sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE (III)





Ilha Anchieta - Porto do Presídio - Imagem da internet (guiaviajamelhor.com.br)




    Encerrando o triste ano de 2021 (aos brasileiros que precisaram aturar o pior governante de toda a sua história), eu continuo, me baseando no já citado trabalho do amigo Peter , a discorrer sobre a Ilha Anchieta, outrora Ilha dos Porcos, a uma pessoa que pretende conhecê-la. Ah! Porcos e Portos podem bem ser a mesma coisa: corruptelas. 


   Era natural aos navegadores dos tempos antigos nomear os lugares primeiramente pensando em suas necessidades/utilidades, em portos onde pudessem se provisionar e continuar viagem. 


No relato de uma professora primária, que viveu na Ilha Anchieta entre 1945 e 1948, é feita uma referência curiosa ao motivo da denominação Ilha dos Porcos: Quando menina estudava geografia de São Paulo e a Ilha dos Porcos me chamou a atenção, por causa do nome estranho. Mal sabia eu, que anos e anos se passariam e o meu primeiro emprego como professora seria justamente na antiga Ilha dos Porcos, hoje denominada Ilha Anchieta. Porcos! Por que se chamava assim essa famosa Ilha? Porque havia porcos catetos em grande quantidade vivendo nela. Não porcos domésticos, mas catetos, porcos selvagens, magníficos e perigosos. O cateto é chamado porco-do-mato brasileiro, mas não é da família do porco, porque só tem três dedos nas patas de trás. O que caracteriza esse animal é o colar de grossos pelos brancos, que rodeia seu pescoço. Em 1947 o último cateto da Ilha Anchieta foi abatido e eu tive o privilégio de comer um pedacinho de sua saborosa carne (DAS NEVES, 2012: p.67).


   Logo penso o quão estranho foi levar para lá as capivaras e outras espécies recentemente (março de 1983 - 159 animais). Que especialista da Fundação Parque Zoológico orientou tal medida para um local sem rios significativos? O resultado foi a travessia do mar pelas capivaras, a fuga para o continente devido à lei da sobrevivência. 


  Antes da extinção do último cateto, os caiçaras-ilhéus foram despejados daquele lugar. Continuando no texto acadêmico, ficamos sabendo:


Após a escolha daquela Ilha para a construção da colônia correcional, já se inicia com a expulsão total, entre os anos de 1905 e 1906, dos 145 habitantes que naquele momento viviam da pesca e da agricultura de subsistência na Ilha Anchieta. No total foram desapropriados 92 “outorgantes” e suas benfeitorias, entre elas: edificações, terras, plantações, canaviais, cafezais, pomares, e, curiosamente, pelo menos 35 coqueiros.


A partir dos anos 1920, sucedem-se na Ilha Anchieta várias atividades estranhas, tais como um posto de quarentena para gado e, em 1926, cerca de dois mil imigrantes “russos” ficaram na “hospedaria de imigrantes” da Ilha. Destes milhares de bessarábios, cerca de 150 morreram envenenados pela ingestão de “mandioca brava” (DE OLIVEIRA, 1977: p.88-89).


   Também recomendo o livro Corações Sujos, de Fernando Morais, onde aborda um grupo organizado de japoneses que não aceitavam a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e acabaram presos na Ilha Anchieta por cometerem crimes a compatriotas nipônicos.

   
   Por fim, em março de 1977, é criado o Parque Estadual da Ilha Anchieta (somente a área terrestre) e em 1980-1983, o Polígono de Interdição à Pesca. Assim, por essa interferência arbitrária e a sistêmica prevaricação do Estado, foram sempre os caiçaras que saíram perdendo com essas sucessivas intervenções. Expropriados de sua história, de suas terras e de seus territórios pesqueiros localizados na Ilha Anchieta, os caiçaras locais perdem sua identidade sociocultural, perdem seu modo de vida tradicional, perdem seu sustento, perdem sua arte pesqueira e, ainda hoje, continuam aviltados, mas historicamente resistindo.


   Agora, quando estiver pisando no chão da Ilha Anchieta, pense em tudo isso e saiba que a melhor atitude, a grande prova de amor à cultura e à natureza, é ser resistência às estratégias neoliberais que vão se manifestando sobre todo o nosso território caiçara. Que em 2022 nós possamos apoiar/participar em grupos organizados da nossa sociedade que lutam para barrar as medidas que apenas privilegiam uns poucos e negam cidadania à maioria das pessoas. A Ilha do Dia Seguinte não pode ser danosa à nossa cultura!

Referência: Németh, Peter Santos. A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local - São Paulo, 2016.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A PENCA DE BANANA

 

Quereis uma penca? (Arquivo JRS)



         O estimado amigo José Carlos de Góis, além de valoroso profissional do Direito, é craque na escrita de poesias e causos. Eu desejo a ele, à Aládia e aos demais familiares Boas Festas sempre. Que em 2022 possamos apreciar mais contribuições desse caiçara da Enseada neste blog. Gratidão a essa gente boa! Quereis uma penca, amigo? 

 

Corria o ano de 2.002. Eu advogava no escritório do meu saudoso amigo Dr. Eduardo Barbosa Macedo. Havia me inscrito na assistência judiciária, Convênio Procuradoria Geral do Estado e Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo.

 

Um belo dia do mês de março atendi uma cliente enviada pela OAB. Era uma senhora de uns trinta anos de idade, muito simpática, que foi logo dizendo: Bom dia, dotô. O sinhô foi anumeado pela Óbê pra pegá uma causa minha. E me contou sua história: há seis anos o seu cunhado havia lhe cedido um terreno vizinho da casa dele no Bairro do Ubatumirim para ela construir uma casa e residir com o marido e três filhos pequenos. A casa foi precariamente construída com madeirite, chapas de zinco, telhas de amianto. O chão só ficou no contrapiso muito mal feito. Colocou água da serra na casa e fez o relógio de luz em seu nome com a instalação de energia elétrica pela Elektro. Agora a casa estava precisando ser reconstruída, pois as paredes estavam se desfazendo, o telhado vazava muito na época das chuvas e o chão do quarto estava se abrindo. Com muito sacrifício ela e o marido compraram o material, mas, quando o caminhão chegou para entregar, seu cunhado impediu que o motorista adentrasse o terreno, que ficava uns trezentos metros da BR-101. Conversou com o cunhado e ele lhe disse que ela tinha que desocupar o imóvel, que fosse procurar outro lugar para morar. E foi mais longe: pôs uns mourões de concreto e uma grossa corrente com cadeado para impedir o acesso de veículos até sua casa. Por isso ela tinha procurado a OAB, pois não tinha condições de contratar um advogado, e eu fui nomeado para defender seus interesses.

