domingo, 19 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS SAGRADAS

 

Praia da Enseada (por volta de 1950) - Arquivo Ubatuba-Roberto


    Se detendo na maravilhosa fotografia acima, vejo, bem perto do primeiro rancho, um rio chegando na praia. É dele que o Roberto Ferrero escreve, o Rio do Destacamento. Creio que em outras ocasiões ele falará do Rio do Canto da Bá, do Rio dos Inocentes e de outros veios de águas que se dissolviam na água salgada da praia da Enseada, em Ubatuba, onde tantos sapinhauás, preguaís e pescados serviram a nós como alimento. Portanto, o assunto, o tema registrado pelo estimado Roberto é uma cosmologia caiçara partindo das nossas águas sagradas. Espero que sirva à Educação, a novos posicionamentos diante de tantos ataques contra o meio ambiente. 


As primeiras foram as saúvas. 

                Antes mesmo do sudoeste dar sinal, elas se juntaram e cavaram um engenhoso túnel que não se soube o fim e se foram. O material retirado do solo por onde passou essa insólita empreitada elas usaram para aterrar o Rio do Destacamento, cuja barra outrora era navegável e o leito atingia o coração da comunidade, a capela de Santa Rita. Assim me contou o velho Dito enquanto remendava uma rede. “Isso foi no meu tempo de criança” –  disse sem perder a concentração no trabalho. Mas naquele tempo ninguém entendeu que esse era o fim da saúva na praia da Enseada. Acreditaram que era somente o anúncio de um aguaceiro sem fim. E aguardando o temporal, com medo de ser surpreendido em mar, esse foi também o fim de alguns pescadores da comunidade que passaram seus últimos dias definhando debaixo de majestosas amendoeiras olhando para o mar em busca do menor sinal de chuva e concordando satisfeitos com qualquer pingo que caia.

                Oito meses após o sumiço das saúvas, o povo sem desconfiar de nada comemorava recordes na lavoura. Tal produção só era comparada àquelas obtidas na Ilha dos Porcos, onde também não havia a formiga cortadeira. Era tanta comida que a criação havia engordado e dependiam cada vez menos de caça ou pesca. Depois que a saúva foi embora, também muita gente engordou, e as costureiras por sua vez também se encheram se serviços e afazeres. Em pouco tempo, a vila toda estava prosperando. Mas pegaram mania de comemorar escondidos e sem bulha de fandango, com medo, pois a cada dia mais terra era depositada na agora diminuta Barra do Destacamento, e temiam que a qualquer momento, sinal de fartura, rasqueado de viola ou toque de rabeca, as formigas voltassem! “Pela quantidade de terra aqui depositada elas devem estar pelas bandas de São Luiz” – calculou o velho Maciel investigando o cada vez menor Rio – “e isso elas conseguem vencer em dois dias!” – completou. Ficou acertado num domingo de março que era prudente não fazer a festa de Santa Rita em maio, e nem receber a Folia do Divino na comunidade, para evitar multidões e festanças para o bom zelo e segurança da lavoura e prosperidade. Encomendaram também um relógio grande, para substituir o sino do campanário da capela.


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