sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE (III)
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
A PENCA DE BANANA
Quereis uma penca? (Arquivo JRS) |
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O estimado amigo José Carlos de Góis, além de valoroso profissional do Direito, é craque na escrita de poesias e causos. Eu desejo a ele, à Aládia e aos demais familiares Boas Festas sempre. Que em 2022 possamos apreciar mais contribuições desse caiçara da Enseada neste blog. Gratidão a essa gente boa! Quereis uma penca, amigo?
Corria o ano de 2.002. Eu advogava no escritório do meu saudoso amigo Dr. Eduardo Barbosa Macedo. Havia me inscrito na assistência judiciária, Convênio Procuradoria Geral do Estado e Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo.
Um belo dia do mês de março atendi uma cliente enviada pela OAB. Era uma senhora de uns trinta anos de idade, muito simpática, que foi logo dizendo: Bom dia, dotô. O sinhô foi anumeado pela Óbê pra pegá uma causa minha. E me contou sua história: há seis anos o seu cunhado havia lhe cedido um terreno vizinho da casa dele no Bairro do Ubatumirim para ela construir uma casa e residir com o marido e três filhos pequenos. A casa foi precariamente construída com madeirite, chapas de zinco, telhas de amianto. O chão só ficou no contrapiso muito mal feito. Colocou água da serra na casa e fez o relógio de luz em seu nome com a instalação de energia elétrica pela Elektro. Agora a casa estava precisando ser reconstruída, pois as paredes estavam se desfazendo, o telhado vazava muito na época das chuvas e o chão do quarto estava se abrindo. Com muito sacrifício ela e o marido compraram o material, mas, quando o caminhão chegou para entregar, seu cunhado impediu que o motorista adentrasse o terreno, que ficava uns trezentos metros da BR-101. Conversou com o cunhado e ele lhe disse que ela tinha que desocupar o imóvel, que fosse procurar outro lugar para morar. E foi mais longe: pôs uns mourões de concreto e uma grossa corrente com cadeado para impedir o acesso de veículos até sua casa. Por isso ela tinha procurado a OAB, pois não tinha condições de contratar um advogado, e eu fui nomeado para defender seus interesses.
Ela falava muito, e, ao final de sua narrativa, me disse: Dotô, eu não tenho dinheiro pra lhe oferecê, mais meu pai tem uns terreno no Sertão do Ubatumirim e me disse que se o sinhô ganhá a minha causa ele vai lhe dá um terreno de déis metro de frente por quarenta metro de fundo.
Respondi-lhe que eu já estava sendo pago pelo Estado, mas ela insistiu que ia me dar o terreno por gratidão (mas, é claro, teria que ganhar a ação).
Lhe orientei a tirar umas fotos da casa, da frente, dos fundo, das laterais, do interior mostrando seu marido e seus filhos, a fissura do chão do quarto, bem como dos mourões e da corrente com o cadeado. Pedi também que ela trouxesse o comprovante de ligação da energia elétrica e a primeira conta quitada por ela.
No dia seguinte lá estava ela no escritório com os documentos que solicitei. Pelas fotos podia se ver que a casa precisava de reformas urgentes. Ingressei com uma ação de interdito proibitório e a Juíza da Vara para a qual foi distribuída deu a liminar, determinando a retirada dos mourões e da corrente, permitindo que ela reformasse a casa, sob pena de multa diária.
Quando ela retornou ao escritório e dei-lhe a notícia, exultou de alegria: Dotô, muito obrigado! Olhe, já vô falá pro papai marcá o terreno do sinhô, tá bão?”
E o processo prosseguiu: a parte contrária contestou o feito, houve uma audiência de tentativa de conciliação que restou infrutífera, e a Juíza marcou uma audiência de instrução e julgamento para ouvir testemunhas. Minha cliente me passou o nome de três testemunhas e seus respetivos endereços, e solicitei que na véspera da audiência ela levasse as mesmas no escritório para que eu pudesse conversar com elas, orientá-las sobre o andamento da audiência, etc..
