Boias de mexilhão na Prainha - Arquivo JRS |
Nesta última parte, o Roberto Ferrero, descendente de duas guerreiras caiçaras por nomes de Judith, relaciona as saúvas à nossa história de exploração, de negação cultural, de destruição ambiental pelas décadas, desde a chegada de um modelo de turismo no nosso lugar. O que permaneceu, mesmo em pequenas porções, ilhas aqui, ali e acolá, é o que vai se constituindo em resistência. Valeu, irmão!
Ao final de um ano da partida das saúvas, a produção local
era tão grande e o rio do Destacamento tão pequeno que as canoas não estavam
mais dando conta de escoar todos aqueles mantimentos, de modo que todos
comemoraram a promessa de que, muito em breve, uma nova e asfaltada estrada
cortaria a comunidade e a ligaria até Ubatuba. Mal a notícia alcançou as
Istoninhas, apareceram os primeiros grileiros pelo Perequê-mirim, se apropriando
de tudo quanto era pedaço de terra. Nem o cimentado do João Profeta se safou,
aproveitaram a sólida estrutura e construíram um hotel no lugar. E assim foram
embora a pé os primeiros caiçaras daquele lugar, encheram caixotes com comida e
dinheiro e foram morar em outros cantos. Sumiram feito saúva, mas sem a
promessa de chuva dessa vez. Cada dia que passava, uma nova pessoa era convencida
de que estava vivendo na terra de terceiros, e,envergonhada, se retirava.
Quando
a estrada chegou, a produção local já era tão pouca que poderia ser levada na
mão em sacolas. Ao contrário do que se comemorou, a estrada trouxe mais coisas
do que escoou. Porque gente não é coisa. E foi gente que foi embora por ela. A
estrada trouxe foi o primeiro rolo de arame farpado que viram na vida. Sem
entender aquele espinhento pedaço de metal, muitos se perguntaram se deveriam
começar a se preocupar com os costumes da gente de fora, enquanto alguns
comemoravam ser essa a solução para manter a raposa longe do galinheiro.
Não
demorou muito e o Rio do Destacamento foi finalmente canalizado e escondido em
tubulações de concreto, pois o seu cintilante leito não combinava com as
quadras planejadas. O último fabriqueiro do lugar vendeu seu último enxó,
porque já ninguém queria uma viola cavucada, armário de tábua e nem arrumar uma
canoa. Nem colher de pau e tramela usavam mais. A gente de fora tinha outros
gostos. Foi mais ou menos quando o último mandiocal deu lugar a um condomínio,
lá pelo meio da praia. Nem os cajueiros do Seu Vitorino foram poupados, e nem
um dos tantos que brotaram por graça que costumava fazer.
Após
alguns poucos anos, a última benzedeira se foi, levando consigo uma série de
mazelas. Nunca mais ninguém teve cobreiro, tripa virada ou mal olhado. Nem
ninguém mais ficou encantado. Porque essas eram ocorrências específicas de
diagnóstico e trato do benzimento. Também as roseiras, outrora vorazmente
atacadas pela saúva, floriam em paz. Mas já não havia na comunidade versistas
ou violeiros para fazer poesia, e em pouco tempo, os poucos caiçaras que
restaram ali deixaram de plantá-las por terem esquecido de como eram bonitas. E
por falar em flores, foi esse o fim da última canoa da Enseada, virou floreira
em casa de veraneio. Não tão longe do último remo, que virou escora de varal. A
penúltima canoa, uma pequenina, foi tirado o bordo e virou prancha de surf. O
derradeiro tacho de forneá farinha foi trocado num radinho de pilha.
Setenta
e três anos mais tarde, findou a empreitada da saúva. Ao retornarem para casa
ficaram espantadas sem entender direito onde estavam. Não reconheciam mais
ninguém. Ficaram um tempo sentadas na tubulação que cuspia água do rio, que nem
nome mais tinha, olhando o mar tentando calcular quanto tempo estiveram fora.
Incomodadas com o cheiro de esgoto e a fome, separaram-se em grupos e cada qual
foi para uma região, da Ribeira até as Toninhas. E depois mais longe, da cidade
até o pontão da Fortaleza... não encontraram sequer um pé de mandioca para
roer.
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