sábado, 27 de fevereiro de 2021

A ARGOLA DOS SOFREDORES

 

Entrada da Barra de Ubatuba (Arquivo JRS)

Abaixo, o mar (Arquivo JRS)



- O Toninho Sidônio contou-me que viu assombração no caminho que leva à Prainha. Usavam uma túnica com capuz e cada qual segurava uma vela. Desapareceram de repente. Quando ouvi, arrepiei-me todo. Toninho disse-me que naquela pedra grande em que há um argola de ferro fixada, lá nas proximidades da estátua de São Pedro, era onde os escravos, que vinham nos navios, ficavam acorrentados.

- Mas o Toninho tinha razão em afirmar isso? Questionei o Eduardo Souza.

- Tinha sim, Zé. Ele, filho do velho Sidônio, pescador caiçara, morava ali, no pé do morro da Prainha, onde é a cabeceira da ponte hoje, na saída para o Perequê-açu. Na boca da Barra. Quer lugar melhor para ver assombração?

        Interessante como é importante registrar por escrito as coisas que sabemos, vivemos e escutamos dos outros. Agora, relendo a prosa com o saudoso Eduardo, percebi uma veia importante para pesquisa a respeito do tráfico negreiro e que servirá ao turismo cultural. Imagine você, guia de turismo ou apenas exercitando a cidadania, não se omitindo da verdade, parando na estátua de São Pedro, olhando a beleza da baía de Ubatuba e explicando que logo ali, na Prainha do Padre (ou do Matarazzo), desembarcavam escravos; que naquela pedra, até recentemente, havia uma argola chumbada, onde se acorrentavam os africanos para serem comercializados.

- Mas por que ali, Eduardo?

- Porque ficavam afastados da vila e do porto, mas no caminho dos possíveis compradores, tanto de terra como do mar, pois eram facilmente avistados. Era como, mal comparando, uma passarela das pobres criaturas. Conforme iam sendo comprados, o espaço ia se esvaziando.

- Nossa! Exclamei.

- Agora você imagina, meu amigo, naquele morro que bate vento direto (porque é todo aberto). O quanto sofriam - a mais! - em dias de chuva com vento? Então o Toninho do Sidônio não exagerava quando dizia ver coisas estranhas ali, perto da casa deles. Naquele lugar se concentrou muito sofrimento dos negros. Penso também que não foram poucas as mortes dos coitados agrilhoados ao relento.

- É mesmo! Não tive como não concordar. Acredito que uma energia ruim, decorrente dos maus-tratos aos negros, pode permanecer por ali, à sombra da estátua do santo padroeiro da cidade. 

- Tomara, Zé, que as assombrações continuem aparecendo para não deixar cair no esquecimento as injustiças e sofrimentos que foram causadas a tanta gente. Haverá sempre tempo de corrigir alguma coisa, de fazer algumas compensações aos prejudicados pela ganância. Que as assombrações também nos sirvam de alerta às maldades de hoje e vindouras.

- É mesmo. Tomara que sim.

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