Então, na véspera da audiência ela compareceu com as testemunhas, e após eu ter conversado com elas, e terem se retirado, minha cliente falou efusivamente: Dotô, minha causa já tá ganha, né dotô? Olha Dotô, meu pai já marcô o seu terreno: é uma belezura! Déis metro de frente por quarenta de fundo! Tem laranjeira, mixiriqueira, já dando fruta. E é plaininho, plaininho. O sinhô vai gostá muito Dotô!
Pois bem, houve a audiência, um mês depois saiu a sentença favorável à minha cliente, reconhecendo a posse dela sobre o terreno. A parte contrária não apelou sob a condição de ela cercar o terreno, mas deixando de fora um pé de jaca que era de sua estimação. Ela concordou, a Juíza homologou o acordo e a sentença transitou em julgado.
Ao retornar ao escritório, lhe entreguei a sentença, o acordo, a homologação e a certidão de trânsito em julgado. Ela então me disse: Ah Dotô, como Deus é bão!... Eu sabia que eu ia ganhá essa causa! Muito obrigado Dotô! Lá pro meio da semana que vem eu venho falá com o sinhô.
Não retornou. Passados mais ou menos uns dois meses, cheguei ao escritório de manhã e ao adentrar minha sala deparei-me com uma linda penca de banana nanica sobre a minha mesa. Fiquei intrigado e fui até a sala do Dr. Eduardo e indaguei-lhe quem tinha posto aquela penca de banana sobre a minha mesa. Ele me disse que foi uma senhora do Ubatumirim que havia me trazido. Que essa senhora lhe disse que eu tinha trabalhado numa causa dela, ficou muito contente com o meu trabalho e em gratidão me trouxe a penca de banana.
Comecei a rir às gargalhadas! O Dr. Eduardo não entendeu nada e perguntou se eu estava doido. Contei-lhe tintim por tintim o ocorrido e, então, juntos, rimos também às gargalhadas!
Vejam só que incrível metamorfose: O “meu terreno”, com quatrocentos metros quadrados, com laranjeiras, mexeriqueiras, planinho, planinho, se transformou numa penca de banana!
JOSÉ CARLOS DE GÓIS - 29/12/2021
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE (II)
Parte da Ilha Anchieta. vista da Praia da Pixirica - Arquivo JRS |
segunda-feira, 27 de dezembro de 2021
A ILHA DE ONTEM E DO DIA SEGUINTE
A ilha lá longe (Arquivo JRS) |
A minha amiga Sandra, de Caraguatatuba, externou dois desejos: conhecer a Gruta que Chora e a Ilha Anchieta. Logo eu expliquei a lenda da serpente que se origina na gruta da praia da Sununga. Depois, recorrendo ao trabalho do amigo Peter, enviei a ela alguns fragmentos para a leitura. E me prontifiquei a conversar depois. Caso queira se aprofundar, eu lhe indico também: Németh, Peter Santos. A tradição pesqueira caiçara dos mares da Ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local - São Paulo, 2016.
Primeiro é preciso saber que, há muito tempo, outros povos habitaram este território caiçara no litoral norte paulista. Assim, compartilho a partir de hoje, o que selecionei e os comentários que fiz. Espero que lhe seja útil também.
Breve descrição sobre a área de estudo: sabe-se que muito próximo à Ilha Anchieta, em direção oeste na vizinha Ilha do Mar Virado e ao norte na Praia do Tenório, existem sambaquis que atestam a ocupação humana por populações provavelmente canoeiras (AMENOMORI, 2005; CALLIPO, 2011; BENDAZOLLI, 2014) nessa região da Ilha Anchieta, por um período contínuo de aproximados mil anos, de 620 a.C. até 550 d.C. (UCHO, 1993, 2009; NISHIDA, 2001; BENDAZOLLI, 2014).
Portanto, faz muito tempo que brotou neste chão de Ubatuba as nossas raízes. Não de é ontem que dependemos do mar e da terra para sermos o que somos, mas de muito tempo mesmo!
