domingo, 31 de julho de 2022

YVY MARÃ’ENY (TERRA SEM MALES)

A professora e seu filho - Arquivo JRS


    No espírito da busca da terra sem males, ponto de partida da mística dos povos guarani, dos guarani mbya, eu, minha filha e outras pessoas partimos para a aldeia Rio Bonito, em Itamambuca, para aprendermos sobre a lingua desse grupo vindo de Paraty há alguns anos apenas, mas donos desse território imenso, dessas terras da América do Sul, desde quando não existia ainda essas divisas demarcadas pelos europeus exploradores.

     Ivanildes e seus parentes nos acolheram assim que atravessamos o maravilhoso rio Itamambuca. Um café com iguarias da terra foi nosso primeiro momento antes da aula. Todos estavam bem, à vontade, prontos para aprender e dar mais passos para uma maior interação com essa parcela dos povos originários que se compõem no município de Ubatuba.

    O material de estudo é simples, com base em livros didáticos que servem ao grupo étnico em suas escolas. Caso lhe interesse, o curso também é parte de uma meta deles: construir uma nova cozinha comunitária. A contribuição de cada participante ajudará nisso.  A lousa, devidamente amarrada num tronco de palmiteiro [jiçara], foi um dos recursos à mão de Ivanildes que nos envolveu em seus ensinamentos, na aula. Achei importante a prosa inicial: “Javyju [bom dia]. A nossa língua é o nosso espírito. Se ela morrer, a cultura da gente desaparece também”. Quem nunca parou para pensar nisso? (Eu grifei jiçara acima porque era assim que os caiçaras falavam. De seus troncos eram preparadas as ripas usadas para sustentar telhas, armar pau a pique e tantas coisas mais). Do antigo povo Tupinambá, um dos esteio da cultura caiçara, eu vivi alguns aspectos (de cultivo de rotação de espaços de roçados, das coivaras, dos conhecimentos das plantas etc.). Meus parentes caçavam com as mesmas técnicas herdadas há séculos, se viravam com aquilo ofertado pela natureza. Ah! Eu puxei pela palavra pitirão. Sabe o que é? É se ajudar, trabalhar juntos! As casas caiçaras, os roçados e as festas eram realizações por pitirões. Por isso quis saber se havia um termo guarani mbya para esse traço cultural. “Sim, é nhanhoptvõ”. Outra reflexão se deu em torno da palavra tamoi. Novamente a Ivanildes esclareceu: “Tamoĩ se refere a avô. Não o meu avô xeramoĩ, mas avô como homem sábio, de máximo respeito ao nosso povo. Quando se refere à avó de igual reverência é xaryi.  Xejaryi é minha avó”. E lá veio uma mostra da histórias ancestrais do povo guarani! Coisa maravilhosa!

   Sabe o que é yvy rupa? É planeta; a terra, chão de todos nós. É o ponto de partida de cada encontro da comunidade na Casa de Reza: “A primeira reza do pajé é pra yvy rupa”.  Por fim, tal como a Ivanildes eu digo: peju xerekoapy (estou agradecendo a vocês por terem vindo), visitado coisasdecaicara.blogspot.com. O meu desejo é que sejamos um só povo a resistir contra o mal, com a graça de Nhanderu (o pai de todos nós).

 


sexta-feira, 29 de julho de 2022

O TESOURO DO POSSIDÔNIO



 

Embarcação - Arquivo JRS

    Seo Possidônio, pescador do Saco do Sombrio, era um grande contador de histórias. Eu o conheci lá mesmo, no Sombrio, quando a Regina foi trabalhar como professora na escola local. Isso já completou 30 anos. Dessa época vem a minha amizade com Vera e Pedro Antônio, outrora professores na Ilha dos Búzios, parte do mesmo arquipélago da Ilhabela.  Para desembarcar lá era feita uma manobra que exigia agilidade e pernas boas: uma estiva de paus roliços se espalhava sobre a costeira, por onde subiam as pessoas, as mercadorias e as canoas para serem guardadas nos ranchos. Assim se repetiam os embarques e desembarques na Serraria,  Búzios e Vitória, outras ilhas vizinhas onde ainda temos os parentes caiçaras. Ou seja, lugares sem praias. Conforme eu comecei, Seo Possidônio, dentre tantas histórias, me contou do naufrágio do navio espanhol Príncipe das Astúrias. 


     "Foi assim, meu filho: eu era criança de tudo quando aquele mundo de navio bateu na laje, ali na Ponta da Pirabura, naquele lugar que sempre foi bom de peixe. Garoupa então, ai, ai, ai... Neste tempo, desde sempre, é em volta da laje que a gente que pesca está se acabando na espada. O menino do Élcio me disse ontem mesmo que eles levaram para o porto [centro da Ilhabela] uma quantia que encheu quinze caixas no mercado. Já pensou?! Então, foi lá que aconteceu o infortúnio. Era começo de março, logo depois do carnaval. Os mais velhos diziam até que foi castigo de Deus por eles terem farreado demais, fazendo coisas que não se deve. Eu hoje penso que pode até ter sido devido à grande festa que falavam de ter acontecido a bordo. Vai saber! De repente o comandante bebeu demais, o timoneiro adormeceu, passou perto da costeira...e...o destino foi a pedra rasgando aquilo tudo, levando a pique quase que imediatamente aquela carga toda, aquela gentalhada. Só sei dizer que muitos corpos foram encalhando por todo quanto era lado. Dizem que até em Ubatuba a correnteza levou defuntos. Nem tinha como enterrar tanta gente. Urubus, guaiás e outros bichos fizeram a festa”. Nessa hora eu intervi na prosa, contando das histórias dos meus antigos a respeito dos corpos encalhados na Bela Vista, entre as praias da Santa Rita e Enseada. “Pois é, meu filho, foi assim. Depois eu cresci, me tornei um bom mergulhador, mas nunca tive equipamento para ir naquela profundidade, ver se alcançava alguma coisa de valor. Você acha que, entre tantas cargas afundadas, não deve haver ainda um monte de coisas que vale a pena uns mergulhos? As notícias falavam de quase quinhentos mortos nessa viagem que partiu da Espanha e seguia para a Argentina. Coitada dessa gente! Agora eu estou velho, mas ainda sinto vontade de mergulhar nas profundidades para vasculhar o que resta de tudo aquilo. Quem sabe eu não encontre um tesouro, né?”. E terminou tudo em uma gostosa gargalhada.

