quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

ENSEADA (UM TEXTO DESPRETENSIOSO)

O menino do Fabiano, futuro doutor, catando sapinhauá (Arquivo JCG)

               No ano de 1970, justamente no final da Copa do México, quando o Brasil tornou-se tri-campeão no futebol, um grupo de caiçaras da Praia da Enseada se encontrova no terreiro da casa do Gastão, no lugar chamado de Pedra Branca, para torcer. Dentre eles, eu conheci o José Carlos de Góis. Morava ali, na Rua do Cruzeiro. Hoje, ele é um competente advogado e cheio de talento na escrita. Parabéns! Sou muito grato pelo presente texto que transpira tanto de caiçara! Um abraço, Zé!


     Quando nasci, na década de 50, Ubatuba era paradisíaca. Meu mundo era a Praia da Enseada, o quintal da mamãe cheirando manacá, arruda, alecrim, guiné, as flores das laranjeiras nevando o chão. O jundu, na praia, com sua vegetação nativa, as flores roxas do cipó de corvina, o rabo de bugio, os frutos cheirosos dos abricoeiros, as amêndoas dos chapéus-de-sol, os coquinhos jarobá... Quanta saudade!

     Papai subia o caminho do porto assobiando, os olhos refletindo todo o azul do mar, a fieira de peixe, o samburá de timbopeva cheio de sururu, aquele pé de moleque caiçara, cheirando a gengibre, que regalava eu e minha irmã Conceição.

    Mamãe na velha máquina de costura, cantando, completamente desafinada, músicas que ainda hoje estão na minha memória, como se estivesse ali, sentado no canto da sala, ouvindo sua voz forte de mulher caiçara: “Eu vi sobre o mar navegando, um barco floreando em flor/ Albertino em tu pensando, nada mais do que o amor”... E outra: “Vamos sambar minha gente, pelo sertão, pelo mar/Queremos ter na lembrança a dança do carnavá” (segundo ela, a música do carnaval era de autoria do padrinho Benedito Henrique, na época de sua mocidade, quando faziam blocos de carnaval para brincar na praia).

      O costão da Enseada, o meu velho e querido amigo Silvério Bastos de Ornelas, carinhosamente chamado de Sabá, na pesca da garoupa. Dele tenho gratas recordações. Quando ia pescar, já me chamava, alto e bom som: “Vamos Zé Calos?”  E era assim mesmo, sem a letra erre.  Eu não cabia em mim de contente. Pegava minha varinha mixuruca, com anzol de pegar amborê, e lá ia com o Sabá para a costeira do lado oeste da Enseada. No costão, a pedra onde ele ficava era a mesma. Só que não deixava eu ficar rente a ele. Mandava eu ficar em outra pedra afastado uns vinte metros donde ele estava, “pra mode não intrapalhá, não ispantá as garopa”. E lá ficava eu pegando meus amborés, às vezes um guaiá, enquanto o Sabá pegava uma ou duas garoupas. A isca que sobrava (sardinha ou bonito) ele jogava no mar, e dizia: “Zé Calos, isso é pra ingodá, quando a gente vortá aqui, despois de amanhã,  elas já vão istá isperando e nóis pega mais umas duas.” E era tão somente o que ele pegava. Era pura sabedoria. Pescava apenas o suficiente para o nosso sustento (ele sempre me dava postas das garoupas). Não tinha a ganância de hoje de pegar duas, três, dez, vinte..., na usura de vender e ganhar com a exploração desenfreada.

      Cabe aqui contar uma passagem que demonstra a sabedoria do Sabá: estava ele a pescar garoupa, eu, os amborés, quando percebi que sua linha havia enroscado. Ele com toda a paciência que lhe era peculiar firmou a vara numa reentrância das pedras do costão, de modo que a linha de pesca ficou retesada. Pegou algumas pedras pequenas (do tamanho de um punho fechado), pegou no samburá pedaços de linha, e foi amarrando nas pedras, deixando as pontas soltas; daí passava as pontas da linha amarrada na pedra ao redor da linha retesada, dava um nó e soltava: a pedra deslizava pela linha retesada, e “tchimbum”, afundava na água. Ele pegava a vara, experimentava, dando pequenos puxões; tornava a repetir a operação. Na terceira pedra, veio uma bela garoupa, de, pelo menos, três quilos. Fiquei admirado! Pedi pro Sabá me explicar como a linha tinha desenroscado e ele tinha pegado a garoupa. Me explicou com seu lindo sorriso: a garoupa quando é fisgada pelo anzol tenta desesperadamente entrar na toca; quando consegue ela se arrepia toda e as galhas ficam presas na pedra, e a linha fica enroscada; quando ele fez as pedras deslizarem pela linha retesada,  as mesmas bateram no focinho da garoupa. Primeira, segunda, na terceira ela já estava incomodada e saiu da toca. Daí foi só puxar! Ah, Sabá, eu tinha, então meus doze anos...

Da saudade da Enseada antiga, escrevi este poema (que musiquei à minha moda), em 2.013:

PRAIA DA ENSEADA

Praia da Enseada, que gosto me dá
Cantar para o mundo que eu nasci lá,
Filho de Fabiano e de Pitiá
Cresci embalado nos braços do mar,
Ouvindo as cantigas dos sabiás,
Curtindo a beleza dos caraguatás,
Sentindo o perfume dos manacás,
Em meio à pureza dos laranjais,
Infância-caiçara que não volta mais!

     Mudei da Praia da Enseada em 1.987. Vou lá sempre visitar minhas irmãs Zefa, Conce, Doca, e rever meus amigos. Gosto de ficar olhando o mar e vejo o garoto feliz, cabelos desenfreados ao vento, dorso nu, ouvindo o assobio que vem do passado, e sinto a leve carícia de papai nos meus ombros...


Ubatuba, 08 de janeiro de 2.015.

Em tempo: e que tal decifrar o caiçarês ?


1- UMA NIMBUIA NA GAMBÔA FAZENDO BULHA.

2- MININO, QUIDELE O TESTO QUI TAVA DE JÁ HOJE AQUI, JUNTO DA SERENGA?

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