O assentamento do sítio Mar Virado se deu por [um] grupo pescador-coletor entre os anos 1546 a.C. a 550 d.C. com permanência mais ou menos de 900 a 1000 anos. Por volta do séc. X o sítio foi reocupado pelos Tupi que permaneceram naquele local até o ano 1000. No séc. XVI tivemos a chegada dos europeus. Do séc. XVIII até meados do séc. XX, a presença marcante foi dos caiçaras. Trabalhos de etno-história e etno-arqueologia demonstram também a manutenção das populações pescadoras até os dias atuais.
Eu já escrevi que a tia Gaidinha, descendente de africanos, toda essa gente dos Inocêncio, tiveram uma vida intensa lá no Mar Virado. Também era lá que os meus parentes da Fortaleza preferiam ter suas roças, evitando assim a praga das saúvas. Mais coisas o Peter fez questão de registrar em seu trabalho para que a gente entendesse melhor os nossos ancestrais primeiros.
Ao que tudo indica, a pesca era desenvolvida com utilização de canoas. Chegamos a essa conclusão pela importância das lâminas de machado para os habitantes do sítio, bem como pelas alterações dos membros inferiores dos esqueletos encontrados, resultante, provavelmente, de um esforço constante de remar em pé. Acreditamos que a lâmina de machado fosse utilizada predominantemente na elaboração das canoas (TENÓRIO, 1999: apud CALLIPO, 2011: p.42-44)
Portanto, ao visitar esses lugares, faça uma reverência aos espíritos daqueles que, nas adversidades, deixaram suas marcas e estão na base das nossas raízes culturais. Quando os europeus chegaram, eles abraçaram os conhecimentos e as experiências mais que milenar perpetuada por quem ali estava vivendo. O Estado e a sanha capitalista, a partir do século XX, ao expulsarem e/ou embargarem o pescador caiçara às riquezas desses lugares - seus, por direito milenar! -, cometem, no mínimo, crime cultural, além de alijarem o principal aliado do meio ambiente.
domingo, 26 de dezembro de 2021
MINHA PRIMEIRA ENTREVISTA
Rubens gravando no campo - Arquivo Ubatuba |
Rubens Salles, fiquei sabendo muito tempo depois, era irmão da professora Heloísa Salles Teixeira, a "Tia Helô". Era muito estimado por todos, fazia entrevistas para a rádio local, organizava as tabelas de jogos e cooperava sempre que era possível em ações filantrópicas. Infelizmente morreu cedo. Segundo a sua irmã, "a tuberculose, herança da saudosa mamãe, o levou. Apenas a saudade dele e as boas lembranças permanecem comigo".
sábado, 25 de dezembro de 2021
CANOA EM VERSOS
Grande canoa na Praia Vermelha - Ilhabela - Arquivo Rê |
Prova no Itaguá - Arquivo JRS |
Canoas sobre a Canoa - Arquivo JRS |
Professor Joaquim Lauro veio de Lorena;
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
EM BUSCA DE PEIXE
Em busca de peixe - Arquivo JRS |
Era tempo de Natal. Eu sabia disso porque ouvia uns reclames nos intervalos da programação, no rádio, mas também porque estava acontecendo rezas pelas casas e o grupo de Reisado varava madrugada em cantorias e visitas aos presépios das famílias do nosso lugar. Eu sentia que estava bem próximo porque papai chegou trazendo um garrafão de cinco litros de vinho, tipo Sangue de Boi. Era doce, mas mamãe adoçava mais ainda quando ia bebericar e dar um pouquinho para os filhos. Ah! No mesmo dia da chegada do garrafão, outra novidade: bolo de caixa. Ou melhor, massa pronta para preparo de bolo. Boa nova que mais gente quis conhecer. O resto era tudo igual: arroz, feijão, farinha, peixe, banana, galinha ou pato e mais nada. Faz tempo isso!