 

Nota histórica: o Príncipe das Astúrias naufragou no dia 5 de março de 1916. Oficialmente tinha capacidade para transportar mil e novecentas pessoas, mais a tripulação. Tudo isto se compõem no Tesouro do Possidônio. Certamente que muita gente já vasculhou os destroços na Ponta da Pirabura. Seo Possidônio faleceu há alguns anos levando o sonho do tesouro.

 








   

quarta-feira, 27 de julho de 2022

A MULHER NO FANDANGO

Na beira do mar - Arte: JRS


       De repente, na madrugada, vejo no instagran, um endereço: a mulher do baile. Em seguida, um texto me prende ao tema fandango, sobretudo porque o destaque é a Mestra Laureana, do Prumirim. Que importância tem essa mulher e as mulheres que promoveram esse encontro de duas comunidades caiçaras (uma em Paraty e outra em Ubatuba)! Transcrevo o registro na maior felicidade.


     No sábado [23/7] aconteceu a Vivência de Danças entre a Ciranda de Tarituba e o Grupo Sementes do Prumirim da Mestra Laureana. A proposta busca estimular as trocas entre as duas cidades: Ubatuba e Paraty e também a valorização da mestra fandangueira Dona Laureana que vem fazendo essa transmissão dos saberes no quintal da sua casa. Foi um desejo do próprio grupo ter essa troca já que algumas danças em Ubatuba já não se dança mais, ficaram esquecidas. E essa vivência também é uma forma de provocar a criação de laços entre as mulheres, entre as crianças e entre as duas cidades (Paraty e Ubatuba), fortalecendo a união e a cultura caiçara através da música e das danças. O momento foi muito bem aproveitado! As crianças se divertiram e puderam conhecer a comunidade caiçara de Tarituba e sentir a sua cultura valorizada ao dançar para o grupo. A dinâmica da vivência foi pensada na hora ali pelas mulheres do grupo (Luisa, Alice, Cláudia). Elas definiram uma apresentação dos grupos para que possam se conhecer melhor, e ,depois, uma forma para que cada grupo dançasse do seu modo o Xiba, a Ciranda, o Caranguejo e por último da Flor-do-Mar (que em Ubatuba não se dança mais). No final fizeram um Arara e Maria Põe o Barco N'água pra fechar!  Agora ficou a vontade de levar a Ciranda de Tarituba para conhecer o Prumirim.

sábado, 23 de julho de 2022

NEM TE CONTO...

Ateneu Ubatubense - Arquivo Ubatuba


    Ultimamente tem se falado bastante acerca das narrativas, de como elas são reforçadas ou destruídas, qual a importância delas para os rumos da sociedade, do planeta etc. Eu me encontrava mexendo nas plantas quando ouvi alguém passando e gritando ali perto:  "Fala aí Irmão Torresmo!". Imediatamente um outro, o suposto Irmão Torresmo respondeu: "Fala, Ladrão de Internet!". 

    Essas falas, parece coisa boba, me direcionaram as reflexões. É bem possível que o que foi 'xingado' de Irmão Torresmo é crente, professa religião evangélica. O outro, ao ser classificado como ladrão de internet, deduzi ser um 'esperto' a viver acompanhando tudo no mundo virtual graças aos pontos eletrônicos bancados pelos outros. Mas...também pode ser um aplicador de golpes via internet. Pelo que eu ouvi das reações, o Irmão Torresmo não gostou muito de ter este apelido, ao passo que o outro pareceu se sentir orgulhoso em praticar alguma espécie de malandragem virtual. Ou seja, as narrativas desmerecem um aspecto e reforçam outro. Outro exemplo do cotidiano: é corriqueiro topar com adolescentes afirmando que estão faturando graças à venda de drogas. Isto não parece um estímulo a uma profissão execrada pela sociedade em geral? Acabei de ler um livro onde estava registrado: "Os Estados Unidos são os maiores compradores de drogas via fronteira com o México". Ou seja, de onde parte a maior repressão às drogas a nível mundial está o maior mercado consumidor dos tempos atuais. Quando eu comentei isto com um amigo, eis a reação dele: "Eu já sabia! Os ricos são os que estão no topo da cadeia consumista. Quer ver e comprovar? Dá uma volta na madrugada pela principais ruas do bairro, repare nos carrões que aqui adentram e adquirem os produtos nas mãos dos 'meninos', dos vendedores. É um movimento intenso, amanhece o dia". Isso tudo são exemplos de narrativas relativamente novas no universo caiçara. Outrora, o ritmo era outro, as necessidades eram outras, as ambições eram restritas porque os contatos com as novidades do mundo eram limitados. Na minha infância, a energia elétrica estava começando a se espalhar pelos bairros, as ruas eram escuras, a vida caiçara se envolvia entre a pesca e a agricultura porque o turismo ainda era fraco, acontecia em dois períodos do ano. (Agora é o ano inteiro!). Ou seja, tais narrativas compunham a vida de pescadores e roceiros, os causos reforçavam o nosso universo místico caiçara. Quando bem mais tarde, já na juventude, eu quis aprender o que a cultura científica (das universidades) dizia desse meu mundo, escutei o seguinte do professor Diegues:

