quinta-feira, 30 de novembro de 2017

VESTÍGIOS DA IDALINA


     


Idalina  cuidava do Ubatuba Hotel, depois se tornou proprietária. Imagens do arquivo Ubatuba Antiga


       Na unidade de ensino onde trabalho, no bairro do Ipiranguinha, hoje o diretor está “correndo” atrás de mais coisas da Idalina, patrona da escola. Lendo um texto não tão antigo, escrito pelo amigo Peter, me recordei que estou em dívida com o seu farto material. (Ainda não consegui produzir algo a contento, de acordo com o seu trabalho). Tudo gira em torno da ilha Anchieta, território de Albino, esposo da Idalina, e da Enseada, uma das praias da nossa infância. Boa leitura!

       Durante os últimos dois dias me debrucei sobre os três contratos de compra e venda da Ilha dos Porcos, hoje ilha Anchieta, mergulhando exatos 110 anos no passado, tempo da expropriação forçada de 148 pessoas, proprietárias de edificações, terras, plantações, benfeitorias, canaviais, cafezais, pomares e pelo menos 35 coqueiros. Noventa e cinco (95) "vendas" foram concretizadas pelos 92 proprietários de 1 ex-escola do sexo feminino, 2 casas-armazém sendo uma de secos, molhados e fazendas (tecidos), 4 galpões, 2 galpões de canoas, 1 rancho de canoas, totalizando 116 edificações.
       Cento e quarenta e cinco (145) pessoas adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde proprietário algum foi citado nos contratos.
  Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim, Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral Barbosa, Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
     Descobri que o marido de Idalina Graça, provavelmente foi expulso do Mato Dentro [uma das localidades da ilha] e confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira, cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
    Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da Enseada dos anos 1930.

CAPITULO I
A viagem
      Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também, filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas. Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido, fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma. Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo. Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? — Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino! Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante: — Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes! Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo, a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.


terça-feira, 28 de novembro de 2017

EM 1951... PELO AR

Arquivo Roteiro Turístico

               Aproveitando que um novo livro (Sobre o mar de Iperoig) está sendo lançado em Ubatuba, desta vez abordando a história da aviação na cidade, quero apresentar uma página, de 1951, do nosso primeiro roteiro turístico que se tem notícia:

               Ubatuba dista de São Paulo, em linha reta, 160 quilômetros. A viagem por via aérea é deslumbrante, principalmente para quem a faz pela primeira vez. Após a travessia do planalto e da crista da Serra do Mar, surge o oceano imenso, todo azul, com suas ilhas esparsas, as praias sinuosas, os costões batidos pela alva espuma, os esporões da serra, cobertos de densa mataria, mergulhando no mar, as várzeas sulcadas pelos rios que vão terminar quase sempre formando restingas, e os povoados de pescadores.
               Ubatuba dispõe de ótimo campo de pouso. Sua pista, de 1000 metros permite, se necessário, a aterrissagem dos grandes aviões da rota Rio de Janeiro – São Paulo. Como a cidade de Ubatuba fica exatamente a meio caminho da linha Rio - São Paulo, já existe funcionado um posto rádio telegráfico e, brevemente vão ser iniciadas as obras do futuro aeroporto.
               Diariamente ali pousam aviões de aeroclubes e de particulares, e a “VALPAR”, companhia paulista de aviação, com escritório em São Paulo, transporta passageiros para Ubatuba. Uma viagem pela “VALPAR”, que se utiliza de aviões “Stinson” para três passageiros, dura aproximadamente 50 minutos.
               Esse serviço regular de voo para Ubatuba, já está funcionando em caráter experimental, partindo aviões , às 9 horas e regressando no mesmo dia, às 14 horas.

               Também a “STAR”, companhia de táxi aéreo, de São Paulo, transporta passageiros para Ubatuba, cobrando pelo tempo de voo.

             A seguir, apresento parte do texto que fiz em 30 de abril de 2002, com Dona Silvia Pollaco Patural, esposa de Jean-Pierre, o autor da façanha abaixo, marcando uma contribuição à aviação em Ubatuba. De acordo com um dos autores do livro que está sendo lançado, ele será citado no relato.

Arquivo Patural



  O barco ajudava, mas mesmo assim, devido ao gênio de praticidade do meu marido, se fazia necessário outra alternativa de transporte que diminuísse a perda de tempo. Havia também, no caso do barco, uma dependência das condições do mar. Nesse ínterim já tínhamos construído a nossa primeira casa no Ubatumirim. Assim, Jean-Pierre resolveu adquirir um avião, ou melhor, encomendou as instruções de uma empresa francesa. Novamente o nosso quintal em Taubaté se transformou. Agora era um hangar. Logo estava pronta a fuselagem; as asas deram mais trabalho. Um serviço que mais me impressionou foi a confecção da hélice: dos pedaços de madeira marfim surgiram as pás com suas aerodinâmicas perfeitas. Depois de pronto ele saiu do nosso quintal seguindo o mesmo modo da retirada do barco.
  1. Dona Silvia (Arquivo Patural)
          
              Após aprovação do Centro Técnico Aeroespacial de São José dos Campos, Jean-Pierre tirou brevê de piloto no Campo de Marte, em São Paulo. Aí foi uma maravilha!!! A partir de Pindamonhangaba, pois em Taubaté não havia campo de aviação, levávamos trinta e oito minutos até alcançarmos a nossa área de pouso no Ubatumirim, que construímos na proximidade da nossa casa.  Na cabine havia espaço para duas pessoas; a Patrícia ia no colo.
       EM TEMPO : A história dos franceses (Jean-Pierre e dona Silvia) está no blog desde junho de 2011. Boa leitura.

domingo, 26 de novembro de 2017

GAVIÃO NO LIXO

Carcará na Cocanha (Arquivo JRS)

               O meu parente Mané Bento, nascido na praia da Fortaleza, conforme eu disse noutra ocasião, se pudesse ter estudado seria um advogado imbatível porque tinha as respostas na ponta da língua. “Com o Mané Bento é assim: bateu levou”, dizia a minha saudosa mãe. Ah! Ele também era muito ardiloso! Vovô Armiro, costumeiramente bronqueado com ele, dizia: “É mais sagaz do que trabalhador esse primo”.
               As respostas desse meu parente eram lógicas, inteligentes e imediatas. Mas isto não é muito comum até hoje! Afirmo isto porque, dias atrás, um jovem motorista desatento – ou fazendo pouco caso do alheio, não sei – estragou alguns blocos que se encontravam empilhados numa calçada, numa rua próxima de onde moro. Bateu com o caminhão numa manobra imprudente. O morador, proprietário dos blocos, saiu na hora reclamando, querendo resolver o prejuízo que era evidente. O motorista, bem jovem, se mostrou insensato e sem nenhuma educação de berço: “Eu não vou pagar nada. Quem mandou você deixar os blocos na calçada?”. Aí, na maior tranquilidade, o proprietário pegou o telefone e chamou a polícia. Fotografou tudo de diversos ângulos. Enquanto esperava disse: “Quer dizer que se o meu filho estivesse na calçada você poderia matar o menino que estava certo, com a razão? E saiba de uma coisa: você pra mim é moleque, entendeu?”. E continuou debulhando um rosário de argumentos que me fez recordar do meu finado parente, primo da vovó Eugênia.

               Eu fui andando sem esperar pra ver a solução do caso. Mas pensei: “Outro Mané Bento, com tudo na ponta da língua, corrigindo gavião que se acostumou em revirar lixo”.

sábado, 25 de novembro de 2017

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

ANTONIO GOMIDE


Obras de Antonio Gomide (Arquivo Roberto Zsoldos)

            O artista modernista, na segunda metade do século passado escolheu Ubatuba para se inspirar, produzir seus últimos trabalhos e viver seus últimos dias.
            De acordo com a pesquisadora Lisbeth Rebollo Gonçalves, “o modernismo, como movimento de modernização da sociedade, é essencialmente urbano e reflete a consciência histórica dos novos tempos: as tecnologias inventadas pelo homem laicizam as dimensões da arte”. Era o começo do século XX.
            “Para o Brasil, no campo das artes, o acesso a essas linguagens [expressionismo, fauvismo, dadaísmo...] significa o compasso desejado para a contemporaneidade, espelha a vontade de modernização social, a sua esperança; provoca a metamorfose do gosto e, neste quadro mundial, a necessária reinterpretação da cultura brasileira. (...) A história da nossa arte se constrói, em parte, com uma ação organizada de grupos intelectuais e, de outro lado, com a participação de personalidades independentes, cuja produção artística abarca o presente, fundamentando o futuro". Antonio Gomide pertence a esta geração [da Semana de Arte Moderna – 1922].

            Antonio Gonçalves Gomide nasceu em Itapetininga (SP), em 1895. Provavelmente, o encontro com a cultura caiçara, com as belezas inspiradoras de Ubatuba, ocorreu entre 1934 e 1937, enquanto viajava pelo interior do estado de São Paulo, colaborando com o levantamento das igrejas do século XVII para o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Esse importante artista, depois de ter vivido na Suiça e em Paris, em 1964 muda-se para Ubatuba. Dois anos depois fica cego. No dia 31 de agosto de 1967 faleceu em nossa cidade, bem perto do mar e de tudo que tanto amou nos últimos anos.


            Não seria interessante a nossa cidade (Ubatuba) homenagear Antonio Gomide no cinquentenário de sua morte, promovendo algum evento para que mais gente venha apreciar seus trabalhos e sentir orgulho por estar no ambiente que o acolheu em sua última fase da vida?

terça-feira, 21 de novembro de 2017

CANSADO DA VIDA

Por que fugir de tantas belezas? (Arquivo JRS)

               Conforme eu já escrevi, muitos dos caiçaras, sobretudo os que nasceram sob influência do turismo, traíram seu espírito original, foram corrompidos pelo lema: “vida fácil  é que vale a pena”. Assim foi com o “Menino”. "Não entre nas drogas. Não fuja das belezas que estão ao nosso redor. Faça bom uso da sua vida" , aconselhava o meu padrinho Tobias aos filhos de tantos que por ali zanzavam meio que perdidos. 

               “Menino”, filho do Chico Caçapa, logo cedo se tronou um viciado em um monte de porcarias. De vez em quando realizava algum trabalho que lhe rendia alguns trocados. De tanto infernizar o pai, conseguiu a sua motocicleta, dessas “cabritas” que vivem se esquivando das batidas policiais. Numa dessas fugas, o “Menino” bateu no poste na beira da estrada e morreu. Era 22:30 horas, de uma noite tranquila de primavera. O céu estava estrelado, mas algumas nuvens se mostravam como tempo virando para o final de semana. Ainda bem que, no meio do caminho, o imprudente motociclista deixou a garota que o acompanhava. É ela quem nos conta o contexto do trágico fato:


