             O guia de turismo da década de 1950 dá destaque para as praias do Perequê-açu e do Itaguá: eram as mais frequentadas. Já na década de 1970, as mais distantes - Lázaro, Perequê-mirim e Enseada faziam sucesso. Por isso que a primeira linha de ônibus, visando atender a demanda turística, circulava até a praia do Perequê-mirim (distante mais ou menos nove quilômetros do centro), nos seguintes horários:  partia do centro da cidade 8:00 e 14:00 horas; voltava do bairro 11:00 e 15:00 horas. E só! Em 1970, foi inaugurada a linha até a praia do Lázaro. Quem precisasse ir mais distante, precisava embarcar no intermunicipal, com preços diferenciados conforme a distância. Um cobrador, devidamente "fardado e equipado" desempenhava esse papel. 

             A nossa riqueza eram as praias. Foram elas que motivaram a abertura de estradas com as vizinhas Taubaté, Caraguatatuba e Paraty. A partir do turismo veio o desenvolvimento da pesca, da lavoura para atender as demandas até da capital paulista e da construção civil. Meu pai, pedreiro e carpinteiro, bem dizer passou a vida nisso. Ele e tantos caiçaras! Só a partir de meados da década de 1960, começaram as migrações de cortadores de pedra e de operários para as obras. A partir de 1975, elas se intensificaram. Surgiram mais loteamentos, mais prédios, mais hotéis, a BR 101... Vieram as ocupações desordenadas, as aberturas e melhorias das estradas municipais... "Chegou o progresso", como diriam alguns.

             Devido à ganância, ao querer levar vantagem, a falta de instrução e a omissão do poder público, as irregularidades foram se tornando regras: acaba-se com mangues, constrói-se em morros, joga-se esgotos nos rios, destrói-se jundus, ocupa-se áreas impróprias etc. Enfim, hoje a nossa maior riqueza é questionável. Qual praia eu posso entrar, aproveitar bem sem nenhuma preocupação, sobretudo no que diz a respeito de esgotos? Como amenizar, corrigir a situação degradante que se instalou? Como recuperar nossa maior riqueza?

sábado, 11 de abril de 2020

NO MESMO MAR, MAS EM DIFERENTES EMBARCAÇÕES

Estampas (Arquivo JRS)


                Estamos sujeitos a todos os contágios. Nós todos! Pode ser uma doença causada por seres microscópicos que se espalham pelo ar, ou uma ideia diferente que, de repente, surge no horizonte das nossas reflexões. Pode ser qualquer coisa! Por exemplo: a noção de justiça. Nesses dias, vivendo uma pandemia, vemos atitudes que, declaradamente, objetivam a exterminar os mais pobres, os marginalizados que "impedem" os lucros de uma minoria. É assim, bem declarado! Por isso os centros de atendimentos aos moradores de ruas e usuários estão sendo desativados, com violência policial aos que resistem às ordens das autoridades. Por isso também que os postos de assistências aos indígenas estão sendo desativados, que os médicos contratados de outros países foram mandados embora etc. E o que dizer dos auxílios milionários imediatos aos banqueiros e grandes empresários, enquanto que a quantia vergonhosa aprovada como esmola aos mais necessitados vai se esbarrando em barreiras ridículas, em argumentos falaciosos? Quem não vê que a justiça tem lado, que as injustiças grassaram porque o país agora tem um ser maldoso liderando, no comando porque uma potência externa assim direcionou? Quem votou no presidente que, desde sempre, estimulou o ódio contra as minorias deve se sentir culpado. Quem deixou de votar também tem parceria nisso porque deixou de sustentar um lado melhor. Os que sustentam esses absurdos governamentais até hoje são mais responsáveis ainda pelo retrocesso nas condições sociais tão notórias!

                Na nossa realidade de Ubatuba: onde erramos ao ver pobres migrantes sendo contra eles mesmos, contra irmãos mais pobres ainda? O que deixamos de fazer para chegar a esse ponto de tantos caiçaras serem tão tontos, apoiando as maldades institucionais que se fortaleceram? Atitudes assim vão afastando famílias, matando os laços de pertença a um grupo social e enfraquecendo a cultura. Não foi assim que a religiosidade indígena, totalmente atrelada aos valores da vida comunitária, foi apagada de nosso mapa cultural? Meu tio querido diz que estamos distantes agora, "um pouco longe um do outro". É verdade mesmo!  Seus filhos, ao votarem nessa coisa que aí está, compactuam com princípios de ódio, apoiam valores desvinculados da nossa raiz cultural e afirmam que o sucesso da economia é mais importante que as vidas a serem perdidas na atual pandemia. De onde vem essa formação? E continuam sendo católicos! Não, não quero estreitar distâncias com ideais assim! Imagino que, caso haja a possibilidade de questionamento, certamente ouvirei: “É a modernidade, Zezinho. Ela dificulta o diálogo. Tem que ter amor, ser paciente”. Se as condições para o diálogo é a negação do outro, dos injustiçados; se é a aceitação do abandono da justiça (porque a economia, o bem-estar de uma minoria deve prevalecer), eu me recuso até mesmo em reencontrar aqueles que são galhos da mesma árvore. Somos capazes de ser divinos. (Muitas ações, sobretudo nestes dias angustiantes, merecem gratidão e devem se reproduzir). O desafio é peregrinar em direção a uma divindade humilde. Esta sim nos livrará da violência entre irmãos e reavivará nossa fraternidade.  É isso que deve contagiar toda a Terra!