   - Consideramos a pesca artesanal como sendo aquela em que os pescadores autônomos, sozinhos ou em parcerias, participam diretamente da captura, usando instrumentos relativamente simples. A remuneração  é feita pelo sistema tradicional de divisão  da produção em "partes", sendo o produto destinado preponderantemente ao mercado. Da pesca retiram a maior parte de sua renda, ainda que sazonalmente possam exercer atividades complementares. No entanto, eles se distinguem dos pescadores/agricultores ou de subsistência, cuja atividade principal é a agrícola e pescam principalmente para consumo familiar.  É, parafraseando disse Pedro Bandeira: "Devo muito aos livros e à escola".

     Resumindo: os tempos são outros, as narrativas são outras. Quais os desdobramentos das modernas narrativas (do Irmão Torresmo, do Ladrão de Internet, da Profissão Traficante etc.)? A  que modelo de sociedade elas servem? Quais narrativas de poder político elas reforçam ou destroem? A que reflexões, lições de vida, elas se prestam?

    Nem te conto o que acabei de saber agora, neste instante! Nem te conto...

sexta-feira, 22 de julho de 2022

ILHA FLORIDA



 


Um lugar no campo;

Um restaurante distante;

Um grupo querido, em família.

 

Um lago;

Umas plantas bem cuidadas;

Uma recordação há milhas.

 

Uma orquídea, tipo vovó;

Um crescimento desmesurado;

Uma necessidade de partilha.

 

Uma filha-parceira ousada;

Uma escolha bem feita;

Uma nova planta-maravilha.

 

Uma primeira florada;

Uma contemplação a todo instante;

Uma recompensa às amigas, mãe e filha.


Uma nova visão a cada manhã;

Um conjunto no quintal;

Um tronco de açaí: sua nova ilha.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

EMPURRANDO E SENDO EMPURRADO

Igreja Matriz de Ubatuba por volta de 1900 - Arquivo  Ubatuba


“A história me empurra e eu empurro a história” (Velho Rita)

       Hoje, felizmente, ainda há muita gente boa no mundo. E em Ubatuba também!  Fico feliz com isso; daí a importância das boas ações e boas orientações nos lares e nas escolas. Como disse Nelson Mandela, se referindo às ruindades que se alastram entre as pessoas: “Se elas podem aprender a odiar, elas podem ser ensinados a amar, porque o amor ocorre mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto”. Eu, graças a uma série de fatores, pude conviver com um monte de gente boa, da antiga cepa caiçara. O Velho [Sebastião] Rita, do Itaguá, foi um deles. Depois de 1980, eu não deixava de visitar o casal Josefa e Sebastião para ouvir suas histórias. Deles eu aprendi que, “no tempo d’antes não havia o cemitério do jeito que é hoje. Uns eram sepultados dentro da igreja, num chão arenoso, outros, sobretudo escravos e pobres, pelos diversos lugares espalhados pelas praias e morros”. Escutei com repulsa, imaginando o fedor que deveria permanecer no espaço fechado da igreja. Mais tarde li em algum lugar que o padre João, o alemão, resolveu dar um fim nessa porcaria. E continuou o casal de idosos, “depois, quando a gente nem era nascido, perto da onde era o hospital antigo (que pegou fogo), fizeram um cemitério mais saudável. Junto dele, a Irmandade do Santíssimo Sacramento, tinha uma área reservado aos seus membros que fossem falecendo. Demorou um pouco para todos os mortos serem ajuntados, serem enterrados num lugar único, onde é até hoje, não muito longe da Praia do Cruzeiro [Iperoig]. Mas quando a varíola chegou por aqui, por volta de 1900, foi reservada uma área só para os bexiguentos [bexiga era outro nome para varíola], cercada de arame farpado, na mesma rua [D. João III]. Hoje não existe mais”. Conversando em outra ocasião com o finado Antônio Freitas ele me inteirou que era ali, onde hoje está o terreno da empresa de ônibus São José, entre as ruas Thomás Galhardo e Dom João III, bem no centro da cidade.

        Quando eu quis saber como deram jeito na epidemia da varíola, de que modo se acabou com  a mortandade dos bexiguentos, o casal de caiçaras do Itaguá me explicou: “a tal de bexiga se tornou conhecida em nossa terra por esse nome porque seus sinais eram bolhas, bexigas pelo corpo, que contagiavam facilmente. Por isso recomendavam de queimar as roupas dos infectados, defumar as casas com enxofre e depois caiar com água de cinza as paredes. Os defuntos precisavam ser enterrados separados porque a doença permanecia ainda por muito tempo, mesmo debaixo da terra. Assim, o cemitério do bexiguentos era só para bexiguentos. Ninguém tinha coragem de passar nem perto daquele lugar. Nos dias de hoje já se esqueceram disso tudo. Não vai demorar muito tempo para tudo aquilo virar prédio”.