               “Eu e ‘Menino’ tínhamos um caso há meses. Era o meu namorado. Naquela noite nós vínhamos do bairro vizinho, onde havia um produto novo com uns caras, gente nossa. Na pista, hesitamos em entrar pelo outro caminho de casa, retornamos à pista. Atrás de nós vinha um carro, na mesma velocidade que nós. Uma buzinada nos alertou, evitando assim um acidente logo ali, onde, provavelmente eu também teria chegado ao fim. O carro passou por nós. ‘Menino’ acelerou bravo por ter sido ultrapassado e porque estava com a cabeça cheia. Logo depois da ponte, ao ultrapassar o dito carro, ele chutou o retrovisor,  xingando muito o motorista. Eu ralhava, mas ele continuava na loucura. Não vimos o condutor porque o vidro era escurecido. Para despistar, logo entramos na primeira saída asfaltada. A intenção era retornar ao Largo para mais um rolê, tomar uma cervejinha e escutar um sonzinho antes de ir para casa dormir. Estávamos voltando quando avistamos o tal carro entre os policiais. Ali eu desci enquanto o meu parceiro fugia a toda velocidade. Vi em seguida as viaturas saindo, na mesma direção, no rumo que o ‘Menino’ tomou. Fiquei nervosa. Trinta minutos depois, estando em casa, sem conseguir notícia alguma com os mais chegados, recebi a mensagem de uma amiga: ‘Menino morreu. Bateu num poste. Estava correndo demais. Sinto muito’. Eu também senti muito; ele não era uma pessoa ruim. Só que estava cansado da vida”.
     

VIVER NAS ILHAS

Cotidiano de um ilhéu (Foto de Lucas Lima)


               Eu nasci num tempo onde os laços entre os ilhéus e os caiçaras de terra, em Ubatuba,  eram bem fortes. O primo Eugênio, nativo da ilha do Mar Virado,  narrava a vida que levava na ilha da Vitória, tio Nelson e tio Salvador descreviam suas idas e vindas regulares para dar atendimento aos ilhéus, Pedro Cabral, em seu armazém, no Perequê-mirim, era uma referência aos “vitoreiros”, Pedro e Vera, durante seis anos, viveram ministrando suas aulas na ilha dos Búzios. Ambas (Vitória e Búzios) fazem parte do arquipélago de Ilhabela. Em outros textos eu já descrevi mais detalhadamente outras situações  desses caiçaras que se adaptaram às ilhas mais próximas de nós. Tem até a história do russo que por lá foi acolhido há muito tempo, sem que ninguém saiba ao certo qual foi o roteiro que o trouxe de tão longe para se acaiçarar na ilha da Vitória. Hoje vou reproduzir uma parte de um texto que encontrei na revista Veja São Paulo, de 05/02/2014, texto de Angela Pinho e fotos de Lucas Lima.

               Para ensinar história, o cenário ideal poderia ser Búzios ou Vitória, a 28 e 40 quilômetros de Ilhabela, respectivamente. Ao chegar, o visitante tem de chamar algum morador para buscá-lo em uma canoa a remo. É a única embarcação que consegue atracar no “porto”: uma fileira de tábuas de madeira em cima das pedras. Há nas duas ilhas resquícios de antigos cemitérios indígenas datados da pré-história. Os atuais moradores misturam traços desses primeiros habitantes com os de europeus, mas nunca se soube direito como os estrangeiros foram parar no local. Um trabalho da arqueóloga Cíntia Bendalozzi pode ajudar a esclarecer o mistério. No fim do ano passado, ela encontrou um documento que mostra a doação de Búzios, no século XIX, para um filho de portugueses. Nos próximos meses, a especialista fará expedições para se aprofundar na investigação. “Há relatos de caiçaras sobre a presença de grande volume de louça em meio a ruínas de pedra e cal”, afirma Cíntia.
               Ali, os moradores plantam o que come em roças e criam galinhas. Em Búzios, há dois mercadinhos, onde se compra de macarrão a bebida. Uma garrafa de Velho Barreiro custa 11 reais, quase o dobro do que em Ilhabela. A inflação da cachaça não incomoda, pois o consumo caiu desde a chegada da igreja evangélica Congregação Cristão no Brasil, há mais de uma década. “Todo junho tinha festa com forró e quentão. Agora a maioria é crente”, afirma o pescador Olegário Costa, um dos poucos que não se converteram.
               Como não há posto de saúde nesses lugares, a cada trinta ou quarenta dias, uma equipe da prefeitura de Ilhabela aparece por lá com médico, enfermeiros, dentista e psicólogo. As mulheres costumam ter filhos no continente, principalmente desde que uma das moradoras de Búzios morreu no parto, em 1980. “Ela tentou ir para o hospital na última hora, mas o mar não deixou”, lembra Benedita Costa, de 51 anos. “A criança sobreviveu, ela não”. A mãe de Benedita também passou por um aperto há quinze anos, quando levou uma picada de cobra. Acabou salva com ajuda de um helicóptero da Marinha.

               Que tal visitar a minha publicação de 17/03/2011 (A vitória foi dos peitos)?

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

PRIORIDADES

É a poesia do mano Mingo para homenagear nossos avós maternos, da praia da Fortaleza.


Vovô Armiro (Arquivo JRS)

Vovó Eugênia (Arquivo JRS)
Dona Laurentina, nossa mãe (Arquivo JRS)

Vovô plantava banana, mandioca,
cana-de-açúcar, feijão...
Vovó cultivava rosa, jasmim,
cravo, margarida, gardênia...
Vovô José enchia as nossas barrigas,
já as nossas almas
eram alimentadas por Vovó Eugênia.

A VERDADE ESTÁ NA NATUREZA

Garça na beira do rio (Arquivo JRS)

               A história do mundo é uma infinidade de deslocamentos. Tudo se locomove buscando as melhores adaptações; todos os animais fazem isso. Os homens também estão em permanente busca por melhores lugares para a sua sobrevivência. É daí que vem os ajuntamentos que originaram os povos diversos, as culturas tão diferentes entre si.
               Os caiçaras resultam dos sobreviventes de três grupos básicos: índios, portugueses e negros. Neste lugar, entre a serra e o mar – um cercado natural! -  conseguiram uma simbiose que firmou a cultura caiçara. Aqueles que ultrapassaram a serra – “os de Serra Acima” são denominados de caipiras.
               Desde os primórdios da história brasileira, caiçaras e caipiras mantiveram contatos de toda espécie: comercializavam seus produtos, tinham festas em comum, se davam em casamentos... Mas sempre se mantiveram em territórios distintos. Porém, a partir do advento do turismo, a realidade do litoral (espaço caiçara) se tornou um poderoso atrativo econômico, “lugar de ganhar dinheiro”. Assim, a partir da metade do século XX, os caipiras vieram morar e trabalhar em Ubatuba, deixaram as suas lidas de campo (criar animais, produzir queijos, fazer farinha de milho etc.) e se encaixaram nas funções de serviço ao turismo.
               Meu avô Armiro, especialista em embaralhar as palavras para nos transmitir algo mais profundo, deste jeito começou a prosa num dia chuvoso: “Os judeus pedem sinais, os gregos andam em busca de sabedoria e os caipiras descem a serra doidos por dinheiro! É gente boa essa caipirada, mas fazem de tudo para levar vantagem. São cismados, não se importam em serem amigos de verdade”.
               O tempo passou...passou...passou... Outros grupos de retirantes chegaram ao litoral, fugindo de condições ruins de sobrevivência, deixando suas raízes em territórios distantes. Local de sobrevivência passou a ser sinônimo de lugar de ganhar dinheiro.
               Quando a meta é ganhar dinheiro, o resto não tem muita importância. É por isso que se verifica um aumento assustador das degradações ambientais (queimadas, invasões de morros, apropriação de áreas públicas, devastação de mangues e gamboas, esgotos nos rios etc.). Ou seja, muitos componentes dos diversos grupos que aqui chegaram não têm uma relação afetiva com o ecossistema local, não desenvolveram uma interdependência com a natureza que nos rodeia. Vieram para ganhar dinheiro, na ideia de "colônia de exploração" aprendida em História. Muitos do lugar também traíram seu espírito original, engoliram a isca da “vida fácil é a vida que importa”.
               No fim da vida, vovô Armiro dizia, após ver tantos estragos no nosso ambiente: “As épocas mudam os espíritos. O que hoje muita gente tem como mérito, até bem pouco tempo era defeito, coisa que até era pecado pensar. Quer a verdade? A verdade está na natureza!”.

               

sábado, 18 de novembro de 2017

PROSAS AVULSAS



       
Fandango caiçara: isso eu sei que vale a pena! (Arquivo JRS)

            Por estes dias tenho notado vários grupos passando pelo meu bairro e pedindo doações. Quase sempre são grupos de igrejas, pedem para “fazer cesta básica de Natal”,  para “ganhar pontos numa campanha” etc. Regular mesmo, por todo o ano, são aquelas duplas de uma determinada denominação religiosa. A seguir, apresento algumas das prosas que escutei de passagem pelos  meus caminhos. Algumas delas, interessantes, são fragmentos que escutei sem querer, prosas avulsas que fiz questão de registrar seguindo o conselho de Fernando Pessoa: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
  

               Dona Veridiana atendendo duas senhoras no portão:
               “Ora, de novo vocês?!? É toda semana isso! Não sabem que eu sou católica e que neste momento estou fazendo o almoço? Vocês precisam considerar isso! Vocês me conhecem, sabem da minha correria. Agora me desculpem porque eu tenho mais coisas a fazer”.

               Dona Eurídes foi chamada da rua. Lá de dentro, sem abrir o portão,  perguntou: “Quem tá aí?”. Eram duas mulheres, acompanhadas de duas crianças: “Nós queremos falar sobre Jesus. A senhora pode nos atender?”. Não”. Foi a resposta dessa caiçara, gente dos Barroso. E continuou: “Vocês são quantas?”. Eis  a resposta que veio de fora: “Estamos em quatro: duas adultas  e duas crianças”. Então...” – continuou a humilde caiçara – “conversem entre vocês a respeito de Jesus porque eu ainda tenho muito o que fazer na minha casa; logo logo o meu marido vem da oficina morto de fome e não vai aceitar a  desculpa dessa prosa sobre religião”.

               Da Dona Margarida, esposa do Seo Hildebrando, ao receber duas senhoras no portão, deu os seus motivos porque era presbiteriana e não se conteve na bronca: “Usem o bom senso antes de chegar nas casas dos trabalhadores neste horário! Se vocês não tomarem jeito, logo serão chamados de seguidoras da igreja do arroz queimado!”.


               Agora, o que não me sai da lembrança foi a cena no açougue do Zé Ioiô, no Perequê-mirim, onde o Zé “Canela”, um exímio desossador trabalhava. Naquele tempo qualquer estabelecimento desses tinha um toco de madeira bem resistente, entre o balcão e a geladeira, bem no centro, onde o machado estava  sempre em ação, cortando os ossos do animal abatido, sobretudo as costelas que tanto sucesso faziam na sopa nossa de cada noite de inverno. Então imagine duas distintas pessoas chegando ao balcão, começando a falação, tentando converter o “Canela”, inveterado cachaceiro na época, a seguir  tal religião. Assim foi a cena: com o machado na mão, debruçado sobre o significativo tronco, metido num avental todo ensanguentado, suado, ele esbravejou: “Não me venham com este papo porque eu não sou testemunha de ninguém, nem de mim mesmo! E nem quero ser um dia! Só sei que vou continuar no meu futebol e na minha pinguinha, tá bom?!? Isso eu sei que vale a pena!”. Quem é que iria continuar prosa dessa num momento assim?