A tradição deu um jeito de Jesus nascer no dia 25 de dezembro. Na Europa, segundo contam, era comemorado o nascimento do Sol. Portanto, era a maior festa da Antiguidade. Com o cristianismo ocupando os espaços, as festividades ganharam novos significados. Dentre as comemorações, está o Natal. O importante é pensar na criança, ou melhor, nas crianças que vêm ao mundo. Elas não pediram, mas nós as geramos porque queremos uma descendência, uma continuidade de vida em sociedade. Enfim, um mundo bom depende de gente boa. No fim , a frase marcante do tio Tonico: "Que o Natal seja renovação dessa esperança em uma nova sociedade, onde ninguém vai passar fome e sofrer injustiças. Assim educamos os nossos filhos nesta comunidade".
Artelino escutou essa mensagem já embarcando na canoa. "Depois a gente conversa mais, Tonico. Agora vou no tresmalho, em busca de peixe porque, de acordo com os meus antigos que vieram da Espanha, Natal sem peixe não é Natal, não é mesmo?"
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
AS ÁGUAS SAGRADAS (III)
Boias de mexilhão na Prainha - Arquivo JRS |
Nesta última parte, o Roberto Ferrero, descendente de duas guerreiras caiçaras por nomes de Judith, relaciona as saúvas à nossa história de exploração, de negação cultural, de destruição ambiental pelas décadas, desde a chegada de um modelo de turismo no nosso lugar. O que permaneceu, mesmo em pequenas porções, ilhas aqui, ali e acolá, é o que vai se constituindo em resistência. Valeu, irmão!
Ao final de um ano da partida das saúvas, a produção local
era tão grande e o rio do Destacamento tão pequeno que as canoas não estavam
mais dando conta de escoar todos aqueles mantimentos, de modo que todos
comemoraram a promessa de que, muito em breve, uma nova e asfaltada estrada
cortaria a comunidade e a ligaria até Ubatuba. Mal a notícia alcançou as
Istoninhas, apareceram os primeiros grileiros pelo Perequê-mirim, se apropriando
de tudo quanto era pedaço de terra. Nem o cimentado do João Profeta se safou,
aproveitaram a sólida estrutura e construíram um hotel no lugar. E assim foram
embora a pé os primeiros caiçaras daquele lugar, encheram caixotes com comida e
dinheiro e foram morar em outros cantos. Sumiram feito saúva, mas sem a
promessa de chuva dessa vez. Cada dia que passava, uma nova pessoa era convencida
de que estava vivendo na terra de terceiros, e,envergonhada, se retirava.
Quando
a estrada chegou, a produção local já era tão pouca que poderia ser levada na
mão em sacolas. Ao contrário do que se comemorou, a estrada trouxe mais coisas
do que escoou. Porque gente não é coisa. E foi gente que foi embora por ela. A
estrada trouxe foi o primeiro rolo de arame farpado que viram na vida. Sem
entender aquele espinhento pedaço de metal, muitos se perguntaram se deveriam
começar a se preocupar com os costumes da gente de fora, enquanto alguns
comemoravam ser essa a solução para manter a raposa longe do galinheiro.
Não
demorou muito e o Rio do Destacamento foi finalmente canalizado e escondido em
tubulações de concreto, pois o seu cintilante leito não combinava com as
quadras planejadas. O último fabriqueiro do lugar vendeu seu último enxó,
porque já ninguém queria uma viola cavucada, armário de tábua e nem arrumar uma
canoa. Nem colher de pau e tramela usavam mais. A gente de fora tinha outros
gostos. Foi mais ou menos quando o último mandiocal deu lugar a um condomínio,
lá pelo meio da praia. Nem os cajueiros do Seu Vitorino foram poupados, e nem
um dos tantos que brotaram por graça que costumava fazer.
Após
alguns poucos anos, a última benzedeira se foi, levando consigo uma série de
mazelas. Nunca mais ninguém teve cobreiro, tripa virada ou mal olhado. Nem
ninguém mais ficou encantado. Porque essas eram ocorrências específicas de
diagnóstico e trato do benzimento. Também as roseiras, outrora vorazmente
atacadas pela saúva, floriam em paz. Mas já não havia na comunidade versistas
ou violeiros para fazer poesia, e em pouco tempo, os poucos caiçaras que
restaram ali deixaram de plantá-las por terem esquecido de como eram bonitas. E
por falar em flores, foi esse o fim da última canoa da Enseada, virou floreira
em casa de veraneio. Não tão longe do último remo, que virou escora de varal. A
penúltima canoa, uma pequenina, foi tirado o bordo e virou prancha de surf. O
derradeiro tacho de forneá farinha foi trocado num radinho de pilha.
Setenta
e três anos mais tarde, findou a empreitada da saúva. Ao retornarem para casa
ficaram espantadas sem entender direito onde estavam. Não reconheciam mais
ninguém. Ficaram um tempo sentadas na tubulação que cuspia água do rio, que nem
nome mais tinha, olhando o mar tentando calcular quanto tempo estiveram fora.
Incomodadas com o cheiro de esgoto e a fome, separaram-se em grupos e cada qual
foi para uma região, da Ribeira até as Toninhas. E depois mais longe, da cidade
até o pontão da Fortaleza... não encontraram sequer um pé de mandioca para
roer.
quarta-feira, 22 de dezembro de 2021
A JORNADA DO ANTENOR
Antenor e Estevan (Arquivo JRS) |
Antenor Nunes, o Sensei Nunes, 5º Dan, aluno estimado do Mestre Josino.
Mestre Antenor Nunes, quem orientou nosso querido Estevan e tanta gente por tantos anos.
Antenor Nunes, eletricista, pintor etc. e amigo desde o início da década de 1980; caiçara como eu.
Antenor Nunes (1951 - 2021) foi um exemplo para a nossa geração e outras mais novas. Há alguns meses, durante uma compra no supermercado, nos encontramos. Como era costume dele, a primeira coisa de sempre: perguntar pelo Estevan e externar o quanto ele o estimava.
Prosa boa com Antenor era sobre peixes e pescarias, mas também sempre tinha algum causo para amarrar com alguma moral. Assim era o meu amigo Antenor.
Ontem, nos pegou de surpresa a notícia de que sofrera um AVC e estava em coma. Agora o pior: ele faleceu e, na parte da tarde, será seu sepultamento.
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
AS ÁGUAS SAGRADAS (II)
Na parte anterior, a comunidade caiçara decidiu algumas coisas para amenizar a crise com o Rio do Destacamento, mas...continua aí, Roberto.
Mas é claro que tais medidas, apesar de obedecidas, não agradaram a todos. Os mais festeiros se reuniram na casa do Sabá, para tentar colocar fim a essa eterna quaresma. Mané Vermelho levou a rabeca enrolada num pano, porque as pessoas já estavam esquecendo como que era uma rabeca e uma semana antes quase teve briga depois da missa por não chegarem a um entendimento se o instrumento tinha 3 ou 4 cordas. O Benedicto Henrique, inspetor da região, que fora o primeiro a chegar no local da reunião, examinou a rabeca cuidadosamente e ficou de esclarecer a comunidade sobre o número exato de cordas que havia nela. Passado esse primeiro momento adentraram ao tema principal do encontro – “Precisamos que voltem as saúvas” – começou o Seu Fabiano. “A folia do Divino está parada no Lázaro esperando definição, e a gente não pode viver a merce do medo das formigas voltarem… então que voltem logo e acabem com esse medo!” - concluiu. “Mas e se a gente da jeito delas não conseguirem voltar?” - sorriu o velho Sabá relutante. Todos concordaram com essa segunda opção. Os planos foram elaborados e cada um deveria executar a sua idéia ordenadamente. Mas antes fizeram promessa pra São Gonçalo. Os primeiros foram o pessoal do Giró, mestres da fogueira dos festejos de Santa Rita, que fizeram uma fogueira enorme no local, esperando que o calor espantasse de vez as formigas e matasse as desavisadas. Cinco dias se passaram com toda sorte de galhos e troncos sendo consumidos em chamas. Findo o fogaréu, novo buraquinho apareceu ali perto dos restos de carvão vertendo terra. O João Profeta foi o segundo, tratou de cavucar tudo em volta e fazer um cimentado por cima do formigueiro. O pessoal se animou ao ver, pensando em ser um local adequado para dançar um bate-pé assim que as saúvas sumissem. Mas não demorou muito elas desviaram um bocado a saída de seu túnel e jogaram terra um pouco mais afastado o que em pouco tempo cobriu o cimentado com um solo avermelhado. O pessoal do Parú tentou empanturrar as trabalhadoras, todos dias deixavam toda sorte de pescado na beira do rio para que as formigas fartas, descansassem ao invés de trabalhar. Mas aparentemente esse banquete marítimo só aumentou a velocidade e vigor do trabalho das pequenas. Por último, o Sabá com Fabiano tentaram embriagar as formigas deixando pratos cheios de cachaça na região. Todos se animaram quando se reuniram e concluíram que o ritmo das escavações parecia estar diminuindo a medida que mais formigas viciavam-se, mas infelizmente o estoque de cachaça da região estava ficando perigosamente baixo e tiveram que suspender essa operação um tanto curiosa.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
ESCREVER...ESCREVER...E CELEBRAR!