        Como estavam com razão a Dona Josefa e Seo Sebastião! Os prédios surgem e sobem rapidamente em razão da voracidade dos lucros imobiliários. Já pensou que a sua habitação pode estar sobre um “arsenal” de armas biológicas de outros tempos?

terça-feira, 19 de julho de 2022

GRITO DE CARNAVAL NO ARACA

Enseada - 1980 (Arquivo Postal)


        Olhei para o veículo, um bugue com capacidade para quatro ou cinco pessoas. Próximo dele um grupo imenso se preparando para sair em direção à folia. Me perguntei: “Como vai se acomodar ali aquele tanto de gente?”. Eu estava por perto, no Bar do Pedro, "O Velho Comunista”. Nícolas, Manoel e outros discutiam coisa boba: “Os paulistas fazem percussão com as mãos, assim ó” - E demonstravam suas habilidades no ritmo dos toques dos dedos nas palmas das mãos – “mas os cariocas são exímios batuqueiros em caixa de fósforos! Quem nunca ouviu eles acompanhando sambinhas maravilhosos?”. E assim, em futilidades, "sabedorias de bêbado", o tempo passava. Quando Clodoaldo quis apressar a saída, dizendo que a Enseada era longe, um deles respondeu na gostosa risada: “Calma, Clodô. Eles têm relógio, mas nós temos o tempo”. Todos caíram na gargalhada. Só que quem estava preocupado também tinha razão: o Rancho do Araca, onde seria o “Grito de Carnaval”, na praia da Enseada, distava bem uns dez quilômetros. Naquele tempo, naquele horário da noite, nem sei se havia mais do que um horário de ônibus. Eu alertei: “Não se esqueçam que o última condução que vai até o Lázaro sairá às 23 horas (onze horas), logo-logo. Olhei o meu Mondaine e completei: acabou de sair o derradeiro que segue até Caraguá. Agora só resta o circular”. Enquanto isso, o pessoal do bugue discutiam detalhes, com alguém já desistindo porque não queria passar a noite no “Casarão”. Explico: outro baile que estava prometendo era “O Grito do Casarão”, do Sorroche, na praia da Lagoinha, bem mais longe ainda, uns vinte quilômetros, quase chegando no Sapê. Logo estava embarcando aquele tanto de gente naquele minúsculo veículo. Até uma criança tinha no meio deles: uma menininha, a Paulinha, com os olhos sonolentos a pedir uma cama: “Quero dormir, papai”. Uma massa disforme se amontoou sobre as quatro rodas. O carro dava a impressão que iria se desconjuntar a pouca distância dali, quando topasse os primeiros buracos. (Eles já eram muitos também naqueles idos de 1970!). Seo Pedro, “O Velho Comunista”, estava inconformado com tudo aquilo de gente trepado daquele jeito: “Se esse carro deixar a cidade, se chegar até o Itaguá, é a prova de que a nossa polícia não tá prestando pra nada além de levar bêbado para o xadrez. Onde já se viu tamanha irresponsabilidade? Se o 'Jacaré' e o 'Arcidão' passarem em ronda por aqui agora, eu sou capaz de não atendê-los enquanto eles não pegarem a 'Baratinha' e impedirem essa loucura de tempo de carnaval. Onde já se viu correr risco tão grande só por causa de um Grito de Folia?”. Não teve como discordar do velho e experiente revolucionário. “Sabe de uma coisa, pessoal? Eu não irei mais para a farra com vocês”. Embarquei na minha Monark e saí pedalando antes que eles quisessem me segurar mais por ali. Tomei o rumo do Itaguá, passei diante do Chaparral, escutei os embalos da batucada que já começara. Me detive na casa do amigo Tiãozinho Mesquita: “Vamos?”. “Vamos sim!”. No Le Bateau também corria solto a farra de abertura do carnaval naquele ano (avistei uns conhecidos na portaria: Élvio, Fátima Souza, Kiko Japonês, Cida Mesquita...), mas passamos direto, pedalando. Na Enseada o destino nos aguardava: “Grito de Carnaval no Araca”.  Quem acomodou nossas bicicletas numa velha pitangueira foi o nosso colega Gildásio, filho do Aracaju, dono do rancho. Alguns parceiros já estavam no embalo: Zé Defunto, Dinho Henrique, Nenê, Moisés do Bagre, Carlinho do Dócio, a moçada do Jacundino, Dimas Bureta etc. Os demais que dependiam de ônibus chegaram bem depois, se admiraram por nos verem já cansados de tanto pular. Todo mundo brincou e ficou satisfeito; mais um sucesso do Rancho do Araca naquele ano. Eita tempo bom! Quando o dia amanheceu na Enseada, alguns caiçaras aproveitavam a maré baixa para catar sapinhauá no lagamar. Lembra-se disso, Gildásio?

domingo, 17 de julho de 2022

ENSINAMENTOS DO TIO CLEMENTE

Tio Maneco Armiro - Arquivo Kilza Setti


    Tio Clemente, caiçara autêntico da praia da Fortaleza, gostava de reunir os mais jovens para ensinar algumas lições, sobretudo aquelas que giravam em torno da religião. Ele, católico praticante, acreditava que era a concordância da fé com o conhecimento que fazia o verdadeiro cristão. Vou tentar transcrever mais ou menos um discurso dele naquela tarde de domingo distante, ali na cozinha do Nhonhô Armiro:

    “Nós temos que chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Quem apoia ladrão é ladrão, quem apoia terrorista é terrorista. Vocês devem ter escutado as últimas notícias pelo rádio, as coisas por aí afora não está nada fácil, mas os cristãos devem se contrapor a essa violência, defender a paz acima de tudo. Qualquer pensamento que nos desvie disso é uma seita, como se estivesse nascendo outra religião”. E por aí seguia. Eu sempre ficava caladinho, só escutando, mas prestava também muita atenção às perguntas que os outros iam fazendo ao querido tio que nos deixou há bastante tempo.