 

Ela falava muito, e, ao final de sua narrativa, me disse: Dotô, eu não tenho dinheiro pra lhe oferecê, mais meu pai tem uns terreno no Sertão do Ubatumirim e me disse que se o sinhô ganhá a minha causa ele vai lhe dá um terreno de déis metro de frente por quarenta metro de fundo.

 

Respondi-lhe que eu já estava sendo pago pelo Estado, mas ela insistiu que ia me dar o terreno por gratidão (mas, é claro, teria que ganhar a ação).

 

Lhe orientei a tirar umas fotos da casa, da frente, dos fundo, das laterais, do interior mostrando seu marido e seus filhos, a fissura do chão do quarto, bem como dos mourões e da corrente com o cadeado. Pedi também que ela trouxesse o comprovante de ligação da energia elétrica e a primeira conta quitada por ela.

 

No dia seguinte lá estava ela no escritório com os documentos que solicitei. Pelas fotos podia se ver que a casa precisava de reformas urgentes. Ingressei com uma ação de interdito proibitório e a Juíza da Vara para a qual foi distribuída deu a liminar, determinando a retirada dos mourões e da corrente, permitindo que ela reformasse a casa, sob pena de multa diária.

 

Quando ela retornou ao escritório e dei-lhe a notícia, exultou de alegria: Dotô, muito obrigado! Olhe, já vô falá pro papai marcá o terreno do sinhô, tá bão?”

 

E o processo prosseguiu: a parte contrária contestou o feito, houve uma audiência de tentativa de conciliação que restou infrutífera, e a Juíza marcou uma audiência de instrução e julgamento para ouvir testemunhas. Minha cliente me passou o nome de três testemunhas e seus respetivos endereços, e solicitei que na véspera da audiência ela levasse as mesmas no escritório para que eu pudesse conversar com elas, orientá-las sobre o andamento da audiência, etc..

 

Então, na véspera da audiência ela compareceu com as testemunhas, e após eu ter conversado com elas, e terem se retirado, minha cliente falou efusivamente: Dotô, minha causa já tá ganha, né dotô? Olha Dotô, meu pai já marcô o seu terreno: é uma belezura! Déis metro de frente por quarenta de fundo! Tem laranjeira, mixiriqueira, já dando fruta. E é plaininho, plaininho. O sinhô vai gostá muito Dotô!

 

Pois bem, houve a audiência, um mês depois saiu a sentença favorável à minha cliente, reconhecendo a posse dela sobre o terreno. A parte contrária não apelou sob a condição de ela cercar o terreno, mas deixando de fora um pé de jaca que era de sua estimação. Ela concordou, a Juíza homologou o acordo e a sentença transitou em julgado.

 

Ao retornar ao escritório, lhe entreguei a sentença, o acordo, a homologação e a certidão de trânsito em julgado. Ela então me disse: Ah Dotô, como Deus é bão!... Eu sabia que eu ia ganhá essa causa! Muito obrigado Dotô! Lá pro meio da semana que vem eu venho falá com o sinhô.

 

Não retornou. Passados mais ou menos uns dois meses, cheguei ao escritório de manhã e ao adentrar minha sala deparei-me com uma linda penca de banana nanica sobre a minha mesa. Fiquei intrigado e fui até a sala do Dr. Eduardo e indaguei-lhe quem tinha posto aquela penca de banana sobre a minha mesa. Ele me disse que foi uma senhora do Ubatumirim que havia me trazido. Que essa senhora lhe disse que eu tinha trabalhado numa causa dela, ficou muito contente com o meu trabalho e em gratidão me trouxe a penca de banana.

 

Comecei a rir às gargalhadas! O Dr. Eduardo não entendeu nada e perguntou se eu estava doido. Contei-lhe tintim por tintim o ocorrido e, então, juntos, rimos também às gargalhadas!

 

Vejam só que incrível metamorfose: O “meu terreno”, com quatrocentos metros quadrados, com laranjeiras, mexeriqueiras, planinho, planinho, se transformou numa penca de banana!

 

 

JOSÉ CARLOS DE GÓIS -  29/12/2021

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE (II)

Parte da Ilha Anchieta. vista da Praia da Pixirica - Arquivo JRS

     Estou recomendando um roteiro de leitura, o trabalho do Peter Santos Nemeth,  para a minha amiga que se prepara para conhecer a Ilha Anchieta, em Ubatuba.  "Mas esse nome, essa denominação de Ilha Anchieta é nova, né Zé?". "É sim, Sandra. Mas voltemos ao trabalho do Peter. Ele vai nos ajudar".


     Quando eu era criança, a denominação mais comum à nossa ilha em questão era Ilha dos Portos. Com o decorrer dos anos, ouvi muitos outros nomes para a mesma ilha. Serão tratados aqui como nomes falsos da Ilha Anchieta:


1- O primeiro deles, e o mais erroneamente replicado é a denominação Tapera de Cunhambebe. Este engano provém de um documento datado de dezembro de 1610 (SÃO PAULO, 1921: p.114), onde encontramos esta denominação associada ao registro de uma sesmaria em Angra dos Reis, jamais na atual Ubatuba, do litoral norte paulista.

2- Também o nome Pó-Quâ, amplamente divulgado pelo Projeto de Uso Turístico da Ilha Anchieta (FUMEST, 1974) significaria “pontuda”. Porém, se estudados os originais, percebe-se que o Dr. João Mendes de Almeida (1902) procurou “adivinhar” a origem do nome, Porcos, como sendo uma hipotética corrugação dos vocábulos tupis pó e quâ.

3- E por último, Tapira, registrado por Saint-Adolphe em 1845, nome que provavelmente seja o único que possa ter alguma ligação com uma denominação tupi, embora o autor não revele as fontes consultadas impossibilitando uma checagem mais aprofundada.

Recorrendo portanto à fontes mais confiáveis e antigas, encontramos em uma publicação de 1535 de Gonzalo de Oviedo (1852), que a clara justificativa do nome Isla de los Puercos, dado à nossa atual Ilha Anchieta, é “por nela existirem muitos porcos selvagens” (OVIEDO, 1852: p.118, tradução nossa).

[...] é mas adelante diez léguas está outra que se diçe de los Puercos, porque hay en ella muchos monteses; y enfrente de aquesta isla ocho ó diez léguas em la mar, están dos isletas, donde se perdieron portugueses em uma nao, y en el batel se salvo la gente é pobló en la dicha isla de los Puercos algunos dias, y desde allí se passaron a Sanct Viçente. El mismo auctor, Alonso de Sancta Cruz, diçe que mas adelante de esta isla de los Puercos, doçe leguas, está el rio de Sanct Sebastian [...]. (OVIEDO, 1852: p.118, grifo do autor)

Resumindo: eu gostaria muito de poder saber como os indígenas chamavam essas nossas ilhas, mas... por serem ágrafos, nada deixaram registrado. Aqueles topônimos que chegaram até nós são expressões de resistências incorporadas pelos caiçaras ou anotadas por alguns viajantes atenciosos do passado. Os crimes que fizeram contra as etnias a partir da chegada dos portugueses, em 1500, continuam ainda hoje. Línguas continuam desaparecendo, povos são perseguidos, perdem seus territórios aos fazendeiros, a empresas poderosas, a garimpeiros etc., sobretudo agora, com um governo que é declaradamente contra as minorias da nossa Pátria. Escuto um cidadão cantando, abraçado ao violão, um pedaço de uma música aos Santos Reis: "a bandeira segue em frente atrás de melhores dias". Penso: "Incoerente, falso, hipócrita. Quem desconhece que você apoiou esse presidente e o seu discurso de ódio? Melhores dias para quem?"

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE

 

A ilha lá longe   (Arquivo JRS)

       A minha amiga Sandra, de Caraguatatuba, externou dois desejos: conhecer a Gruta que Chora e a Ilha Anchieta. Logo eu expliquei a lenda da serpente que se origina na gruta da praia da Sununga. Depois, recorrendo ao trabalho do amigo Peter, enviei a ela alguns fragmentos para a leitura. E me prontifiquei a conversar depois. Caso queira se aprofundar, eu lhe indico também: Németh, Peter Santos. A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local - São Paulo, 2016.


      Primeiro é preciso saber que, há muito tempo, outros povos habitaram este território caiçara no litoral norte paulista. Assim, compartilho a partir de hoje, o que selecionei e os comentários que fiz. Espero que lhe seja útil também.


Breve descrição sobre a área de estudo: sabe-se que muito próximo à Ilha Anchieta, em direção oeste na vizinha Ilha do Mar Virado e ao norte na Praia do Tenório, existem sambaquis que atestam a ocupação humana por populações provavelmente canoeiras (AMENOMORI, 2005; CALLIPO, 2011; BENDAZOLLI, 2014) nessa região da Ilha Anchieta, por um período contínuo de aproximados mil anos, de 620 a.C. até 550 d.C. (UCHO, 1993, 2009; NISHIDA, 2001; BENDAZOLLI, 2014).


      Portanto, faz muito tempo que brotou neste chão de Ubatuba as nossas raízes. Não de é ontem que dependemos do mar e da terra para sermos o que somos, mas de muito tempo mesmo!


O assentamento do sítio Mar Virado se deu por [um] grupo pescador-coletor entre os anos 1546 a.C. a 550 d.C. com permanência mais ou menos de 900 a 1000 anos. Por volta do séc. X o sítio foi reocupado pelos Tupi que permaneceram naquele local até o ano 1000. No séc. XVI tivemos a chegada dos europeus. Do séc. XVIII até meados do séc. XX, a presença marcante foi dos caiçaras. Trabalhos de etno-história e etno-arqueologia demonstram também a manutenção das populações pescadoras até os dias atuais.


     Eu já escrevi que a tia Gaidinha, descendente de africanos, toda essa gente dos Inocêncio, tiveram uma vida intensa lá no Mar Virado. Também era lá que os meus parentes da Fortaleza preferiam ter suas roças, evitando assim a praga das saúvas.    Mais coisas o Peter fez questão de registrar em seu trabalho para que a gente entendesse melhor os nossos ancestrais primeiros.


Ao que tudo indica, a pesca era desenvolvida com utilização de canoas. Chegamos a essa conclusão pela importância das lâminas de machado para os habitantes do sítio, bem como pelas alterações dos membros inferiores dos esqueletos encontrados, resultante, provavelmente, de um esforço constante de remar em pé. Acreditamos que a lâmina de machado fosse utilizada predominantemente na elaboração das canoas (TENÓRIO, 1999: apud CALLIPO, 2011: p.42-44)


    Portanto, ao visitar esses lugares, faça uma reverência aos espíritos daqueles que, nas adversidades, deixaram suas marcas e estão na base das nossas raízes culturais. Quando os europeus chegaram, eles abraçaram os conhecimentos e as experiências mais que milenar perpetuada por quem ali estava vivendo. O Estado e a sanha capitalista, a partir do século XX, ao expulsarem e/ou embargarem o pescador caiçara às riquezas desses lugares - seus, por direito milenar! -, cometem, no mínimo, crime cultural, além de alijarem o principal aliado do meio ambiente.

domingo, 26 de dezembro de 2021

MINHA PRIMEIRA ENTREVISTA

 

Rubens gravando no campo - Arquivo  Ubatuba

    Assim que eu entrei no ginásio (Capitão Deolindo - 1973 - Ubatuba), me deparei com uma novidade: o Campeonato de Futebol Dente de Leite. Sob o comando de alguns desportistas veteranos, juntamente com o repórter Rubens Salles, os adolescentes se constituíam em times para treinar e competir. Alguns dos meus colegas (Abílio, Milton, Zé Roberto, Alex, Luís do Prado, Teide, Marinho e tantos outros) se dedicaram e ficaram conhecidos graças a isso. 

    Rubens Salles, fiquei sabendo muito tempo depois, era irmão da professora Heloísa Salles Teixeira, a "Tia Helô". Era muito estimado por todos, fazia entrevistas para a rádio local, organizava as tabelas de jogos e cooperava sempre que era possível em ações filantrópicas. Infelizmente morreu cedo. Segundo a sua irmã, "a tuberculose, herança da saudosa mamãe, o levou. Apenas a saudade dele e as boas lembranças permanecem comigo".


   Em certa ocasião, no térreo da antiga Câmara Municipal, eu o encontrei. Portava um gravador da época e me abordou: "Será que você, rapaz nativo da terra, poderia me dar uma entrevista?". Prontamente, ainda surpreso, me sentei num banco que havia no espaço que servia de museu e me pus a ouvir o repórter. "Eu tenho algumas palavras e expressões muito ditas pelos caiçaras. Eis a lista. Pretendo ouvir ao menos cinco ou seis pessoas daqui para gravar suas definições. Pode ser?". Fui lendo e explicando a minha compreensão: "Assinzinho..." - mostrando com o indicador e o polegar bem juntos - "...é coisa pequena, um cuí"; "Fiandura é uma quantidade de peixe passada por um cipó, facilitando o transporte"; "Rebuchado ou debuchado é doce de melado"; "Consertada é bebida de melado com pinga e outros componentes. Antigamente era servida para as mulheres que tinham passado por parto, estavam de resguardo e precisavam ser 'consertadas'". No momento desta explicação, o Rubens soltou uma contagiante gargalhada. Esperei o silêncio para continuar: "Seboso, cracachento é o mesmo que sujo, nojento"; "Deslambido é sem-vergonha"; "Relaxado é quem não se cuida, não capricha nas coisas que faz"; "Incréu é quem não acredita, tal como o João Pimenta do Sapê"; "Repolhudo, rescardado são sinônimos comumente usados pelo tio Tião Armiro para dizer que alguém é fraco da mente, retardado"; "Rabo-de-cavalo, moranga, coque, americano, topete, sureco... são arranjos no cabelo, tipos de cortes. O seu, por exemplo, seria classificado como touceira". Novamente ele caiu na risada. Por fim, porque estava atrasado para me encontrar com o Velho Alcyr, do IBGE, conclui: "Outro dia a gente continua, mas agora sossega o facho, ou seja, se acalma aí".     Assim terminou a minha primeira entrevista. Até hoje não soube se foi ao ar, pois raramente eu ficava atento à programação da rádio Iperoig, na época sob comando do Ditinho Góis, filho do Seo Dito e da Dona Preciosa, pessoas queridas da praia da Enseada.

sábado, 25 de dezembro de 2021

CANOA EM VERSOS

Grande canoa na Praia Vermelha - Ilhabela - Arquivo Rê

 

Prova no Itaguá - Arquivo JRS



Canoas sobre a Canoa - Arquivo JRS

Professor Joaquim Lauro veio de Lorena;
aqui se admirou das canoas, das belas canoas.
Pensou numa prova, no dia da santa,
da Nossa Senhora das Dores.
A comunidade e o povo aprovou.
Era o ano de 1957.
"Cônsul de Lorena": assim ele ficou.

Um dia, na Curva da Batata, na serra para São Luiz:
"Um louro-pardo. Que canoa dará?!".
Foi a exclamação do caçador Virgílio Alexandre,
contente com aquela gigante
assim que a avistou.
De pronto, avisou ao professor.
Agrício e o filho Benedito no chão a deitou.

Nove metros e vinte de comprimento,
oitenta e dois centímetros de boca,
perto de duzentos quilos. Vinte dias na mata.
Dito Balbino, da Estufa, fez o acabamento 
e na pintura caprichou.
"Maria Comprida" (porque comprida era!):
com espírito feminino se batizou.

Antes da grande prova, de 1973, repousou na Fortaleza;
Debaixo de um abacateiro do Nhonhô Armiro
ela foi envernizada no maior ritual.
Eu, criança de tudo, admirava a grande canoa.
Depois de pronta, nela se treinou:
Ondino, João de Grilo, papai, tios Salvador e Tonico.
Ao Lázaro, do outro lado, foi e voltou.

Finalmente o primeiro de junho:
"Jornada Marítima Ubatuba-Santos".
Máximo da alegria se estampava na partida;
Joaquim Lauro Monte Claro Neto irradiava empolgação.
"Esta prova, em lembrança de um fato que aqui se passou:
a Paz de Iperoig que está completando 410 anos.
Ao Anchieta que ficou aqui, a caiçarada para lá rumou".

Carlos Alves de Morais (Carrinho), 
João Correa Leite (Jango),
Antônio Barroso Filho (Barrosinho),
Artur Alexandrino e Nilo Vieira: 
os remadores a quem se confiou
a travessia de 215 quilômetros em linha reta.
Maria Comprida, às 4:45, em 1º de junho, da praia zarpou.

"Rema remador,rema remador/ Rema remador, rema remador/
Passa o Boqueirão,  rema remador/
Rumo àquele morro é São Sebastião/
Rema a Maria, rema, rema, rema remador/
Bem longe a Bertioga, mas ainda não chegou/
Rema, rema, rema/Rema remador/
Avistou Ponta da Praia? É Santos que chegou".

Finalmente dia 3 de junho! 10:15.
Sol forte e acolhida mais forte ainda
no Clube de Regatas Vasco da Gama.
Santos de tantos caiçaras, gente nossa que partiu.
"Os valentes canoeiros de Iperoig": a faixa saudou.
De camisetas azuis e calções pretos, atrás da Maria Comprida,
aquele quinteto de Ubatuba se perfilou e novamente cantou.







sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

EM BUSCA DE PEIXE

 

Em busca de peixe - Arquivo JRS


       Era tempo de Natal. Eu sabia disso porque ouvia uns reclames nos intervalos da programação, no rádio, mas também porque estava acontecendo rezas pelas casas e o grupo de Reisado varava madrugada em cantorias e visitas aos presépios das famílias do nosso lugar. Eu sentia que estava bem próximo porque papai chegou trazendo um garrafão de cinco litros de vinho, tipo Sangue de Boi. Era doce, mas mamãe adoçava mais ainda quando ia bebericar e dar um pouquinho para os filhos. Ah! No mesmo dia da chegada do garrafão, outra novidade: bolo de caixa. Ou melhor, massa pronta para preparo de bolo. Boa nova que mais gente quis conhecer. O resto era tudo igual: arroz, feijão, farinha, peixe, banana, galinha ou pato e mais nada. Faz tempo isso!

     A tradição deu um jeito de Jesus nascer no dia 25 de dezembro. Na Europa, segundo contam, era comemorado o nascimento do Sol. Portanto, era a maior festa da Antiguidade. Com o cristianismo ocupando os espaços, as festividades ganharam novos significados. Dentre as comemorações, está o Natal. O importante é pensar na criança, ou melhor, nas crianças que vêm ao mundo. Elas não pediram, mas nós as geramos porque queremos uma descendência, uma continuidade de vida em sociedade. Enfim, um mundo bom depende de gente boa. No fim , a frase marcante do tio Tonico: "Que o Natal seja renovação dessa esperança em uma nova sociedade, onde ninguém vai passar fome e sofrer injustiças. Assim educamos os nossos filhos nesta comunidade". 

