Corpo seco /\ |
Os
mais velhos contam histórias de corpos secos. Eles estão em vários lugares de
Ubatuba, inclusive em algumas das ilhas.
O
velho Sebastião Rita, natural da praia do Itaguá, contava de um que ficava na
Barra da Lagoa, por volta de onde hoje é o aquário, bem na região central.
Trata-se de um caso horrível. Encerra uma moral para a educação em família.
Ouçamos então:
“Corpo
seco existe, meu filho! Eu mesmo não vi. É como diz a minha velha: ‘Deus não me
chame por testemunha porque não vi...Me contaram’. Mas muita gente dá
testemunho e nunca mais se esqueceu do que viu. A história eu sei sim. Era
gente que morava na Jundiaquara: um casal com dois filhos. O mais velho não
demorou muito para ir para Santos em busca de trabalho que pagasse; o caçula, o tal de Bernardino
“Dindico” ficou com os pais.
Do
jeito que foi criado, nas regalias de caçula, Dindico tomou o caminho das
jogatinas e das bebedeiras. Os pais, já de idade, sofriam com isso. Até a quantia enviada de vez em quando pelo filho mais velho para aliviar o viver deles acabava
surrupiado, de forma violenta, para alimentar
o vício do vadio. Para envergonhar ainda mais os pais, o pilantra de vez
em quando dormia na cadeia por perturbar a ordem pública. O pai logo adoentou
de vez. De nada adiantava as súplicas da
mãe.
No
clarear de uma sexta-feira, a mãe pediu-lhe, após juntar algumas moedas, para ir à
cidade comprar remédio porque o pai agonizava. Os olhos do Dindico brilharam ao ver aquilo. Saiu xingando todo mundo, chutando os bichos, mas foi.
Passou
o resto daquele dia, passou o sábado...Somente no domingo, já na virada da
tarde, é que o miserável chegou batendo a porta e destampando panelas porque
estava faminto. A mãe chorava. Na pequena sala alguns da vizinhança velavam o
defunto. Dindico olhou para o corpo
amarelado e disse: ‘Morreu? Que morra! Antes ele do que eu!’. E deu meia volta
para ir de novo para um jogo de truco na Venda do Tião Giró. A mãe insistiu
chorando para que ficasse e ajudasse a levar o falecido até o cemitério. Tudo
inútil.
Chegando
na roda de colegas, foi criticado por não estar velando o pai. A resposta não
poderia ser outra: ‘Que morra ele que é mais velho!’. Nisso veio uma tempestade
não sei de onde. Alguns disseram que aquilo ‘coisa boa não era’. O dono do
comércio, temeroso a Deus, logo tratou de fechar as portas. Dindico perambulou
o resto do dia e varou a madrugada pelas poucas ruas da cidade. Pela manhã
estava em casa. Chegou xingando a mãe.
Não
demorou muito para que a velha também caísse de cama. A pouca gente da vizinhança
acudia quando podia, mas todos temiam o filho. Ele era violento com todo mundo.
Numa
manhã, da camarinha a mulher pediu que lhe trouxesse uma caneca de água. Ele
até trouxe, mas foi logo dizendo: 'Tá com sede? Toma, mata a sua sede e também
aproveita para morrer!'. A sofredora só disse isto: ‘Eu morro, mas você não
terá sossego nem mesmo depois de morto. Nem a terra há de querer o seu corpo’.
Não
demorou nada para que a mãe morresse. Em seguida, num ingazeiro que ficava
perto de onde morava o Dito Camburi, pegando uma timbopeva, Dindico
suicidou-se. Depois de enterrado, uma coisa terrível aconteceu: o corpo não
ficava sepultado. A população ficou assombrada. Decidiram colocar o corpo numa
canoa e abandoná-lo na Ilha Rapada. Mas quem disse que o mar aceitava o
defunto? Era um tal de canoa alagar, de onda apinchar o corpo no lagamar. Então
só restou o mangue da Barra da Lagoa. Jogaram ali.
Passou-se
o tempo, veio outra geração e mais outra. Num tempo de Natal, quando duas moças colhiam
limo por ali para montar o presépio na Igreja Matriz, ao tocar num toco seco, elas
escutaram: “Não arranquem tudo porque eu preciso de agasalho quando vem o
frio”. Elas sumiram dali que até esqueceram os balaios. Ao contarem
o ocorrido na cidade, os mais velhos se lembraram do ocorrido há tantos anos.
Aquele toco era o corpo de Dindico. A praga da mãe pegou. Virou corpo seco”.
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