    A reflexão de hoje parte de chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Tio Clemente tinha toda a razão. Neste momento eu acrescentaria: cristão que apoiam armas de fogo são terroristas e não cristãos. Portanto, estamos assistindo uma seita crescendo no Brasil, se associando com igrejas cristãs (católicos, evangélicos etc.), falando contra o pacifismo, frontalmente oposta às organizações que defendem a paz e pedem por mais justiça social. Me pergunto: o que essa seita fascista pretende para o Brasil, para os brasileiros?

    Constato que essa seita está cooptando gente da cultura popular, das minorias discriminadas; gente que diz “amar a Deus sobre todas as coisas”, mas que executa irmãos e cumpre o compromisso com o ódio (a base da seita). Além de chamar as coisas pelos nomes que elas têm, Tio Clemente, nós deveríamos ficar alertados e se posicionar como uma barreira a esses atos de terrorismos que veem ocorrendo pelo nosso país. O que será de nós caso essa seita continue se alastrando e detenha por mais tempo o poder graças ao enfraquecimento/corrupção das instituições e da Constituição? O senhor tinha toda razão em nos ensinar, em fortalecer em nós uma moral comunitária. Agora, acrescento a contribuição de outro Clemente, da cidade antiga de Alexandria: “Acrescida à fé, a filosofia não torna a verdade mais forte, em si mesma, mas torna impotentes os ataques dos inimigos da verdade, constituindo portanto um válido baluarte de defesa”. Ah! Estava me esquecendo das complementações do Tio Maneco Armiro naqueles bons momentos de prosas! Saudades desse pessoal todo. Viva a memória!

sábado, 16 de julho de 2022

A PEDRA DO CURUZEIRO

 
O oposto de ouro de tolo - Arquivo JRS

        "Lá longe é o Curuzeiro. Daqui lá é, apertando o passo, umas seis horas de andada". Quem me contava esta história era o finado Bié. 

       Bié Pai do Mato era o apelido do meu amigo Daniel. O mato era o seu ambiente natural, tal como mar era o chão do saudoso tio Chico. Deu sorte em conseguir um emprego de guarda da Mata Atlântica assim que o Parque Estadual foi criado. Quer felicidade maior para um aliado do Curupira, para alguém que a vida toda viveu perambulando pelas grotas e espigões? Bié era assim desde quando eu passei a me entender por gente.

       "Você precisa ir comigo lá em cima. Tem umas tocas de pedras por lá, mas eu ainda não entrei em todas elas. Quase todas são grandes e fundas, lugares onde deve dormir bicho grande. O meu avô dizia que ali, aos pés do Curuzeiro, tem uma toca onde os piratas guardavam tesouros, iam empilhando para um dia embarcar tudo em seus navios e levar para outras terras. Eles abordavam os navios que encontravam, roubavam daquilo que tinha mais valor, geralmente ouro e prata. A tal toca está lá; eles, os piratas, ficaram sabendo dela por gente que já morava aqui, pelos índios". 

       Eu me empolguei por essa história, quis acompanhar o meu amigo na possibilidade de grande aventura: "Logo estarei de férias, Daniel. Vamos subir o Curuzeiro e vasculhar toca por toca". "Sério mesmo, Zezinho? Então tá bom, vou esperar".  Só fiquei na vontade, pois logo o Bié faleceu de um ataque cardíaco, da mesma forma que o velho pai. Após anos, acordei hoje pensando nesse saudoso amigo e na história do Curuzeiro. Já não tenho a pretensão de encarar seis horas por dentro do mato, morro acima. Também não ouso, nessa idade, empreender essa tarefa sozinho. Bié era gente de confiança, caiçara sem cobiça por essas riquezas materiais. Quando eu perguntei o que ele faria caso encontrasse mesmo um tesouro no Curuzeiro, a resposta foi esta: "Para mim, Zezinho, se existir alguma coisa conforme diziam os antigos, como está na música, é 'ouro de tolo', coisa que não edifica ninguém. Você já encontrou alguém que se tornou melhor porque enriqueceu? Pois é! Por mim, se um dia a gente encontrar esses sinais deixados por piratas do tempo d'antes, nós podemos deixar lá mesmo, entre os bichos do mato, encantando-os. Nunca passou pela minha cabeça de eu me encantar por essas coisas que os homens dão tanto valor, se matam até. O que vale para mim é este mundo que Deus deu, esta maravilhosa natureza que nos rodeia. Basta uma sapopemba de sibaúna ou de tarumã para me proteger se precisar pernoitar pelos caminhos. Não precisamos de muita coisa para viver, né?". Fiquei feliz com a resposta dele. Ela apagou em mim um nesga de cobiça que aflorava daquela história. Aproveitei para lhe explicar o seguinte: "Sabia, meu amigo, que Curuzeiro é, na verdade, Cruzeiro? Os antigos portugueses, quando chegaram nesse lugar, edificaram naquele canto (da Bica) uma capela. (Se a gente escavar ali ainda vai encontra umas pedras ajeitadas como base). Dizem que, na Semana Santa inteira, assim que anoitecia, as estrelas do Cruzeiro do Sul pareciam se demorar mais tempo ali, descansando naquele morro. Por isso ficou sendo a Pedra do Cruzeiro. Com o passar do tempo virou Curuzeiro". "É mesmo, Zezinho? Eu acreditava que esse nome vinha de sapo cururu. Curuzeiro, no meu entender, seria a pedra que abrigava esses sapos. Ultimamente tenho escutado gente chamando aquele lugar de Pico do Cuscuzeiro. Interessante como tudo vai se modificando, né?".
    

