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Idalina cuidava do Ubatuba Hotel, depois se tornou proprietária. Imagens do arquivo Ubatuba Antiga |
Na unidade de ensino onde trabalho, no bairro do Ipiranguinha, hoje o
diretor está “correndo” atrás de mais coisas da Idalina, patrona da escola.
Lendo um texto não tão antigo, escrito pelo amigo Peter, me recordei que estou
em dívida com o seu farto material. (Ainda não consegui produzir algo a
contento, de acordo com o seu trabalho). Tudo gira em torno da ilha Anchieta,
território de Albino, esposo da Idalina, e da Enseada, uma das praias da nossa
infância. Boa leitura!
Durante os últimos dois dias
me debrucei sobre os três contratos de compra e venda da Ilha dos Porcos, hoje
ilha Anchieta, mergulhando exatos 110 anos no passado, tempo da expropriação
forçada de 148 pessoas, proprietárias de edificações, terras, plantações,
benfeitorias, canaviais, cafezais, pomares e pelo menos 35 coqueiros. Noventa e
cinco (95) "vendas" foram concretizadas pelos 92 proprietários de 1
ex-escola do sexo feminino, 2 casas-armazém sendo uma de secos, molhados e
fazendas (tecidos), 4 galpões, 2 galpões de canoas, 1 rancho de canoas,
totalizando 116 edificações.
Cento e quarenta e cinco (145) pessoas
adultas viviam em 7 localidades registradas, com exceção do sul da Ilha, onde
proprietário algum foi citado nos contratos.
Muitos sobrenomes familiares pude identificar: Gil, Jardim,
Oliveira, Graça, de Jesus, de Goes, Peres, Conceição, Cabral Barbosa,
Marcellino, Lopes, de Souza, dos Santos, entre outros.
Descobri que o marido de Idalina Graça,
provavelmente foi expulso do Mato Dentro [uma das localidades da ilha] e
confirmei a origem da família Gil, do Mestre Antenor dos Santos como sendo
mesmo no Parcelzinho conforme o relato dele. No entanto seu provável avô Daniel
Gil foi expulso da Prainha, a mais povoada com 30 edificações, dez vezes mais
do que no Parcelzinho, que abrigava apenas uma viúva, um viúvo e uma solteira,
cada qual em sua casa de sapé, cujos vestígios o Antenor já me mostrou.
Aproveito para reproduzir um pequeno trecho do livro Terra
Tamoia de Idalina Graça onde podemos mesmo "sentir" a Praia da
Enseada dos anos 1930.
CAPITULO I
A viagem
Foi ao cair de uma tarde de janeiro de 1930, que
deixei para sempre a terra de Brás Cubas pela terra dos tamoios: UBATUBA. Havia
uma razão para isso: — meu marido, natural da Ilha Anchieta, sentia profundas
saudades de seu torrão e mal se dava na trepidante Santos, porque a sua índole
não se casava com o vertiginoso movimento do grande porto paulista. Eu também,
filha de Ilhabela, esse paradisíaco rincão do litoral norte, ansiava poder sentir
novamente ao meu derredor a misteriosa beleza rústica, e com sabor primitivo
das praias, das nossas praias, até o advento do turismo que se assenhoreou de
tudo, trazendo o progresso característico da época que atualmente vivemos, mas
retirando aquela paz que era própria dos caiçaras simples e sem problemas.
Casada apenas há dois anos, vivia somente para o meu marido, que era o pequeno
mundo onde me agitava. Carregando os nossos poucos haveres para o convés da
lancha "Ubatuba-Santos", línico elo que ligava as duas cidades
periodicamente, enfrentei a nova fase de minha existência, desafiando, naquela
inesquecível viagem, o mar revolto, bramindo a sua raiva como se desejasse
impedir minha chegada à terra que se tornaria meu novo lar. Albino, meu marido,
fortemente gripado, mal saía do lugar que escolhera. Eu, em contrapartida, em
todos os portos da orla litorânea onde a lancha aproava, descia, vasculhava os
arredores com meu olhar, fixando tipos e coisas em minha memória. Pouco se me
dava o oceano bravio. Meu coração exultava pelas novidades, pelo encantamento
da viagem. Dois dias passaram até chegarmos, bordejando a ilha natal de meu
marido, adentrando o boqueirão e encostando na Praia da Enseada, onde
transcorreriam os meus primeiros tempos de "ubatubense". Nessa
longínqua tarde em que ali desembarcamos, o sol tendia a se esconder entre os
montes. Sua luminosidade já levemente rósea, tingia a superfície das ondas de
tonalidades belíssimas, cheias de nuanças, enchendo meus olhos e minha alma.
Chamou-me à realidade das cousas, a voz de meu marido, que, impaciente pela
cansativa viagem, não compreendia o meu entusiasmo pela praia a que acabávamos
de aportar: — Como é, Idalina? Você desembarca ou não? Suspirei ao pensar quão
errado fora o destino em ter me feito nascer mulher. Como invejei os homens
nesse dia! Estava longe de adivinhar que, desde aquele instante até o momento
presente, em que escrevo estas reminiscências do passado, teria que assumir uma
personalidade masculina. Naquela noite memorável, fizemos camaradagem com
milhões de pernilongos, indesejáveis visitantes que só sabem agradar mordendo.
Conformei-me, comparando-os aos homens, destinados, na terra, a ferir os seus
semelhantes. Porém,, rio dia seguinte tudo esqueci ante o grandioso espetáculo
do nascer do sol. Inundava a serra e o mar, e era a sua luz, tão grande a
manifestação de Deus na Natureza, que chorei! Logo depois, Albino veio ao meu
encontro e ficou consternado ao me ver chorando: — Você está arrependida? —
Não, querido! Estou chorando de alegria... — Impossível — disse êle, enquanto
me levantava da areia molhada. — Você gosta daqui de verdade? — Sim, Albino!
Adoro a vida simples, sem artifícios, onde cada ser humano recebe aquilo que
Deus determinou! Aqui o homem é senhor e rei em seu lar! Tudo isto eu lhe
disse, apontando o majestoso cenário que ambos contemplávamos naquele instante:
— Veja, Albino, os pescadores como riem e cantam ao estenderem suas redes!
Ajoelhando-nos na areia úmida, oramos, pedindo ao Pai Todo Poderoso forças
suficientes para ganharmos o nosso pão de cada dia, agradecendo ao mesmo tempo,
a dádiva de luz e beleza, com a qual fomos presenteados pela Divina
Misericórdia naquela manhã de 3 de janeiro de 1930.