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

FEIRA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL - RELATOS (X)

A escola tem um papel importante na nossa formação (Arquivo Ubatuba histórica)

“O LIXO QUE VIRA PAPEL” – Marzi Marques do Valle

               Sou professora do Jardim III, na EMEI  (Escola  Municipal de Educação Infantil) da Estufa I, em Ubatuba. Em janeiro deste ano [1993], após ter participado do Curso de Educação Ambiental realizado pela Fundação Vivendo a Terra, percebi que tinha, através da Educação Ambiental, a oportunidade de realizar um trabalho interdisciplinar ampliando assim os recursos dos quais dispunha como professora. Pondo em prática, desta forma, algumas das ideias que me passaram durante o curso.
               Inicialmente pensei na reciclagem do lixo como um todo, utilizando a sucata como matéria para o desenvolvimento de diversas atividades na pré-escola, recurso com o qual já estava familiarizado. Nesse momento surgiu a primeira dificuldade, que foi pensar no que fazer com o material trazido pelos alunos, porque eles se referiam ao que já estavam trazendo para o trabalho de compostagem orgânica, trabalho do qual eu tinha desistido de fazer, em vista de grande quantidade de alunos, por serem novos para manipular produtos orgânicos e pelos riscos à saúde. Foi a partir daí que resolvi realizar uma atividade com reciclagem de papel, aproveitando as sobras de que dispúnhamos. Estruturei a atividade e me deparei com a necessidade de criar um nome. Assim, nada mais justo do que propor aos próprios alunos que escolhessem um nome, e após uma discussão entre eles, foi sugerido o título “O lixo que vira papel”.
               Definida a estrutura e escolhido o nome para a atividade, iniciamos os trabalhos. Primeiramente era de fundamental importância para o bom desenvolvimento da atividade, e, principalmente para a sua efetividade pedagógica, que fossem apresentados aos alunos a base teórica acerca do tema. Essa fase estava baseada em atividades de discussão e troca de ideias, onde comecei a conversar com a classe sobre a degradação do meio ambiente, o porquê da necessidade da reciclagem do papel para evitar o desmatamento desenfreado, como forma de economia de energia  e matéria prima. Tudo isso com indução, através de algumas perguntas por mim elaboradas. A partir daí, passamos a trabalhar com o processo propriamente dito de reciclagem de papel e, iniciamos as atividades práticas de confecção de papel artesanal. Depois de concluída essa fase, utilizamos o papel produzido para atividades de expressão artística através de registros de desenhos.
               Em função do grande envolvimento e desempenho obtido pela atividade junto aos alunos, firmamos um compromisso de realizar a atividade em uma outra oportunidade, para colocarmos em prática novas ideias e descobrir novidades com muita criatividade.
Conclusão:
               Esta atividade valeu a pena, porque através dela conscientizamos os alunos da importância e necessidade de reciclagem de “lixo”. Também o fato de ter outro professor envolvido ajudou muito, sem contar o prazer de poder passar a experiência para outra pessoa.

Reciclando papel
Material: papel usado; liquidificador; balde; bacia plástica ou tigela; pesos e amido.

Procedimento: 1- Encha o balde com água e coloque o papel picado, deixe de molho por algum tempo e macere o mesmo.   Depois  adicione  uma  colher  de  amido (maisena) para dar liga. 2- centrifugue o material para que ele fique pastoso. 3- Coloque em uma tigela. 4- Introduza a tela na mistura e retire-a com a pasta nivelada. 5- Vire a tela com a pasta em cima de um pano e com outro comece a tirar a água da superfície, pressionando. 6- Retire a tela, os panos e deixe o papel secar ao sol ou em forno moderado. Observação: para se fazer o mesmo trabalho utilizando folhas secas, não é necessário adicionar amido e pode ser feito com folhas aromatizadas para que o papel fique perfumado.

Em tempo: caso de você note algo que esteja ameaçando o nosso meio ambiente em Ubatuba, telefone para a Polícia Militar Ambiental: Fone: 38321397.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

FEIRA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL - RELATOS (IX)


Momentos de aprendizagem fora da sala de aulas (Arquivo JRS)


Retomo a publicar as ações de um grupo de professores na realidade do Litoral Norte Paulista, cujo resultado foi a Primeira Feira de Educação Ambiental, em 1993, na Escola “Capitão Deolindo”, em Ubatuba.

LITERATURA INFANTIL histórias de bichos – Meire Teles

               O trabalho aqui apresentado foi realizado com um grupo de crianças de terceira série da Escola da Divisa (Município de São Sebastião) e seu objetivo era propiciar a aproximação das crianças com os vários tipos de textos literários. A partir da recepção desses textos, foram desenvolvidas diversas atividades, que levavam sempre em conta a sensibilização para o que é específico da linguagem literária. É preciso que se diga que o curso foi dado em horário extra sala, uma vez por semana, durante aproximadamente três meses. O grupo era formado por vinte crianças provenientes de duas salas diferentes.  As atividades abrangiam a linguagem verbal, através da oralidade (debates, leituras, conversas e jogos de encenação) e da escrita (produção de textos) e a linguagem não verbal, através de figuras, desenhos e mímicas.
               A seleção de textos visava dar uma mostra das diversas possibilidades literárias: o conto de fadas, o conto maravilhoso, o poema e as fábulas. A música também foi utilizada e a escolha obedeceu ao critério temático. O tema que amarrava os textos era o mundo dos animais. Dentro desse mundo, o pássaro foi o mais trabalhado. Destacando-se no mundo animal como literatura, destaca-se no mundo das palavras pela forma incomum, pela beleza, pela musicalidade, pelo ritmo, pelo voo...
               Durante as descobertas foram discutidas questões como a relação do homem com o meio, tendo por base o respeito e a integração.