quarta-feira, 13 de julho de 2022

NOS RINCÕES DE MINAS

 

Rancho caiçara embarreado (Arquivo JRS) 


       Eu terminei de ler um livro de causos e casos escrito por Sérgio Roberto Costa, Doutor em Linguística. Adorei! Pelo visto, ali estava o resultado de uma vivência simples desse professor que passou por todos os níveis acadêmicos, mas manteve sua essência roceira, de lugar pequeno do interior de Minas Gerais. Eu, acolhido em seu recanto de sossego, vislumbrei o homem escutando, contando e vivendo significativos momentos com sua gente inspiradora. Creio que as suas outras obras literárias tragam esse ar da serra, esses sons de aves que chegam dos morros, essas imagens de araucárias que se enfeitam de névoa ao amanhecer em boa parte do ano. Certamente que tudo isso foi se somando à evolução de professor universitário comprometido desde jovem com as questões sociais do nosso Brasil. Só para lembrar: em 1968, o Sérgio estava naquele congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Ibiúna (SP), quando o governo militar invadiu o espaço do congresso estudantil e levou toda aquela juventude presa, para ser "devidamente" marcada como subversiva. Agradeço as escolhas da minha querida Gal que resultaram em me encontrar em Marmelópolis e em conhecer a anfitriã, Ana Carolina, filha do referido autor. Coisa boa minha gente!
         Imagina a importância deste perfil (de gostar de prosear, anotar, repassar etc.)?! Neste momento eu me recordo de tantos momentos e de tantas pessoas do meu povo caiçara, sobretudo os parentes proseadores por natureza. Escolhi a imagem acima, do dia em que embarreamos o Rancho Caiçara, no Perequê-açu, para poder dar uma ideia da importância desse ritual e de outras marcas culturais do nosso povo. Sempre foi um ato coletivo a construção de  abrigos caiçaras, de roçados, de pescarias etc. A denominação disso, desse trabalhar juntos, é pitirão (mutirão), que deriva do tupinambá pitirum.. O que não falta durante todo o trabalho nesse traço cultural são as conversas, os causos e as gostosas gargalhadas. Depois de cumprida a tarefa, acontece o momento festivo com alimentação, cantorias e danças. E mais histórias e causos! Eu imagino, me baseando nas coisas contadas por Sérgio Costa, Ariano Suassuna, Rubem Alves, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e tanta gente boa que momentos assim são marcas de quase todos os recantos desse nosso Brasil. Desse modo vamos nos inteirando de tantas coisas que fazem parte da tradição oral desta nossa terra brasileira. Quer coisa melhor que uma boa prosa num lugar muito aprazível?
        Gratidão à Ana Carolina por me apresentar o seu pai. Por intermédio dos causos e casos registrados conheci um pouco do Mestre Sérgio Roberto Costa. Parabéns!

terça-feira, 12 de julho de 2022

OS ISENTÕES

Espiando os isentões (Arquivo JRS)

     O que comentar daqueles (as) caiçaras que não assumem a causa dos mais pobres, a causa caiçara em defesa do nosso território e do meio ambiente?  Isento (a) é quem está agora na seita do mal. Quem não vê que retórica de ódio gera violência?   Espero que essas atitudes sejam revistas pelo nosso bem. 

 

domingo, 10 de julho de 2022

O PAI ERA TÃO BOM...


Ler e viver a natureza (Arquivo JRS)

      Manecão, como de costume, saiu cedo, antes dos demais da casa sequer deixarem suas camas. “Aonde está indo, Manecão?”. Curiosidade boba, né? É lógico que eu já sei a resposta! Há décadas que ele cumpre o mesmo ritual: embarcar no ônibus para visitar a tia Emília, tomar café lá, prosear um pouco e voltar ao lar antes do almoço, onde suas irmãs o aguardam. Em casa, pelo resto do dia, fica se entretendo com qualquer coisa, assiste um pouco de televisão e dorme cedo. Assim passa o tempo desse velho amigo. As novas gerações desta Ubatuba não o conhecem, mas garanto que, quando este ritual não mais acontecer, terá sido o fim deste personagem que vive abraçado ao bem neste litoral de tantas belezas.

     Hoje, após os cumprimentos, Manecão se acomodou no assento ao lado e puxou este assunto: “O pai deles era tão bom, honesto, pregava tão bem sobre os ensinamentos da Bíblia, mas os filhos... Sabia que eles, filhos e filhas agora vivem na bebedeira, farreando e causando tristeza à coitada da mãe? Tenho muita pena dela”. Demorei um pouquinho para “me ligar” a quem ele se referia, mas me inteirei. Não tive nenhuma discordância dele, da análise que fez. Pensei: “Este Manecão, viu!”. E eu pensando que gente com o perfil dele, parecendo deslocado da realidade, não atinasse nessas observações, nesses juízos de valores. Como a gente se engana!