Um ser do quintal - Arquivo JRS |
domingo, 19 de dezembro de 2021
AS ÁGUAS SAGRADAS
Praia da Enseada (por volta de 1950) - Arquivo Ubatuba-Roberto |
Se detendo na maravilhosa fotografia acima, vejo, bem perto do primeiro rancho, um rio chegando na praia. É dele que o Roberto Ferrero escreve, o Rio do Destacamento. Creio que em outras ocasiões ele falará do Rio do Canto da Bá, do Rio dos Inocentes e de outros veios de águas que se dissolviam na água salgada da praia da Enseada, em Ubatuba, onde tantos sapinhauás, preguaís e pescados serviram a nós como alimento. Portanto, o assunto, o tema registrado pelo estimado Roberto é uma cosmologia caiçara partindo das nossas águas sagradas. Espero que sirva à Educação, a novos posicionamentos diante de tantos ataques contra o meio ambiente.
As primeiras foram as saúvas.
Antes
mesmo do sudoeste dar sinal, elas se juntaram e cavaram um engenhoso túnel que
não se soube o fim e se foram. O material retirado do solo por onde passou essa
insólita empreitada elas usaram para aterrar o Rio do Destacamento, cuja barra
outrora era navegável e o leito atingia o coração da comunidade, a capela de
Santa Rita. Assim me contou o velho Dito enquanto remendava uma rede. “Isso foi
no meu tempo de criança” – disse sem
perder a concentração no trabalho. Mas naquele tempo ninguém entendeu que esse
era o fim da saúva na praia da Enseada. Acreditaram que era somente o anúncio
de um aguaceiro sem fim. E aguardando o temporal, com medo de ser surpreendido
em mar, esse foi também o fim de alguns pescadores da comunidade que passaram
seus últimos dias definhando debaixo de majestosas amendoeiras olhando para o
mar em busca do menor sinal de chuva e concordando satisfeitos com qualquer
pingo que caia.