               “O menino é o pai do homem”

               Como professora de língua e literatura eu tenho preocupação especial com a leitura. Penso que o texto, e principalmente o texto literário, tem um importante papel a desempenhar na formação do homem, desde que entendamos que essa formação deva emancipá-lo enquanto sujeito, possibilitando-lhe autonomia e visão crítica do mundo em que vive, colocando-o, assim, em prontidão para, através da práxis, transformar a realidade. Para tanto, é essencial, desde cedo, a criança em contato com a literatura oral e escrita. O trabalho se deu a um tempo com o indivíduo e com o grupo: leitura, reflexão, debate, reflexão, ação, reflexão. A interdisciplinaridade tornou-se viável e a intertextualidade foi garantida pelo trabalho do professor que coordenou o projeto.
               As crianças da Divisa gostaram do curso e os resultados estão registrados em relatórios disponíveis aos interessados. Assim como nós, professores, merecemos muito mais do que ganhamos, eu acredito que as crianças e os jovens merecem muito mais do que livros didáticos. Está em nossas mãos propiciar-lhes o encontro com materiais mais ricos, assim como está em nossas mãos transformar a nossa atual condição.

Bibliografia:
Para professor COELHO, Betty – Contar histórias, uma arte sem idade.
                                      MEIRELES, Cecília – Problemas da Literatura Infantil

Para alunos

POESIA:       A ARCA DE NOÉ – Vinicius de Moraes
                      A TV DA BICHARADA – Sidônio Muralha
                      ISTO OU AQUILO – Cecília Meireles
                      OLHA O BICHO! José Paulo Paes
                      PÉ DE PILÃO – Mário Quintana

PROSA:        A TERRA DOS MENINOS PELADOS – Graciliano Ramos
                     A MULHER QUE MATOU OS PEIXES – Clarice Lispector
                     O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE – Clarice Lispector

                     COMO NASCERAM AS ESTRELAS – Clarice Lispector

domingo, 12 de novembro de 2017

TENTAÇÃO DO HOMEM

Fim da Picada: onde Totonho foi tentado (Arquivo JRS)

               Totonho do Rio Abaixo tinha um olhar bobo,  “com as castanhinhas pequenas nos céus brancos”, parecendo bonzinho. Só parecendo! O jovem da esquina, que nem o conhece há muito tempo, me disse assim:  “Na real, ele se faz de morto para engolir os vivos. É um puta pilantra, sabia?”. Sim, eu sabia. Eu sei!
               Por ter um “caráter enviesado”, conforme expressão da minha saudosa vó Eugênia, um dia Totonho passou por uma crise existencial e se converteu a uma religião evangélica. Parecia um novo homem! Vestia terno e gravata, se pegava com a Bíblia e não perdia um culto da sua igreja. Parecia um homem novo até que um dia foi tentado. Não sei dizer o motivo que o levou a me escolher para contar o seu dilema.



               “Sabe, Zé, que uma noite dessas, após eu sair do templo, senti uma velha tentação: quis ir à ‘Eva’ [zona de meretrício]. Dali mesmo eu telefonei para um táxi. ‘Me leva ao Perequê-açu? O endereço eu vou indicando’.  Conforme o carro rodava, fui tirando o paletó. Deixando-o dobrado, ao lado da Bíblia Sagrada, no banco. O motorista me olhava discretamente pelo retrovisor.  Chegando no ‘fim da picada’, no jundu do Perequê-açu, paguei e pedi o cartão do motorista para o retorno. Sujeito educadíssimo, viu !?! Com o consentimento dele, deixei no assento do carro o terno e a Bíblia. Na entrada hesitei, parecia que eu estava entre duas forças. Adentrei ressabiado, a dona veio me atender. Me indicou uma mesa. Pedi uma guaraná. Em seguida vieram as ‘meninas’, cada uma mais sedutora que outra. Que maravilha! Fui me esquivando, meio que sem jeito. Pedi mais um refrigerante. Uma loirinha se encostava em mim. Troquei de mesa uma vez...mais uma vez... e uma vez mais. Queria pedir uma cachaça, um ‘rabo de galo’. Estava doido para agarrar a menina com tatuagem num ombro, de mamicas enormes!  Nisso veio uma voz na minha cabeça: ‘Não faça isso, Totonho. Não volte a cometer esse pecado’. Então pensei na minha mulher e nos meus filhos... no meu caçula que acabara de nascer. Foi quando tive forças: me levantei, pedi o aparelho no balcão e liguei para que o taxista viesse me buscar. Suando como um desesperado, paguei pelos refrigerantes –dez contos cada, acredita? -  e saí. O pessoal da zona não deve ter entendido nada do que aconteceu. Ou melhor: do que não aconteceu! Aguardei poucos minutos, recebendo aliviado o vento que vinha do mar. O tempo tava virando pra chuva no dia seguinte. No mesmo local que havia embarcado eu desembarquei: perto do nosso local de oração. Novamente paguei e agradeci pelo serviço. De tão atordoado acabei esquecendo a Bíblia e o paletó no carro. Sem ter percebido o fato, permaneci um tempo parado olhando para o céu, pensando na prova que eu passei.  Que provação! As tentações estão no mundo! E eu também estou! Alguns minutos depois um carro parou na guia, a porta se abriu e o motorista muito honrado me entregou os meus pertences. Agradeci-lhe muito pela honestidade. Ainda permaneci ali um tempinho. Voltei para casa e me resignei em esperar o tempo do resguardo, em respeitar a recuperação da minha mulher. Quem me deu forças foi Deus. FOI DEUS!”
               