    Artelino escutou essa mensagem já embarcando na canoa. "Depois a gente conversa mais, Tonico. Agora vou no tresmalho, em busca de peixe porque, de acordo com os meus antigos que vieram da Espanha,  Natal sem peixe não é Natal, não é mesmo?"

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS SAGRADAS (III)

 

Boias de mexilhão na Prainha - Arquivo JRS

        Nesta última parte, o Roberto Ferrero, descendente de duas  guerreiras caiçaras por nomes de Judith, relaciona as saúvas à nossa história de exploração, de negação cultural, de destruição ambiental pelas décadas, desde a chegada de um modelo de turismo no nosso lugar. O que permaneceu, mesmo em pequenas porções, ilhas aqui, ali e acolá, é o que vai se constituindo em resistência. Valeu, irmão!


      Ao final de um ano da partida das saúvas, a produção local era tão grande e o rio do Destacamento tão pequeno que as canoas não estavam mais dando conta de escoar todos aqueles mantimentos, de modo que todos comemoraram a promessa de que, muito em breve, uma nova e asfaltada estrada cortaria a comunidade e a ligaria até Ubatuba. Mal a notícia alcançou as Istoninhas, apareceram os primeiros grileiros pelo Perequê-mirim, se apropriando de tudo quanto era pedaço de terra. Nem o cimentado do João Profeta se safou, aproveitaram a sólida estrutura e construíram um hotel no lugar. E assim foram embora a pé os primeiros caiçaras daquele lugar, encheram caixotes com comida e dinheiro e foram morar em outros cantos. Sumiram feito saúva, mas sem a promessa de chuva dessa vez. Cada dia que passava, uma nova pessoa era convencida de que estava vivendo na terra de terceiros, e,envergonhada, se retirava.

                Quando a estrada chegou, a produção local já era tão pouca que poderia ser levada na mão em sacolas. Ao contrário do que se comemorou, a estrada trouxe mais coisas do que escoou. Porque gente não é coisa. E foi gente que foi embora por ela. A estrada trouxe foi o primeiro rolo de arame farpado que viram na vida. Sem entender aquele espinhento pedaço de metal, muitos se perguntaram se deveriam começar a se preocupar com os costumes da gente de fora, enquanto alguns comemoravam ser essa a solução para manter a raposa longe do galinheiro.

                Não demorou muito e o Rio do Destacamento foi finalmente canalizado e escondido em tubulações de concreto, pois o seu cintilante leito não combinava com as quadras planejadas. O último fabriqueiro do lugar vendeu seu último enxó, porque já ninguém queria uma viola cavucada, armário de tábua e nem arrumar uma canoa. Nem colher de pau e tramela usavam mais. A gente de fora tinha outros gostos. Foi mais ou menos quando o último mandiocal deu lugar a um condomínio, lá pelo meio da praia. Nem os cajueiros do Seu Vitorino foram poupados, e nem um dos tantos que brotaram por graça que costumava fazer.

                Após alguns poucos anos, a última benzedeira se foi, levando consigo uma série de mazelas. Nunca mais ninguém teve cobreiro, tripa virada ou mal olhado. Nem ninguém mais ficou encantado. Porque essas eram ocorrências específicas de diagnóstico e trato do benzimento. Também as roseiras, outrora vorazmente atacadas pela saúva, floriam em paz. Mas já não havia na comunidade versistas ou violeiros para fazer poesia, e em pouco tempo, os poucos caiçaras que restaram ali deixaram de plantá-las por terem esquecido de como eram bonitas. E por falar em flores, foi esse o fim da última canoa da Enseada, virou floreira em casa de veraneio. Não tão longe do último remo, que virou escora de varal. A penúltima canoa, uma pequenina, foi tirado o bordo e virou prancha de surf. O derradeiro tacho de forneá farinha foi trocado num radinho de pilha.

                Setenta e três anos mais tarde, findou a empreitada da saúva. Ao retornarem para casa ficaram espantadas sem entender direito onde estavam. Não reconheciam mais ninguém. Ficaram um tempo sentadas na tubulação que cuspia água do rio, que nem nome mais tinha, olhando o mar tentando calcular quanto tempo estiveram fora. Incomodadas com o cheiro de esgoto e a fome, separaram-se em grupos e cada qual foi para uma região, da Ribeira até as Toninhas. E depois mais longe, da cidade até o pontão da Fortaleza... não encontraram sequer um pé de mandioca para roer.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A JORNADA DO ANTENOR

 


Ginásio de Poá - 2013 (Arquivo JRS)


Antenor e Estevan (Arquivo JRS)

      Antenor Nunes, filho do finado Oscar, gente dos Nunes Pereira (um considerável proprietário de outros tempos no Ubatumirim).
     
     Antenor Nunes, o esportista, fundador da Associação Nunes de Karatê que tantas vezes elevou e levou o nome da nossa cidade por aí, por tantos outros lugares.

      Antenor Nunes, o Sensei Nunes, 5º Dan, aluno estimado do Mestre Josino.

     Mestre Antenor Nunes, quem orientou nosso querido Estevan e  tanta gente por tantos anos.

         Antenor Nunes,  eletricista, pintor etc. e amigo desde o início da década de 1980; caiçara como eu.

     Antenor Nunes (1951 - 2021) foi um exemplo para a nossa geração e outras mais novas. Há alguns meses, durante uma compra no supermercado, nos encontramos. Como era costume dele, a primeira coisa de sempre: perguntar pelo Estevan e externar o quanto ele o estimava. 

     Prosa boa com Antenor era sobre peixes e pescarias, mas também sempre tinha algum causo para amarrar com alguma moral. Assim era o meu amigo Antenor.

     Ontem, nos pegou de surpresa a notícia de que sofrera um AVC e estava em coma. Agora o pior: ele faleceu e, na parte da tarde, será seu sepultamento.

     Eu e minha família sempre estimamos muito o Antenor. Boas lembranças dele nos acompanharão. Aos familiares, nossos sinceros sentimentos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS SAGRADAS (II)

 


Na parte anterior,  a  comunidade  caiçara  decidiu algumas coisas para amenizar a crise com o Rio do Destacamento, mas...continua aí, Roberto.


       Mas é claro que tais medidas, apesar de obedecidas, não agradaram  a todos. Os mais festeiros se reuniram na casa do Sabá, para tentar  colocar fim a essa eterna quaresma. Mané Vermelho levou a rabeca  enrolada num pano, porque as pessoas já estavam esquecendo  como que era uma rabeca e uma semana antes quase teve briga  depois da missa por não chegarem a um entendimento se o instrumento tinha 3 ou 4 cordas. O Benedicto Henrique, inspetor da  região, que fora o primeiro a chegar no local da reunião, examinou  a rabeca cuidadosamente e ficou de esclarecer a comunidade sobre  o número exato de cordas que havia nela. Passado esse primeiro  momento adentraram ao tema principal do encontro – “Precisamos que voltem as saúvas” – começou o Seu Fabiano. “A folia do Divino está parada no Lázaro esperando definição, e a gente não pode viver a merce do medo das formigas voltarem… então que voltem  logo e acabem com esse medo!” - concluiu. “Mas e se a gente da  jeito delas não conseguirem voltar?” - sorriu o velho Sabá relutante.  Todos concordaram com essa segunda opção. Os planos foram  elaborados e cada um deveria executar a sua idéia ordenadamente.  Mas antes fizeram promessa pra São Gonçalo. Os primeiros foram o  pessoal do Giró, mestres da fogueira dos festejos de Santa Rita, que  fizeram uma fogueira enorme no local, esperando que o calor  espantasse de vez as formigas e matasse as desavisadas. Cinco dias  se passaram com toda sorte de galhos e troncos sendo consumidos  em chamas. Findo o fogaréu, novo buraquinho apareceu ali perto  dos restos de carvão vertendo terra. O João Profeta foi o segundo,  tratou de cavucar tudo em volta e fazer um cimentado por cima do  formigueiro. O pessoal se animou ao ver, pensando em ser um local  adequado para dançar um bate-pé assim que as saúvas sumissem.  Mas não demorou muito elas desviaram um bocado a saída de seu  túnel e jogaram terra um pouco mais afastado o que em pouco  tempo cobriu o cimentado com um solo avermelhado. O pessoal do  Parú tentou empanturrar as trabalhadoras, todos dias deixavam  toda sorte de pescado na beira do rio para que as formigas fartas,  descansassem ao invés de trabalhar. Mas aparentemente esse  banquete marítimo só aumentou a velocidade e vigor do trabalho  das pequenas. Por último, o Sabá com Fabiano tentaram embriagar  as formigas deixando pratos cheios de cachaça na região. Todos se  animaram quando se reuniram e concluíram que o ritmo das  escavações parecia estar diminuindo a medida que mais formigas  viciavam-se, mas infelizmente o estoque de cachaça da região  estava ficando perigosamente baixo e tiveram que suspender essa  operação um tanto curiosa. 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ESCREVER...ESCREVER...E CELEBRAR!

 

Um ser do quintal - Arquivo JRS


       Há dois dias, mexendo no quintal de casa, entre as folhas em estado de decomposição  encontrei um ser diferente. "Parece alga, daquelas tão comuns nas nossas costeiras, mas é impossível. Ou será mesmo? Não. Pode ser um fungo. Da família dos líquens eu sei que não é. Ah! Não sei!"

  
          Sei que os líquens resultam de uma parceria entre fungos e algas. A gente nota bem eles nas pedras das costeiras e pelos caminhos. Parece que estão na base de tudo, mas muita gente nem sabe disso. Fui ler. Achei:  "os fungos excretam ácidos que modificam a superfície da rocha, liberando minerais que as algas convertem em alimentos e sustentam ambos". Depois disso, mais materiais acabam se ajuntando por ali, recebem sementes e...um belo... dia você passa por ali apreciando bromélias, samambaias, manacarus, pequenos arbustos e até mesmo árvores de porte admirável. Será, então, um tipo de alga o ser do nosso quintal?  Mas a intenção deste vai além, muito além, da novidade encontrada entre as folhas que fertilizam o pedaço de chão onde moramos. Eu quero louvar essa  gente que escreve!


    Tudo começa com observar e anotar. Depois evolui, vira poesia, crônica, peça de teatro, música etc. E aqui está o meu objetivo principal: parabenizar os finalistas dos concursos patrocinados pela fundação cultural  de Ubatuba (FUNDART). No último dia 17, sexta-feira passada, foi a premiação. Infelizmente não pude comparecer, pois precisei correr com o cachorro ao veterinário, deu no que deu e acabou atrasando tudo.  Em especial, estou muito contente  pelos  premiados  na  categoria  Crônicas: 1° -  Carteiro,  de Maria  Helena Barreto;  2° -  Esmola,  de  Jorge  Ivam  Ferreira;  3º - As memórias, de Alessandro C. Silva. Na categoria Teatro, eu já desconfiava que o Leandro J.A. Cruz alcançaria um ótimo resultado  com O baile do padre Baile. Agora, surpresa mesmo foi na Poesia Estudantil Ensino Médio, com As faces do amor, de Wanessa H. Yamada, cujo pai (Pedro Yamada) foi companheiro de adolescência no Perequê-mirim. Na categoria Poesia, me admirei de reencontrar a Grazielle, filha do primo Zé Roberto, com a Rainha do Revés. E o que dizer da beleza da Baía do Flamengo, do Roberto Ferrero bisneto do Velho Henrique, da praia da Enseada?  Que legal! Aos demais que, olhando rapidamente, não reconheci, envio um forte abraço e espero que participem dos concursos futuros e tragam mais gente para nos alegrar. Escrever...escrever...e celebrar é um grande prazer meu. Com certeza também é de vocês. Valeu, pessoal!

domingo, 19 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS SAGRADAS

 

Praia da Enseada (por volta de 1950) - Arquivo Ubatuba-Roberto


    Se detendo na maravilhosa fotografia acima, vejo, bem perto do primeiro rancho, um rio chegando na praia. É dele que o Roberto Ferrero escreve, o Rio do Destacamento. Creio que em outras ocasiões ele falará do Rio do Canto da Bá, do Rio dos Inocentes e de outros veios de águas que se dissolviam na água salgada da praia da Enseada, em Ubatuba, onde tantos sapinhauás, preguaís e pescados serviram a nós como alimento. Portanto, o assunto, o tema registrado pelo estimado Roberto é uma cosmologia caiçara partindo das nossas águas sagradas. Espero que sirva à Educação, a novos posicionamentos diante de tantos ataques contra o meio ambiente. 