    O Manecão continuou falando de outras coisas, causando risadas aos mais próximos que o escutavam, mas eu já estava em outra análise, pensando em outros aspectos, relacionando os comportamentos revirados por ele às atitudes das  referidas pessoas, “filhos e filhas que agora vivem na bebedeira”. Mas o que mais me angustia mesmo é a preferência deles pelo “Excrementíssimo Presidente do Brasil”. Tenho de concordar com o amigo que o tal pai foi exemplar. Mas foi, acima de tudo, ingênuo. Acreditava que a fé não precisava pensar a política, que “ser carismático já bastava para merecer o céu”. E o resultado é isto: uma descendência pautada pela irracionalidade, pela ignorância aliada ao mal que está a alimentar discursos de ódio; apoio a quem segue destruindo o país, devastando os mais pobres e minorias; em colaboração com o fim da própria cultura caiçara. Acorda, parentalha!

sexta-feira, 8 de julho de 2022

O QUE É TEATRO?

Em - cena - ação  (Arquivo JRS)


      Quando criança, ainda na moradia que me viu nascer, uma menina caiçara do Sapê tinha um talento especial em projetar imagens, com recursos de embalagens (caixa de papel), como se fosse cinema. O espetáculo acontecia na casa dela; todas as crianças eram acolhidas pela Tia Santa. A menina talentosa, Imaculada,  era filha dela. Aquilo era o nosso cineminha. Mais tarde, já morando no Perequê-mirim, no bar onde meu pai fazia uns “bicos”, um senhor de Taubaté (Seo Valter) trazia regularmente um projetor de filmes, e, mediante uma taxa mínima de ingresso, transformava uma das paredes do estabelecimento em cativante tela. Naquele lugar nós assistiríamos filmes do Mazzaropi, Zé do Caixão, James Bond, John Wayne e tantos outros famosos. Comédias e bang bang eram os meus preferidos. Depois, já adolescente, os espetáculos cinematográficos se davam no Cine Iperoig, na Praça da Matriz. Na verdade, na década de 1970, a vida emocionante da cidade acontecia nessa praça, sobretudo nos finais de semana. A banda municipal, carinhosamente chamada de “A Furiosa”, fechava os nossos domingos com dançarinos e dançarinas se revelando ao público. Ah! Quase sempre aparecia um bêbado num show à parte, se fazendo personagem folclórico do nosso lugar. Amaro, Bimba, Chico Mineiro eram alguns desses artistas embalados pela “mardita santa branca”. De repente, num tempo bem distante, alguém falou em teatro. Eu não sabia de nada além daquilo que alguns professores disseram em sala de aula. Demorou anos para eu conhecer um teatro e assistir ótimas peças. Então me perguntei: “Por que uma cidade de passado famoso, movimentada pelo comércio, com casario invejável e pessoas chiques não possuía teatro?”. Um dia, encontrando o Seo Filhinho sentado na praça Exaltação da Santa Cruz, defronte a sua moradia, puxei esse assunto. Foi quando eu fiquei sabendo que, ainda no século XIX, Ubatuba teve um teatro que estava localizado onde mais tarde foi o Fórum. Atualmente está a sede da Fundart (fundação de arte e cultura da cidade). Pertencia a uma família de portugueses apaixonada pelas artes cênicas e tinha capacidade para quase quatrocentas pessoas. Era o local mais chique da cidade; até camarote possuía. Ao que tudo indica, era muito concorrido pelos cidadãos ubatubenses para prestigiar encenações e concertos musicais. Depois, com a morte do proprietário, restando apenas a viúva, os materiais foram se estragando, as madeiras apodrecendo etc. Essa mulher, Dona Luzia Dias Círio, segundo o Seo Filhinho, queria demolir o prédio. Ernesto de Oliveira, pai do nosso informante e prefeito da época, comprou e reformou o lugar, possibilitando a continuidade das atividades artísticas. Depois, com a pauperização da sociedade local, a ruína de fato abateu sobre o prédio. Na década de 1950 aquele espaço foi destinado ao Fórum. Ficamos sem teatro em Ubatuba até o século XXI. Hoje, um moderno espaço teatral ocupa um canto da Praça Exaltação da Santa Cruz, a pouca distância de onde, naquele tempo, eu conversara com Washington de Oliveira, o Seo Filhinho.

      Teatro é espaço de cultura, de expansão da civilidade. Teatro é diversão e intervenção cidadã, onde a coletividade se expande no senso democrático e cultiva a memória que dá sentido ao seu viver.

sábado, 2 de julho de 2022

O AMOR VENCEU

Praça Nóbrega e suas magnólias - No canto inferior esquerdo o templo presbiteriano - Arquivo Ubatuba


     Dando prosseguimento ao caso da bomba em Ubatuba, onde católicos e presbiterianos viviam em desentendimentos, continuei lendo o que o Seo Filhinho tinha a nos contar. Então encontrei algo mais forte que essas picuinhas religiosas: um caso de amor diminuiu as tensões entre os dois grupos e a Igreja Presbiteriana finalmente ocupou um lugar de destaque, na praça da cidade, próxima da cadeia pública (onde hoje é o museu que homenageia o Seo Filhinho – Washington de Oliveira). O meu saudoso parente Mané Bento, sentado debaixo de uma daquelas magnólias da praça, me contou um dia: “Esses crentes receberam dinheiro até do estrangeiro para fazer aquela igreja bonita”. Mas vamos aos enamorados:

      Conta-se que José Joaquim Fernandes, o precursor dos presbiterianos, enamorou-se de uma jovem católica, cujo casamento, por imposição da família desta, só se realizaria se ele renunciasse à nova seita e recebesse sua pretendida esposa aos pés do altar, com todos os sacramentos da fé católica. O amor venceu. No sábado aprazado, com grande manifestação de júbilo por parte da grei católica, José de Lima e Maria receberam-se em matrimônio pela Lei de Deus, na Igreja Matriz local.