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

O HOMEM DO SACO

Eu e Avedis (Arquivo JRS)

               Numa distante tarde com pessoas queridas, eu e o amigo Avedis, caiçara do Perequê-açu, conversávamos sobre a simplicidade do nosso tempo de criança, onde a família extensa (avós, pais, tios...) era o eixo principal da nossa educação.  Lembramos de uma história em comum daquele tempo. Assim entramos no tema da educação.
               Educar assustando: eu desconfio que em outros lugares além do nosso existiu  (ou continua existindo) esta metodologia. Eu também escutei a história do Homem do saco! Pelo que nos falavam, era um andarilho. Ninguém sabia de onde vinha nem pra onde ia, mas uma coisa era certa: pegava crianças desobedientes.
               A nossa mãe nos alertava para não andar sozinha ao escurecer. “Um homem velho, com barba grande, fedido ao extremo, passa de vez em quando pegando as crianças que perambulam sozinhas, fora de hora. Ele tem um saco sujo às costas, onde põe as crianças. Depois as leva para um lugar misterioso, que ninguém sabe onde é. Aquelas crianças que ele pega nunca mais voltam para suas casas, desaparecem”.
               Não me lembro se eu tinha muito medo. Acho que não, mas... ao avistar um desconhecido barbudo, eu logo tomava outro rumo, entrava no mato, me escondia. Recentemente um primo me confessou: “Eu sempre tive medo do homem do saco; por isso sempre andava acompanhado por mais alguém, de preferência mais corajoso do que eu. Tudo por causa desse homem do saco que eu nunca vi, mas que talvez exista”.
               Hoje digo que nossas mães estavam nos educando com tal história. Não era muito agradável essa pedagogia assustadora, né? Mas era assim no senso comum do nosso lugar. E a gente foi aprendendo a escolher os momentos mais propícios para sair com tranquilidade de casa, a selecionar as amizades e os lugares onde os riscos eram menores.

               E o meu querido amigo Avedis,  caiçara e frei franciscano -  encerrou a prosa: “Tantas histórias e tantos encantos!”.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

BALAIO DE GATO

Travessia no Castelhanos (Arquivo Rê)

               O meu pessoal antigo usava a expressão “balaio de gato” para dizer que a coisa era confusa, embaraçada, muitas coisas juntas num só espaço, gente de diferentes lugares convivendo juntos etc.
               Em certa ocasião, em meados de 1994, desembarquei à tarde na Ilhabela com destino à casa dos amigos Vera e Pedro Antônio. Do Engenho Velho até o endereço deles tem um bom pedaço de chão para andar, cerca de trinta minutos para não ficar de brincadeira pela estrada de terra. Logo fiz amizade com um caiçara que iria bem mais além, para a praia dos Castelhanos. Seu nome: Décio. Levava umas compras num saco branco, desses de farinha de trigo. Ou seja, tinha uma longa jornada pela frente, iria escurecer antes mesmo que estivesse na metade do caminho. “Eu estou acostumado; sempre atravesso de um lado pro outro”. Sujeito agradável! Gente da gente! E eu, conforme o hábito, fui escutando e especulando. Nem percebi o tempo e a distância. Achei bem interessante a história do Décio.

               “Meus pais sempre fizeram questão de contar as histórias deles, desde os seus antepassados: de onde vieram e como as coisas aconteceram naquela época. Por parte de mãe, meus bisavós eram gente da África e foram trazidos como escravos para o Brasil. Ficaram no Castelhanos após um naufrágio. Hoje são muitos os seus descendentes. Por parte de pai, eram italianos da região de Nápoles, comerciantes que tiveram de vir para cá por causa de guerras na terra deles. Foi aqui na ilha que os meus pais se conheceram, se casaram, tiveram nós (oito filhos) e nunca mais saíram daqui. Castelhanos é um pouco longe de tudo, mas a gente está acostumado a andar por terra e por mar”.

               Me despedi dele com aquela sensação de que nunca mais o veria. Triste, né?!?

                Que balaio de gato, gente!

terça-feira, 7 de novembro de 2017

CARÊNCIA DE SONHOS

Tia Maria Mesquita e neta  (Arquivo Alix)

               A minha saudosa tia Astrogilda, de acordo com o meu pai, morava no morro da praia do Pulso: “A casa do tio Anastácio, pai da tia Astrogilda, era pra cima da barra, no pé do morro. Hoje, a praia do Pulso, o lugar onde me criei, é só casas de ricaços. Lá a gente nem pode entrar”. Essa minha tia, que nasceu tão perto do mar (aproximadamente cinquenta metros), ao morrer habitava o Morro das Moças, bem longe da praia, na rua que já levava o seu nome: Rua Astrogilda da Conceição. Foi uma tia que me marcou muito devido à garra de lutar pelos nossos direitos, pela questão das terras da Caçandoca.
               Tia Maria Mesquita foi outra mulher decisiva em muitos momentos da minha vida. Também nasceu no jundu da praia da Fortaleza. Assim mamãe explicou para nós: “Ali no Canto do Cambiá era a casa do tio Onofre Mesquita, pai da tia Maria que foi esposa do tio Genésio”. Também terminou os seus dias longe da praia, no bairro da Estufa II.
               A tia Maria, assim como a tia Astrogilda, caiçara de outros tempos, tinha muita sensibilidade, percebia as coisas de longe. Um dia, depois de tê-la visitado com um amigo, esta foi a expressão dele: “A sua tia tem uma alma nobre, tem algo divino em si”. Creio que essa percepção decorreu da narrativa da titia a respeito da sua infância, quando havia muita pobreza. Depois, com o advento do turismo, de como era a sua lida como doméstica, tendo de andar a pé todos os dias até a praia Vermelha [distante quatro quilômetros] “para trabalhar na casa do doutor Paulo Sérgio”.
               Entrando numa preocupação dela naqueles dias, continuou a tia Maria:
               “Tem gente que carece de valores. Digo isso porque aqui perto vejo bem isso quase toda noite quando vou dar uma espiada na rua: uma moçada, gente daqui mesmo, até os filhos da comadre Maria, fumando maconha no pé daquele muro ali. Pra quê? Pra quê serve qualquer droga? Digo que é pra provocar ilusão no pobre! Quem é iludido não enxerga aquilo que deveria enxergar, leva vida de ovelha”. Então lhe perguntei se aquilo não seria miséria cultural. E a resposta dela: “Pode ser, Zezinho. Só sei que é carência de valores! Eu já tentei conversar com esses jovens várias vezes, mas eles até dão risada das coisas que falo. Na verdade, os pais dessa juventude, desses jovens, não sonharam eles; foram criados largados, sem nenhum projeto de vida. Como é que posso eu jogar um caroço de milho no cisqueiro, não cuidar e esperar que dê uma bonita espiga?”.
               Nisso me lembrei das palavras do poeta: “Não adianta ao velho ganhar a discussão com os moços; a vida está do lado dos moços”.