As primeiras foram as saúvas. 

                Antes mesmo do sudoeste dar sinal, elas se juntaram e cavaram um engenhoso túnel que não se soube o fim e se foram. O material retirado do solo por onde passou essa insólita empreitada elas usaram para aterrar o Rio do Destacamento, cuja barra outrora era navegável e o leito atingia o coração da comunidade, a capela de Santa Rita. Assim me contou o velho Dito enquanto remendava uma rede. “Isso foi no meu tempo de criança” –  disse sem perder a concentração no trabalho. Mas naquele tempo ninguém entendeu que esse era o fim da saúva na praia da Enseada. Acreditaram que era somente o anúncio de um aguaceiro sem fim. E aguardando o temporal, com medo de ser surpreendido em mar, esse foi também o fim de alguns pescadores da comunidade que passaram seus últimos dias definhando debaixo de majestosas amendoeiras olhando para o mar em busca do menor sinal de chuva e concordando satisfeitos com qualquer pingo que caia.

                Oito meses após o sumiço das saúvas, o povo sem desconfiar de nada comemorava recordes na lavoura. Tal produção só era comparada àquelas obtidas na Ilha dos Porcos, onde também não havia a formiga cortadeira. Era tanta comida que a criação havia engordado e dependiam cada vez menos de caça ou pesca. Depois que a saúva foi embora, também muita gente engordou, e as costureiras por sua vez também se encheram se serviços e afazeres. Em pouco tempo, a vila toda estava prosperando. Mas pegaram mania de comemorar escondidos e sem bulha de fandango, com medo, pois a cada dia mais terra era depositada na agora diminuta Barra do Destacamento, e temiam que a qualquer momento, sinal de fartura, rasqueado de viola ou toque de rabeca, as formigas voltassem! “Pela quantidade de terra aqui depositada elas devem estar pelas bandas de São Luiz” – calculou o velho Maciel investigando o cada vez menor Rio – “e isso elas conseguem vencer em dois dias!” – completou. Ficou acertado num domingo de março que era prudente não fazer a festa de Santa Rita em maio, e nem receber a Folia do Divino na comunidade, para evitar multidões e festanças para o bom zelo e segurança da lavoura e prosperidade. Encomendaram também um relógio grande, para substituir o sino do campanário da capela.


quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O CUIDADOR DA PIÚVA




 

Imagens do meu arquivo (JRS)


     Era cedo. Aquele senhor - já tinha reparado -, passava sempre por ali naquele horário. Deduzi que ele se dirigia à padaria e aproveitava para uma caminhada mais longa. Afinal, conforme vamos envelhecendo, mais ainda precisamos nos preocupar com os músculos para que não se travem. De repente me deu um estalo: "De onde eu o conheço? Ele não me é estranho!". Pensei...pensei..."Ah, já sei! É da rua de baixo, a seguinte, onde tinha aquele ipê que enchia os nossos olhos e as nossas almas até poucos anos". 

   Um dia após eu passei defronte da casa. Coisa triste. Agora, daquela frondosa árvore, onde tanta gente se detinha encantada em épocas de floradas, apenas um toco restava apodrecendo. As gerações vindouras nunca imaginarão aquela beleza. Era uma árvore na calçada, entre tantas calçadas que nem um arbusto tem. Uma piúva, um ipê amarelo muito atraente.

      Aquele senhor...a sua dedicação...os elogios que tantas vezes mereceu... 

          Aquele senhor....aqueles passos inseguros ao amanhecer...

          Aquela piúva...aquela paz de um ser vivente tão belo...

    Aquela rua...e os tantos logradouros que anseiam por um paisagismo que evidenciem o quanto a natureza deve ser protegida e promovida. Dali, daquela beleza tamanha, quantas sementes germinaram com inigualável genética? Não sei. Agora já não existe mais!

        Aquele senhor me fez pensar na velhice, em recordar um pensamento de Epicuro: "Não é ao jovem que se deve considerar feliz e invejável, mas ao ancião que viveu uma bela vida. O jovem na flor de juventude é instável e é arrastado em todas as direções pela fortuna; pelo contrário, o velho ancorou na velhice como em um porto seguro, e os bens que antes esperou cheio de ansiedade e de dúvida, os possui agora cingidos com firme e agradecida lembrança".

       Aquele senhor...o cuidador da encantadora piúva!
 
       Um desafio a todos: viver uma bela vida.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

CAFÉ-CACAU

Uma bainha de café cacau - Desenho JRS

      

     Seo Porphírio, um velho caiçara que há muito tempo faleceu, costumava contar suas histórias na calçada, defronte da casa do filho Juventino, bem ali na rua Gastão Madeira, no coração de Ubatuba. Eu o conheci já cadeirante. Toda ocasião que me aparecia, eu passava no local para ouvi-lo. Era notório que ele ficava contente. Ainda hoje, quando encontro alguma das suas netas, ouço elogios por não ter deixado passar em vão aquelas oportunidades. Foi naquela calçada que eu fiquei sabendo sobre o café-banana. Com a palavra, Seo Porphírio:

    "Houve um tempo, Zezinho, de muitas  dificuldades para nós caiçaras. Eu era ainda criança; até café faltou para nós. Foi quando os pais, os mais velhos, recuperaram o hábito antigo de café-banana. Era assim: pegava banana verde, descascava, torrava na panela de barro e depois socava no pilão até se tornar um pó parecido com o café. Dava um saboroso café, sim senhor!".

   Ou seja, é possível fazer café a partir da banana.

    Anos depois, ouvindo a Creuza Damásio, lá na praia da Fazenda, no centro de formação do Núcleo Picinguaba, fiquei sabendo do café-cacau. 

    "Café-cacau é um cipó que dá cachos, onde cada vagem deles guarda em torno de cinco grãos brancos com um olho preto. Deixa-se a vagem secar até ficar preta. Depois de colhida e batida, recolhe-se os grãos e torra-os em panela de ferro com um pouco de cravo até dar o ponto. Em seguida soca-os no pilão. O pó é parecido com café comum, mas é mais forte, na proporção de um para quatro". 
    
    Eu tomei do dito café e gostei. Levei umas sementes que ainda guardo com muito carinho. Na ocasião, perguntei: "Como você aprendeu isso, Creuza?"

   Imediatamente ela explicou: "Esse café-cacau eu conheci aqui em Ubatuba, assim que cheguei de Minas Gerais, quando uma vizinha me pagou uma quantidade de café emprestado com ele. Ele tem por aí, espalhado nessa mata que nos rodeia".