Oito
meses após o sumiço das saúvas, o povo sem desconfiar de nada comemorava
recordes na lavoura. Tal produção só era comparada àquelas obtidas na Ilha dos
Porcos, onde também não havia a formiga cortadeira. Era tanta comida que a
criação havia engordado e dependiam cada vez menos de caça ou pesca. Depois que
a saúva foi embora, também muita gente engordou, e as costureiras por sua vez
também se encheram se serviços e afazeres. Em pouco tempo, a vila toda estava
prosperando. Mas pegaram mania de comemorar escondidos e sem bulha de fandango,
com medo, pois a cada dia mais terra era depositada na agora diminuta Barra do
Destacamento, e temiam que a qualquer momento, sinal de fartura, rasqueado de
viola ou toque de rabeca, as formigas voltassem! “Pela quantidade de terra aqui
depositada elas devem estar pelas bandas de São Luiz” – calculou o velho Maciel
investigando o cada vez menor Rio – “e isso elas conseguem vencer em dois
dias!” – completou. Ficou acertado num domingo de março que era prudente não
fazer a festa de Santa Rita em maio, e nem receber a Folia do Divino na
comunidade, para evitar multidões e festanças para o bom zelo e segurança da
lavoura e prosperidade. Encomendaram também um relógio grande, para substituir
o sino do campanário da capela.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021
O CUIDADOR DA PIÚVA
Imagens do meu arquivo (JRS) |
segunda-feira, 13 de dezembro de 2021
CAFÉ-CACAU
Uma bainha de café cacau - Desenho JRS |
quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
O MAR
O mar - Arquivo JRS |
quinta-feira, 2 de dezembro de 2021
A CASA DOS DOIS
Barra do Massaguaçu - Arquivo JRS |
"Prestem atenção, crianças. Um dia a onça e o veado resolveram fazer suas casas. Sem saber, os dois escolheram o mesmo lugar, perto de uma água assim. A onça trabalhava de noite, o veado de dia. Um roçava, outro arrumava madeira; uma envarava, outro embarreava; uma cobria, outro fazia o piso... Ambos admiravam-se da rapidez da obra, acreditavam que um anjo bom os ajudavam, estava acelerando tudo. Só descobriram a verdade no dia da mudança. Discutiram bastante, mas aceitaram a verdade e resolveram morar juntos. Na primeira oportunidade, a onça quis amedrontar o veado que já estava com muito medo, mas não demonstrava. Saiu para caçar e trouxe um grande veado para assar e comer. No outro dia, foi a vez do veado tentar inibir a onça. Não longe dali ele encontrou uma enorme onça morta. Juntou-a, e, com todas as forças, conseguiu levá-la para casa. Também era para ser assada. A parceira na casa de assustou, imaginou do que seria capaz o outro dono. Teve até medo de dormir. O veado, que também sentia medo da onça, planejou fugir naquele dia. A onça, cheia de temores após a cena do grande animal estirado no chão, sem vida, fez o mesmo. Resultado: até hoje a casa está lá, nunca mais foi habitada porque seus donos se foram para sempre".
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
AS OBRAS VIRÃO
Espinhos na paineira - Arquivo JRD |
Vencemos mais uma etapa em busca de vivenciar e suscitar práticas antirracistas. Nós, cidadãos da beira do mar, devemos zelar pela nossa formação continua. Para isso, aí estão as obras e seus autores. No objetivo da empreitada, somos desafiados a olhar, a dar visibilidade a toda essa gente preta que ainda contribui com a nossa formação através de seus romances, de seus tratados, de seus manifestos etc.
Quem lhe ensinou que Machado de Assis, a grande estrela da língua portuguesa, era negro? Quem informou aos interessados que o primeiro romance feminino, escrito no Brasil, em 1859, foi arte de uma negra maranhense: Maria Firmina? Quem aqui sabe que, Nilo Peçanha, sétimo presidente de Brasil, era afrodescendente? De sua breve gestão, vimos despontar o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a semente da FUNAI, além da inauguração do ensino técnico em nossa pátria.
É essencial pensar a cultura do nosso dia a dia; refletir sobre nossas raízes e se orgulhar delas. Veja a quantidade de gente que consome cultura negra, mas não se solidariza com as agruras do povo negro! E o que dizer dessa massa ignorante a tripudiar em cima dos povos originários?
Eu e tantos outros que pertencem à família Dos Santos estamos conscientes de que, em nossas origens estão relações violentas, omissão de paternidade, covardia etc.? "O quê? O meu nome de família em criança assim? Põe Dos Santos e tudo bem".
A violência nomeada racial se manifesta de inúmeras formas (desprezo, violência e tantas formas de injustiças). Nós, sobretudo nós, povo miscigenado, precisamos nos opor a esse sistema de opressão que nega direitos aos descendentes daqueles homens e mulheres tornados escravos a partir da grande Mãe África, que fizeram o Brasil e se compuseram como principal ingrediente na nossa sopa cultural. Para um ponto final ao texto: sem a participação da negritude não teria a cultura caiçara as características que tem.