O Chico também é o autor das fotografias deste texto. Nesta penúltima parte, ele nos transmite o seu estranhamento e questionamentos. Implicitamente nós podemos ter muitos outros. O seu interesse faz-me lembrar de uma outra pessoa, cujas pesquisas e registros fotográficos guardam uma relação com a comunidade do Sapê, sobretudo com o grupo de Reisado. Isso foi há dezoito anos; era também de São José dos Campos: dona Helena
Alguns metros mais abaixo, em direção à praia, que ainda não se fazia ver, mais uma construção de pau a pique, também com ar de abandonada. Conforme dizia a placa na parede, tratava-se do Centro Comunitário da Associação dos Remanescentes da Comunidade do Quilombo da Caçandoca. Mais abaixo, dos dois lados da estrada, algumas casas recém construídas, estas de blocos, sem acabamento e cobertas com telha de amianto. Das casas, sou observado por crianças e mulheres, nenhum deles é negro.
Resolvi seguir adiante, procurar meus negros mais à frente. Chegando à praia, outro susto, ela estava tomada, de fora a fora, por barracas de venda de comida e uma linha contínua de guarda sóis coloridos, vermelhos e amarelos. Não havia quase gente, era cedo ainda, o pessoal das barracas estava se preparando para a chegada dos turistas. Procurei os negros entre o pessoal nas barracas, talvez eles estivessem fazendo um bico na temporada, talvez fossem os donos, mas nada, não havia um só deles. No máximo um mulato curtido do sol… Saltavam aos olhos, contrastando com o verde da mata, os anúncios de camping, de passeios de barcos, logotipos de cervejas, isso tinha por toda extensão dos 2 km de praia.
Eu poderia ter perguntado para qualquer um, onde estavam os quilombolas, mas depois da lambada do seu Irineu e com receio de levar outra resposta atravessada, fiquei na minha. Tomei meu banho de mar, mastiguei meu sanduíche de pão integral e resolvi cair fora, que o céu estava ficando cinza-chumbo e eu não queria arriscar a volta debaixo de chuva.
Entrei no carro, apanhei o celular para ver que horas eram e levei um susto quando vi a data, 25 de janeiro! Vinte cinco de janeiro era o dia do aniversário da minha esposa e eu ainda não tinha providenciado um presente para ela! Lembrei de ter visto umas lojinhas dessas que vendem artesanato, atrás das barracas na praia, quem sabe eu não achava algo diferente numa delas?
Parei naquela que me pareceu a mais simpática. Quem me atende é dona Nilda, também branca. Ela me explica que o artesanato local é feito por eles mesmos, com “material que a natureza descarta“. São móbiles de conchas, esteiras de folha de bananeira e enfeites diversos, de madeira pintada, ela me mostra tudo com orgulho. Não sei se pelo efeito da alta umidade, mas tudo me pareceu já velho e sem o viço que eu queria para o meu presente. Lá do fundo da loja, umas bolsas coloridas me fisgaram o olhar.
- E aquelas bolsas, dona Nilda, são feitas por vocês também?
- Ah, essas são as bolsa que se transforma em canga, são de uma mulhé de Ubatuba que traz aqui pra nóis.
A bolsa era interessante, acabei comprando uma delas, uma cor-de-laranja-cheguei. Minha esposa gosta de cores fortes, certamente iria gostar deste objeto de dupla serventia.
Depois de pagar dona Nilda, já na saída, não consegui segurar a língua, perguntei onde era o quilombo da Caçandoca. Ela fez uma cara de espanto e respondeu olhando torto:
- Mas o senhor já está nele, moço!
- Ah, é aqui? E os quilombolas, onde estão?
- Está falando com um deles. Todos que moram aqui são quilombolas.
A minha cabeça deu um nó nessa hora. Resolvi não perguntar diretamente o por que de não haver nenhum negro neste quilombo, ou, se os havia, onde se escondiam…
- E a senhora nasceu aqui no quilombo, dona Nilda?
- Nasci aqui, sim, mas quando eu nasci não era quilombo ainda, era tudo fazenda. Em 2003 foi que o Lula criou o quilombo e disse que a terra era nossa, de quem tivesse morando nela. A gente ainda não temos o papel, mas esse ano ele prometeu que vai sair em definitivo. Deu na Voz do Brasil, eu escutei ainda um dia desses, que a gente tem que escutar a Voz do Brasil pra se informar, não é mesmo? Ele é muito bão, o Lula.
- Quer dizer que a senhora gosta do Lula?
- Gosto! Eu só acho ruim que a gente não pode derrubá uma árvore que seja pá modi prantá que é murtado. Isso eu acho muito errado! Por isso que nóis agora tamo virando pro turista pra se garanti.
Sem que eu perguntasse, dona Nilda começou a falar de como era a vida nas fazendas, do tempo em que ela era criança, de como eles tinham de tudo ali na Caçandoca, só precisavam comprar querosene, sal e pólvora. Das festas de bate-pé, das catiras, dos reisados, que eram a unica diversão que eles tinham naqueles tempos. E que tudo isso acabou porque veio um pessoal da cidade, comprou a terra dos caiçaras por um dinheiro qualquer, o povo se foi para a cidade e só agora é que estava voltando, depois que o “Lula criou o quilombo“. Minha cabeça estava que era uma bagunça só. Eu nunca imaginei que um quilombo pudesse ser criado em pleno século XXI.
- Mas espera aí, dona Nilda, quer dizer que esse quilombo não foi formado por escravos foragidos que se esconderam aqui na Caçandoca?
- Não, menino, este quilombo é por doação, não por fuga.
Achando que ela poderia ser uma boa informante, quis registrar o material e sugeri:
- O, dona Nilda, vamos fazer um vídeo dessa nossa conversa, a senhora permite?
- Ah, hoje não, menino, que eu perdi o meu pente e estou com a cara muito bagunçada. Volte aqui outro dia, hoje não.
- Mas com essa estrada ruim, é muito difícil chegar aqui.
- Então volte no tempo da seca, que aí a estrada fica uma “excelência”!
Entendi que dona Nilda não queria se comprometer com gravações e respeitei sua vontade. Nem perguntei mais nada. Despedi-me dela e disse que voltaria quando fosse possível.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir