Frei Pio, do "Barco do Padre". (Arquivo Luzia) |
Na década de 1970, antes mesmo de começar a
construção da BR-101 (Rio-Santos), no trecho entre Paraty e Ubatuba, o
pesquisador Olympio Corrêa de Mendonça, se utilizando do “Barco do Padre”, que
fazia a rota das comunidades caiçaras isoladas, inclusive das ilhas, empreendeu
uma interessante pesquisa, cujo título acabou sendo O léxico do falar
caiçara de Ubatumirim, onde aparece considerações acerca de alguns traços
do nosso povo. Por exemplo, a respeito da religião e das crendices, assim está
registrado:
Não há uma moral religiosa no
sentido explícito da palavra. As ações são consequências de tradições e as
novidades são encaradas com desinteresse e, se provocam alguma modificação, são
analisadas com bom senso. São, até certo ponto, refratários à pregação
religiosa dos católicos ou protestantes.
Resistem mais com indiferença e a falta de adesão do que com palavras ou atos
hostis. Na prática, parecem desconhecer a noção de pecado, e nem mesmo as crendices e
as superstições merecem crédito. Parece não existir tabus que cheguem a afetar
a confiança no próprio homem. Oswaldo Elias Xidieh, em seu trabalho “Narrativas
pias populares”, conta o que observou em suas andanças pela Ilha dos Búzios,
nesse mesmo litoral. Um de seus companheiros achegou-se do velho Mateus,
morador do Saco das Guanxumas, fabricante de objetos de madeira, e lhe disse
quase à queima roupa:
“Seu Mateus, o senhor sempre
morou aqui na ilha, e, por isso, deve conhecer muita coisa a respeito das
crenças dos caiçaras. Por exemplo, os senhores acreditam em assombração, não é
mesmo?” O velho respondeu categoricamente: “Olha moço, disso eu não sei...
Agora, dessas histórias que o senhor fala, nós não sabemos nada”.
De outra feita, inquirimos um
informante do Sertão da Quina, bairro rural ao sul de Ubatuba, e recebemos
resposta semelhante. Trata-se do senhor João José Giraud, nascido na praia da
Lagoinha:
“ Eu já ouvi falá de assombração,
mais até hoje não vi e não posso afirmá. Acho que não tem não. De primêro,
quando era criançola, tinha medo de assombração, mais adespois, lavava corpo,
vestia, carregava, fazia cova, enterrava; me desapareceu o medo”.
Por ocasião da chegada dos
primeiros tratores da Rio-Santos, roncando na serra, à noite, com seus dois
faróis iluminados, ouvimos amigos caiçaras ameaçarem as crianças, dizendo que
era boitatá. A alusão não surtia efeito. Esses comportamentos são tachados por
alguns estudiosos da região como relaxamentos morais. [...] Nós, entretanto,
durante os anos que convivemos com essas pessoas, notamos as reações naturais
que têm ao se defrontarem com os problemas da vida. No artesanato, esculpem os
animais e os homens com os membros sexuais; em sua designação não há quase
termos chulos, e desconhecem os da sociedade circundante. Enquanto o
forasteiro, operário da Rio-Santos, peja-se ao pronunciar o nome do peixe
baiacu, o caiçara o faz sem nenhuma falsa vergonha. Em contato, porém, com o
visitante, ele para não ser ridicularizado, diz astutamente embaia ou baiácu.
Percebe-se que a contaminação do pseudo-moralismo urbano já está irrompendo por
lá.
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