Ainda há esperança (Arquivo JRS)


sexta-feira, 10 de abril de 2020

ERA MÃE DO OURO SIM!

Sempre onde estava o movimento (Arquivo Desconhecido)

Nós, pelos caminhos (Arquivo JRS)


Tem alguns dias que o Oliveira faleceu. Viveu bem seus 95 anos, com muita lucidez e uma mente sempre aberta a qualquer assunto. Conversava com todos, sempre muito animado. Caminhava todo dia da praia Brava até a vizinha Fortaleza, o seu lugar mesmo! Dizia: “Eu moro na praia Brava, mas gosto mesmo é da Fortaleza porque todo mundo conversa com você, tem tempo para prosear e de dar risada. Isso é que é viver!”. Quem resistia a ficar conversando com esse cidadão, nosso patrimônio caiçara?!?

Conheci o Oliveira, primo do vovô Armiro por parte da Filomena, alguns anos depois que nasci, quando fomos morar na praia da Fortaleza. Era casado com essa saudosa caiçara, irmã do Mané Bento. Maria das Dores era a filha única do casal. Moravam no jundu, quase no meio da praia, entre bonitas árvores (abricoeiros, abacateiros, laranjeiras...). Era costume desse valoroso caiçara pescar sozinho; quando menos se esperava lá se ia ele remando tranquilamente em direção à Ponta, ao Mar Virado,  ao Lázaro, onde vendia coco verde na temporada...   Dele eu já escrevi a famosa Luz do Oliveira: uma das coisas de outros tempos que hoje poucos acreditam. Assim que enviuvou, cheio de saúde, o Oliveira logo se casou de novo, mas dessa outra geração (filhos e netos) eu sei pouca coisa. Na verdade, o nosso personagem de hoje fez parte da minha história desde a primeira infância, quando não havia muros e as pessoas se importavam mais com as outras, valorizavam mais a vida comunitária. Havia pitirão para quase tudo naquele tempo!

Como já expressou um pensador africano, “quando morre um idoso, é como se uma biblioteca tivesse sido queimada”. E é mesmo! Escutando o Oliveira, aprendi sobre a Ponta Aguda, seu lugar de origem. Também ele era da família dos Quintinos, cujos antepassados possuíam a ilha do Tamanduá. Depois, as idas e vindas fez de sua mãe uma verdadeira heroína, capaz de dar um exemplo de vida maravilhoso. Nas suas palavras: “Mamãe lutou muito, teve uma existência sofrida, mas me ensinou a ser digno, a respeitar e ser respeitado. Ela fez muito bem a parte dela. Devo muito a ela por ser o que sou até este dia”. Ah! A força das mulheres! Gostoso mesmo era escutar o Oliveira dizer: “Eu vi a sua mãe criança, seus tios todos. O vosso avô era um companheiro valoroso, de palavra. Nunca tivemos uma desavença”.

                Certa vez eu perguntei ao Oliveira se a tal luz que o perseguia não  seria a Mãe de Ouro. E ele: “Não sei, meu filho. Mas se fosse, queria dizer que naquele lugar, onde estava a minha pobre casa, tinha ouro? É, pode ser que era mesmo! Afinal, naquele jundu eu vivi momentos de muita felicidade, via a Lua e o Sol despontar sobre o mar, o nosso mar. Puxava rede ali mesmo. A poucos metros do lagamar ficava o meu rancho de canoa, as minhas tralhas de pescarias, o meu terreiro, a minha casa... Bastava uma rolada só e já me preparava para sair remando naquela calmaria tão comum. Ali se criou a minha primeira filha e ali ela começou a namorar o Jeová, filho do compadre Siledônio que morava logo depois, quase chegando no Canto do Joaquim. Ali fizemos tantas festanças... Quer ouro melhor que isso tudo? Quer riqueza maior? Então, aquela era a Mãe do Ouro sim! Ah, bendita luz!”.