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Papéis usados viram cestaria (Arquivo JRS) |
Acordei com um texto na cabeça, mas me recordei que, no último concurso de crônicas, a amiga Fátima ficou como primeira colocada. Eu já sabia que ela tinha grande probabilidade desse prêmio meses atrás, quando ela me comunicou: "Eu enviei uma crônica para o concurso"!
Parabenizo a todos e aos vencedores pela participação no concurso que leva o meu nome. Eis os premiados:
3° CONCURSO DE CRÔNICA “PROF° JOSÉ RONALDO DOS SANTOS”
1ª colocação Fátima Aparecida C. de Souza Barbosa dos Santos com a crônica: “VESTIDO”
2ª colocação Waldir Capucci com a crônica: “FESTEJO NA CADEIA”
3ª colocação Valquiria Sperandeo com a crônica: “UMA CRÔNICA DE NATAL”
Querida Fátima, não tendo ainda o VESTIDO premiado em mãos, recorro ao seu BALAIO DE SONHOS. Afinal, quem não tem o seu balaio de sonhos?
BALAIO DE SONHOS
Minha mãe tinha um balaio de
costura feito de taquara e adornado com cipó-imbé. Um trabalho primoroso
feito por hábeis mãos de algum artista que nem sabia disso, pois esses
trabalhos manuais eram feitos para suprir a necessidade de utensílios
domésticos mais sofisticados. Remexer esse balaio era um dos meus passatempos
favoritos. Os apetrechos de costura, bordado, crochê, tricô, enfim, todo tipo
de aviamento faziam de minha mãe uma mulher prendada. Ainda posso vê-la
sentada na mesa da sala costurando numa máquina de costura de mão. Tem uma
parecida no museu... Ainda posso sentir o cheiro da goma dos tecidos de
algodão comprada por minha avó quando vinha na missa na cidade.
Eu catava os retalhos e tecidos
no chão para costurar roupas para as bonecas de minhas irmãs. No balaio tinha
uma caixinha de botões coloridos e em vários formatos. Mas eram as linhas de
bordar de várias cores e enfileiradas nas caixas de abrir que faziam de uma
roupa sem graça um modelo novo para uma festa. Acho que é o que chamam hoje
customização. Mas para minha mãe era um jeito de economizar, reformando uma
roupa aqui, outra ali, com criatividade. Afinal, eram tempos bicudos. Não era
como é hoje, que existe a facilidade de se adquirir uma coisa e também a
facilidade de se descartá-la. Lembro-me de três revistas. Eram figurinos, com
modelos e moldes para criança. O detalhe que esses figurinos eram franceses.
Ou pelo menos trazia as informações escritas em francês. Quantas vezes eu
quase derreti dentro de um vestido todo forrado. Farfalhei por aí com minhas
saias rodadas. Mal conseguia correr e brincar dentro de um costume xadrez de
lãzinha. Até meu pijama de flanela com estampa de patinhos acompanhava um robe
de morim. Até hoje possuo um cachecol bordado pela minha mãe. Mas ela achava
que era chique... Estava no figurino.
Por muito tempo um pano de copa em
algodão cru, trazia os riscos de um cozinheiro e sua cozinha impecável que
rodou de mão em mão até ser finalizado. Era ali que eu aprendi meus primeiros
pontos de bordado. Duas agulhas tricô em madeira foram minhas ferramentas de
quebra-cabeça, até aprender o segredo da tricotagem. À vezes comparo que a
Emília do sítio do Pica Pau Amarelo tinha uma canastra, e eu tinha o balaio
de costura de minha mãe. Um mundo de fantasia. Mil possibilidades de se
construir algo que fosse útil e colorido. Via isso no exemplo que minha mãe
colocava diante de nós, ela nem percebia isso, ocupada que era com tantos
afazeres domésticos.
As tardes eram ricas em conversas,
ensinamentos e costuras. Mesmo trabalhando, minha mãe agregava suas filhas,
ocupando-as com a pedagogia que ela conhecia. Um jeito de estar por dentro de
tudo que andávamos aprontando. Sutilmente ela jogava um assunto e fazia a
gente dissertar sobre ele, em meio a panos, agulhas e linhas. Assim ela sabia
com quem estava lidando. A gente acabava se entregando. Aí o bicho pegava. Tardes
memoráveis, tardes inesquecíveis.
Outro dia
vi a velha tesoura que cortava panos, linhas, ataduras, cabelos e até as
roseiras, de bico para baixo dentro de um pote no armário da sala da casa
dela. Jazia ali, inútil, velha e preta. Hoje não existe mais esse balaio de
costura adornada de imbé, para guardar utensílios. Se existisse era só para
guardar lembranças. Agora tudo é descartável. Se quiser roupa nova e só
recorrer ao crediário das lojas de departamentos.
Acho até que as lembranças são
feitas de cor, gosto e cheiro. Se isso não existir mais, será o fim da
memória poética. A mesma memória poética que dá valor aos trabalhos manuais
ensinados pela minha mãe, hoje chamados de artesanato. Um balaio
de sonhos que hoje me ajudam a sobreviver.
(Fonte: O GUARUÇÁ)
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