               É isso, tia Maria! Bençãos em sua memória é o que desejo!

domingo, 5 de novembro de 2017

NATAL VEM, NATAL VAI.

Tio Maneco e Otávio, foliões de outros tempos (Arquivo Ubatuba Histórica)

               Para falar do Natal atual, preciso falar dos vividos em outros tempos, quando ainda vivia na praia do Sapê. Ao se aproximar o tempo litúrgico do Advento, vovó Martinha, Maria Balio, Livina, Ana Cruz e outras mulheres da comunidade se embrenhavam na restinga, na Queimada, em busca de musgo em diversos tons, de pequenas plantas e de cascas de cigarras para compor o presépio da capela, vizinha da venda do João Pimenta, o “Incréu”, onde hoje se chama Largo do Sapê.
               O presépio era a atração de todas as crianças. Nós ficávamos olhando os bois e carneiros arrumados próximos da manjedoura, cuja cobertura de sapê era um capricho do tio Chico. Naquele tempo eu acreditava que os bichos também recebiam presentes. Afinal, eles ficavam ali paradinhos, contemplando o Menino Jesus por mais de mês. Só sei que a gente sempre recebia algum agrado nessa época do ano. Ah! Também tinha vinho! Nunca soube se era vinho suave ou seco, mas sempre ficava  bem doce, quase melaço, porque mamãe sempre teve o hábito  de adoçar vinho.
               Tempo de Advento era tempo de Folia. A cada noite deveríamos ficar atentos, pois um grupo de cantadores andava a correr as casas cantando a história de Jesus. Na escuridão, sem nenhuma lamparina acesa, da tarimba mesmo eu escutava atentamente cada verso. E como eu admirava a narrativa da aventura de Jesus ao escutar que “bem podia ter nascido em colchão de ouro fino, mas para dar exemplo ao mundo, nasceu pobre o Deus-menino”! Pensava: tal como nós esse Jesus! Só faltava aparecer no dia 25 de dezembro, esganado para comer a macarronada e tomar do vinho adocicado pela mamãe! Ah! E também era capaz de avançar no nosso omelete reforçado com farinha de mandioca! Um pouquinho de tudo... Como não era muito, a gente escutava da mamãe: “Façam regar porque tem de dar pra todo mundo”.

               Natal de hoje tem muitas coisas, mas não era o tudo daquele tempo.

FOLIA NA CADEIA

Antiga cadeia de Ubatuba, na praça Nóbrega (Arquivo Ubatuba histórica)

               Cadeia é lugar triste. O pai do Joaquim Sirvino dizia: “Cadeia não é lugar de homem. Ali a pessoa fica confinada, sem participar da vida comum de todos”. De vez em quando, no meu tempo de criança, eu ouvia a palavra cadeia como sendo lugar de castigo para alguém que cometeu erro grave. Tanto por parte de pai como por parte de mãe eu tive parente que foi inspetor de quarteirão.
               O inspetor de quarteirão era uma autoridade local escolhido por quem era a lei máxima na comarca. Na verdade, o escolhido era um caiçara comum – roceiro-pescador – indicado para “representar a Lei” (a Justiça), resolver os casos mais simples ali mesmo ou encaminhar os casos mais graves (brigas mais violentas, intrigas por terras etc.) para o delegado da cidade. Tio Nelson fala do vovô Armiro, inspetor de quarteirão por vários anos, atravessando o largo, da Fortaleza para o Lázaro, remando com dois detidos por briga feia. “Um na proa, outro na popa e papai no meio, mas cada um com um remo”. Os dois ficaram uns dias na cadeia da praça; vovô teve que romper sozinho o mar na volta.
               Fidêncio e Teotônio escutaram a bronca, varreram o chão e depois foram recolhidos na cela vazia. Na outra se encontrava um dos Mesquita devido arruaça no carnaval. Cansados que estavam, não tardaram a dormir. Logo começaram a sonhar com festa em meio a bonitas toadas, com barulho aumentado cada vez mais. Nisso acordaram. Era um bloco carnavalesco que festejava na praça Nóbrega, com muita gente animada em torno de um boi que cabeceava pra lá e pra cá. Nele estava escrito Boi do Veiga. Tinha gente conhecida dos dois, mas muitos estavam fantasiados. A empolgação era tanta que os dois começaram a se sacudir ao ritmo da marchinha “Velho traz, velho leva”, do compositor caiçara Domingos Anagro. O Mesquita continuava roncando na esteira, num canto da cela, mas os dois logo se soltaram no refrão: “Ratambufe se despede desta tarde de folia/ Subindo a Maria Alves com arco de guatambu/ Velho traz, velho leva com prazer e alegria/ Agora com muita fome só mesmo um prato de angu/ Angu, guatambu... angu, guatambu...Velho traz, velho leva...Velho traz, velho leva enquanto esfria”.

               Após festejarem, cansados até... o soldado de plantão abriu a cela, mostrou as duas vassouras encostadas na parede e deu a seguinte ordem: “Agora vocês dois vão varrer toda a praça, juntar o cisco para depois jantar e dormir. A dona Donata trouxe arroz e peixe frito. Depois que saírem daqui vocês terão quinze dias para acertar as contas com ela, senão... voltam a festejar na cadeia”.