Detalhes notados (Arquivo JRS) |
Sabe aquele dia que
você acorda pensando nas pessoas que passaram por sua vida, mas não estão mais
compartilhando o seu dia a dia? Pois é! Hoje eu amanheci me recordando da
Fernanda Liberal que, no começo da década de 1970, junto com o esposo Lemar,
filhos e filha (Patrícia), resolveu se mudar da cidade grande para o litoral.
Em Ubatuba, na praia do Perequê-açu, construíram seu retiro de aconchego, onde
Fernanda, com muita sensibilidade, inspiração e talento nos deixou emocionantes
páginas, de onde eu recortei o texto abaixo. Assim ela continua entre nós,
imortal. Conforme escreveu o amigo Jorge Ivam, “nossos bons pensamentos serão
multiplicados quando escrevemos para todos lerem”. Ah! E deste talentoso baiano
acaiçarado tomei emprestado o título deste. Valeu, Jorge!
Cada vez que
passa de carro sobre a ponte do Perequê-açu volta o desejo. Olha o sobradão do
Porto. Soube de um concurso de contos. Quando as inscrições se encerram? E
passa um dia e outro dia, e nada. Fica só no desejo.
Vai
descansar um pouco – folhear revistas antigas. Curte muito essa viagem no
tempo.
A
arte de ser mulher – lê e relê, volta a ler, se encanta, se assusta, são
palavras fortes, atingem. Naquela época, 74, seus grilos eram sair de São
Paulo, Capital, e vir para a praia. O tema frequente em suas escritas era
“assumir-se”, “ser eu”, por inteiro, abrigar o desejo, a plenitude, viver para
dentro e depois para fora. Ah! Carmen, quantos anos ela comprou a revista só
para te encontrar, te ler, te saborear: tua irreverência saudável questionando
o estabelecido, propondo mudanças, incentivando o novo, o fértil, a Vida.
Dentro
dela, na biblioteca, sua filha Patrícia vira o lado da fita. Ah! Essa Elis
Regina...
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar do tamanho da
paz/ E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
(...)
Eu quero a esperança de óculos
E o filho de cuca legal
(...)
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais.
“...
é você, minha querida Elis – te lembro nos festivais da Record -, eu tinha
filhos pequenos, bebês, e sabe... eu os embalava cantando suas músicas e
pensando em você. Na tua energia, na alegria, na força da tua voz, na
interpretação que vinha das vísceras. Te assisti nos palcos. Te admirava.
Passei a saber da tua vida – aí aumentou a admiração. Mulher coragem, mulher
que ‘vira a mesa’, que pensa pela sua cabeça, que opta pelo amor enquanto ele é
bom, gostoso, prazeroso, que reclama, que tem gênio forte, que é briguenta, que
quer uma ‘casa no campo’, e defende o verde, uma vida saudável. Você, Elis, que
tinha angústias, depressões, loucos amores, indagações e esperanças”.
Pega
uma flanela e tira o pó dos objetos da estante. Bate os olhos no seu rosto e
Dina Sfat a olha fundo. É capa do livro Palmas
pra que te quero. Pensa: “Estou descobrindo a amada e fértil solidão –
tentando ser eu, por inteiro. Integrando meus limites, corporando minhas
couraças, enxergando meus defeitos, revendo andanças, querendo criar. Em cima
dessa busca, eterna busca de felicidade (comigo), existe você, Dina. Como eu a
amo! Não aceito sua partida. Ela está aqui – no seu livro, sua vida inteira,
seus medos, sua insegurança, sua imensa e poderosa coragem, sua garra, fibra e
verdade. A cara de Dina é verdadeira. Aquele solhos penetrantes que no palco,
teatro ou TV te olham, lá no fundo, mergulham e seguem os olhos. A voz de Dina
– ela fala e diz -, as palavras saem da carne, da pele, dos poros. Ah! Dina,
como eu me lembro de você naquela São Paulo dos anos 60, 70, quando eu tinha um
olhar de esperança nas pessoas e você, em especial, me fascinava, me seduzia.
Te acompanhei de perto, não perdia peça que você participasse, sabia das tuas
inquietações, da simbiose, da perda da identidade. Era como se a nossa busca, a
nossa trajetória de mulher, como eu, você e outras, fosse a mesma: era um
espelho coletivo, onde nos refletíamos umas às outras. Sinto uma saudade funda
de você, Dina Sfat”.
Limpa
mais livros, objetos, artesanatos de Ubatuba, hoje de céu azul, sem nuvem
alguma, as frutas na gamela, a roupa seca no varal, ainda algum trabalho a ser
feito, uns telefonemas para dar, umas gavetas por arrumar, e muitos, muitos
conflitos por administrar. Senta agora, um pouco, abre a janela, entra o ar
leve e muito barulho do mar – pega o lápis (adora escrever a lápis) e pensa: “E
o conto?”.
Na
dedicatória de suas Mulheres Oceânicas,
assim nos escreveu a saudosa Fernanda: Zé e Gláucia
vocês são “oceanos de doação”. Quanta
saudade dessa mulher!
Ah! Que todos nós tenhamos um bom dia!
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