     O amor venceu, é verdade, mas...por pouco tempo. No dia seguinte, domingo, o venturoso par caminhou de mãos dadas para a Igreja Presbiteriana, na qual ambos se integraram, convictos, e da qual nunca mais se separaram.

    José de Lima não sobreviveu por muito tempo. Dona Mariquinha, viúva, mais tarde contraiu segunda núpcias com o católico Antônio Joaquim Garcia e em perfeita harmonia aguardaram que o tempo lhes indicasse o caminho que ambos, juntos, deviam trilhar no campo espiritual.     Tito Garcia, carinhoso apelido que lhe dedicava a população local, acabou aceitando a religião da esposa, professando-a até o final de seus dias. (Sérgio Coelho e Fátima, um casal que tenho em alta estima, repetiria história semelhantes na década de 1980).

    Segundo o mesmo Mané Bento, “o Antônio Trajano foi um pastor deles muito estimado, converteu muita gente e deixou saudades”. O nosso caiçara escritor-farmacêutico (Seo Filhinho) completa a memória do meu parente:

    Depois do Antônio Trajano por aqui passaram muitos outros pastores de alto gabarito, entre eles os Reverendos: Erasmo Braga, um dos pioneiros do movimento ecumênico no Brasil; Gastão Boyle, editor do semanário O EVANGELISTA; Salomão Ferraz, mais tarde sagrado Bispo Anglicano e que aderiu ao catolicismo, como Bispo Titular da Eleuterna [ou Eleuthera?]; e José Borges Sobrinho, notável orador e membro do Conselho Deliberativo da Universidade Mackenzie de São Paulo.

 

 

sexta-feira, 1 de julho de 2022

A RESISTÊNCIA DOS POVOS TRADICIONAIS

Viva a resistência popular! (Arquivo JRS)

Adeus, Seo Dito - (Arquivo Caiçaras)


   O estimado Santiago Bernardes, da Comunidade do Camburi, apresenta-nos importante relato dos trabalhos das representações da nossa gente durante um dia inteiro. Sem dúvida alguma que o melhor encaminhamento é vislumbrar o funcionamento de um Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais e a criação de uma Secretaria específica. Afinal, são inúmeras as ocupações indígenas, quilombolas e caiçaras neste território herdado do povo Tupinambá.


 Em defesa dos direitos dos Povos Tradicionais 

1ª Conferência Municipal das Comunidades Tradicionais de Ubatuba

   Na terça-feira, dia 21 de junho de 2022 foi realizada a Primeira Conferência Municipal de Comunidades Tradicionais de Ubatuba. O evento foi construído em parceria com as comunidades tradicionais, a partir de uma pauta estabelecida por elas, de uma Conferência na qual fossem colocadas as suas demandas e encaminhadas para que sejam criadas formas e caminhos para a resolução dos muitos problemas que afetam os seus territórios. Com total protagonismo das comunidades a Conferência reuniu os povos indígenas, caiçaras e quilombolas para debaterem e criarem propostas de políticas públicas. Num tempo em que o Estado tem descumprido direitos dos povos tradicionais e destruído políticas públicas estabelecidas, a realização dessa conferência mostra o poder da resistência popular como principal alternativa a tudo de ruim que ronda a nossa cidade e a nossa Pátria.

      Além das demandas básicas como saneamento, segurança, saúde, educação, transporte, etc. é preciso que a administração municipal tenha um planejamento específico para as necessidades e para os potenciais das comunidades. Que apoie e fortaleça o Turismo de Base Comunitária, no qual o protagonismo é das comunidades, que participe e apoie os diálogos institucionais com INCRA, ITESP, Fundação Florestal, Unidades de Conservação, referentes a questões como regularização fundiária do território tradicional caiçara, demarcação de terras indígenas e titulação dos quilombos.

       Destaca-se a ausência de todos os vereadores na Conferência e o atraso da prefeita que deveria fazer a fala de recepção na abertura e que pouco permaneceu no evento.

       A Conferência é mais uma etapa no caminho. Não seu ponto final. Não é um momento de festa nem de comemoração, pois não há o que celebrar no território tradicional, tão explorado e impactado pela especulação imobiliária, pela grilagem, pela degradação ambiental, pelo turismo desordenado, pelo abandono e descumprimento dos direitos e das políticas públicas.

      A partir dessa Conferência queremos mais espaço, e isso é um direito que já existe, de participação, de construção e de decisão coletiva nos rumos e nas políticas municipais para o território tradicional. Que se construa dessa forma, com a total participação dos povos tradicionais um plano municipal para as comunidades, que vai além do tempo de gestão de um governo, pois as administrações municipais passam, e assim deve ser, democraticamente, pois elas são funcionárias do povo e não ao contrário. Que se tenha na cidade um Conselho Municipal dos Povos e Comunidades Tradicionais e uma Secretaria específica. Que as comunidades tenham garantido seu direito de participar de forma decisória na Revisão do Plano Diretor Municipal, pois são a esses povos que essa cidade deve sua formação histórica. Povos que mesmo com suas terras roubadas e sua cultura ignorada, massacrados, escravizados e espoliados, resistiram e resistem sempre. Mas não queremos ser lembrados nos livros de histórias, que não são escritos por nós, como povos do passado, pois estamos vivos e vivos seguiremos lutando por nossos direitos e escrevendo nossa história pelas nossas próprias mãos.

       Não aceitaremos menos que isso.


    Valeu, Santiago! Grande abraço!