domingo, 6 de janeiro de 2019

SANTOS REIS CAIÇARAS

Peixes adorando o menino (Arquivo JRS)



               Os festejos do catolicismo sempre foram bem observados pelos velhos caiçaras, quase tudo se organizava em torno dessas comemorações. Numa ocasião, entre o Natal e o Dia dos Santos Reis, quando eu passava uns dias na comunidade da praia do Puruba, entre os irmãos dali (Tio Dico, Tia Baía, Tia Zaíra e Tio Antônio. Tia Rosa ainda não viera da cidade), depois de muita prosa e risadas na noite, esta foi a versão dos reis magos:

Tia Baía:  - Os Santos Reis estão passando pelas casas. O grupo do sertão do Puruba, na sua cantoria, nos relembra a cada ano a história do menino Jesus. Desse modo nós aprendemos sobre a nossa fé desde os mais antigos.

Tia Zaíra:  - José e Maria passaram um sufoco. Diz a história que não havia lugar para se acomodarem decentemente e ainda precisaram fugir da perseguição de Herodes. Foi numa toca de pedra que Jesus nasceu.

Tio Dico:   - O pior foi enfrentar aqueles caminhos seguindo a estrela-guia. isso quer dizer que eles viajavam de noite. Nós sempre viajamos daqui até a cidade [distante 25 quilômetros] de noite, não é mesmo?!? Quando é tempo de Lua cheia até que não é tão difícil, mas em noite escura de breu só coruja se dá bem!

Tio Antônio:  - É desse jeito, Dico! Agora mesmo eu não estou sem a unha do dedão por causa de um escorregão na semana passada, na volta da madrugada da festa de encerramento da novena na praia Vermelha?!?.

Tia Baía:  - Ah! Mas o que aconteceu também teve a ajuda do tanto que você bebeu de consertada, ouviu Antônio?! É doce, é gostosa, mas também embebeda!

Tio Dico:  - É por isso que eu não bebo. Depois, Antônio, sempre tem alguém jogando essa verdade na  sua cara, está ouvindo? E você já imaginou aquele pessoal se embebedando pelos caminhos: os Santos Reis e a Sagrada Família subindo as grimpas do Léo e rolando naquela grota do Canto do Félix, depois das Conchas? Teriam que dormir na areia grossa, debaixo daqueles abricoeiros, antes da capela. Se apagariam ali! E qual balseiro toparia em atravessar toda essa gente tonta de cansaço e de outras coisas? Teriam que ir à bau primeiro o Indaiá e depois a barra da cidade, o rio Grande.

Tia Zaíra:  -  Que nada! Nem chegariam lá! É certo que seguiriam o caminho contrário, aquele ensinado pelo perverso rei Herodes.

Tio Dico:   - Iriam parar então em Paraty?

Tia Baía:  -  Deixem de falar disso. Não se brinca com coisa sagrada.

Tio Antônio:  -  Você acha, minha irmã, que coisa sagrada, que gente sagrada é diferente da gente? Que eles não precisavam correr no mato quando tinham as necessidades deles? Não se agachavam para tomar no rego quando batia a sede? Será que não pararam nenhuma vez para pedir um café com farinha e peixe seco assado?

Tio Dico:  -  O Antônio tem toda razão. Contam os mais velhos que quem fez caridade assim recebeu uma benção, se compadeceu do grupo que tinha muito ainda para andar, foi junto, seguindo eles até a cidade. A Maria era jovem, mas estava muito pesada e não conseguia andar depressa. Por sorte que a pensão do Braga, logo ali, perto da igreja, sempre dava um jeito de acomodar quem precisasse. Não sei se fosse igual à temporada de hoje, com tanta gente, seria possível isso.

Tia Zaíra:  -  É, isto é certo: iam devagar, no ritmo dela que estava quase na hora do parto. Confiavam que tudo daria certo.

Tio Dico:  -  O menino na barriga foi se sacudindo todo.

Tio Antônio:  -  A mãe, coitada, deve ter vomitado demais.

Tia Baía:   -  É mesmo, né?

Tio Dico:   -  Mas as Escrituras não diz que ela tinha a força do Espírito Santo?!? E os outros?

Tio Antônio:  -  Ah, Dico! Deixa disso! Os outros tinham a força da nossa comida! Eles não se alimentaram como nós? Não comeram do nosso peixe, da nossa farinha de mandioca? Você acha que ninguém deu um grosso biju para irem roendo na longa pernada? Além do mais, já era tempo de jaca e de goiaba maduras. Só não comeram muito para não se empaturrar e ter de parar.

Tia Baía:  -  Vamos deixar de prosa. Agora já é hora de ir para a capela porque o compadre Dito Fernandes, a comadre Mocinha, o Pedro Brandão, o Anastácio e mais gente do sertão estão chegando assim que o galo anunciar a madrugada. Depois da cantoria a gente desmonta o presépio e guarda para só montar de novo em dezembro.

Tio Antônio:  -  E, depois da comidoria, vamos para o tio Durval. Já está tudo pronto para o bate-pé no assoalho dele! É hoje que o Sol desponta na Justa com gente lascando tamanco! Viva os Santos Reis! Viva!!!

Todos (inclusive eu):  - Viva os Santos Reis!!!



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