   Portanto, café-banana e café-cacau são dois tipos de café dos caiçaras.


Em tempo: ultimamente tenho escrito em dias mais espaçados devido a falta de computador e à correria. Ainda está no conserto o meu. 

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O MAR

O mar - Arquivo JRS

       Tarde boa para continuar uma boa leitura. De repente, me deparo com o mar em algumas de suas angústias:


      O oceano tem sido vítima mais da predação consciente do que da involuntária. Muitos pescadores extraem as barbatanas de tubarões e atiram-nos de volta à água, para morrerem. Em 1998, um quilo de barbatana de tubarão era vendido por 110 mil dólares no Extremo Oriente. Uma vasilha de sopa de barbatana custava 100 dólares em Tóquio. O World Wildlife Fund estimou, em 1994, que o número de tubarões mortos anualmente oscilava entre 40 milhões e 70 milhões.
  
      Em 1995, cerca de 35 mil barcos de pesca de tamanho industrial, mais cerca de 1 milhão de embarcações menores, vinham retirando do mar o dobro da quantidade de peixe pescados apenas 25 anos antes. Algumas das traineiras atuais são tão grandes como navios de cruzeiro e lançam ao mar redes com tamanho suficiente para conter uma dúzia de aviões jumbo. Algumas chegam a utilizar aviões de reconhecimento para localizar, do alto, cardumes de peixes.

      Estima-se que cerca de um quarto do total de peixes capturados nas redes não é aproveitável, por eles serem pequenos demais, do tipo errado ou por terem  sido capturados na estação errada. Como um observador contou à Economist: "Ainda estamos na Idade Média. Simplesmente atiramos uma rede ao mar para  ver o que vem". Talvez até 22 milhões de toneladas métricas desses peixes  indesejados são lançados de volta ao mar anualmente, a maior parte em forma de cadáveres. Para cada quilo de camarões capturados, cerca de quatro quilos de peixes e outros animais marinhos são destruídos.


    Mas por que eu me sensibilizei mais nessa parte? Porque eu me recordo dessa fase de cortar barbatanas entre pescadores caiçaras. Ali, na Ilha dos Pescadores, numa ocasião que já está perto de trinta anos, me sacudiu por dentro ver a quantidade de barbatanas secando ao Sol. Comentei com o meu amigo Oscar, na época embarcado num grande barco, sobre o que eu havia testemunhado. E ele: "É triste mesmo, Zé. Conforme o barco vai passando, vamos avistando aqueles imensos cações flutuando".

Qual livro? Breve história de quase tudo, de Bill Bryson. 

 

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A CASA DOS DOIS

Barra do Massaguaçu - Arquivo JRS



     Parei ali mesmo por cansaço. Sobre a água represada, apenas andorinhas revoando e se refrescando. Pensei: "Foi num lugar assim, na praia da Fortaleza, que a vovó Eugênia nos contou a história do veado e da onça quando precisaram de uma casa". Éramos pequenos, adorávamos esses momentos nossos, onde fantasiar era a  lei maior.

     "Prestem atenção, crianças. Um dia a onça e o veado resolveram fazer suas casas. Sem saber, os dois escolheram o mesmo lugar, perto de uma água assim. A onça trabalhava de noite, o veado de dia. Um roçava, outro arrumava madeira; uma envarava, outro embarreava; uma cobria, outro fazia o piso... Ambos admiravam-se da rapidez da obra, acreditavam que um anjo bom os ajudavam, estava acelerando tudo. Só descobriram a verdade no dia da mudança. Discutiram bastante, mas aceitaram a verdade e resolveram morar juntos. Na primeira oportunidade, a onça quis amedrontar o veado que já estava com muito medo, mas não demonstrava. Saiu para caçar e trouxe um grande veado para assar e comer. No outro dia, foi a vez do veado tentar inibir a onça. Não longe dali ele encontrou uma enorme onça morta. Juntou-a, e, com todas as forças, conseguiu levá-la para casa.  Também era para ser assada. A parceira na casa de assustou, imaginou do que seria capaz o outro dono. Teve até medo de dormir. O veado, que também sentia medo da onça, planejou fugir naquele dia. A onça,  cheia de temores após a cena do grande  animal estirado no chão, sem vida, fez o mesmo. Resultado: até hoje a casa está lá, nunca mais foi habitada porque seus donos se foram para sempre".



 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

AS OBRAS VIRÃO

Espinhos na paineira - Arquivo JRD


      "Importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras", conforme escreveu Antônio Vieira, nos Sermões.

     Vencemos mais uma etapa em busca de vivenciar e suscitar práticas antirracistas.  Nós, cidadãos da beira do mar, devemos zelar pela nossa formação continua. Para isso, aí estão as obras e seus autores. No objetivo da empreitada, somos desafiados a olhar, a dar visibilidade a toda essa gente preta que ainda contribui com a nossa formação através de seus romances, de seus tratados, de seus manifestos etc.


     Quem lhe ensinou que Machado de Assis, a grande estrela da língua portuguesa,  era negro? Quem informou aos interessados que o primeiro romance feminino, escrito no Brasil,  em 1859, foi arte de uma negra maranhense: Maria Firmina?  Quem aqui sabe que, Nilo Peçanha, sétimo presidente de Brasil, era afrodescendente? De sua breve gestão, vimos despontar o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a semente da FUNAI, além da inauguração do ensino técnico em nossa pátria.


      É essencial pensar a cultura do nosso dia a dia; refletir sobre nossas raízes e se orgulhar delas. Veja a quantidade de gente que consome cultura negra, mas não se solidariza com as agruras do povo negro! E o que dizer dessa massa ignorante a tripudiar em cima dos povos originários?


      Eu e tantos outros que pertencem à família Dos Santos estamos conscientes de que, em nossas origens estão relações violentas, omissão de paternidade, covardia etc.? "O quê? O meu nome de família em criança assim? Põe Dos Santos e tudo bem".


    A violência nomeada racial se manifesta de inúmeras formas (desprezo, violência e tantas formas de injustiças). Nós, sobretudo nós, povo miscigenado, precisamos nos opor a esse sistema de opressão que nega direitos aos descendentes daqueles homens e mulheres tornados escravos a partir da grande Mãe África, que fizeram o Brasil e se compuseram como principal ingrediente na nossa sopa cultural. Para um ponto final ao texto: sem a participação da negritude não teria a cultura caiçara as características que tem.