O menino do Fabiano, futuro doutor, catando sapinhauá (Arquivo JCG) |
No ano de 1970, justamente no final da Copa do México, quando o Brasil tornou-se tri-campeão no futebol, um grupo de caiçaras da Praia da Enseada se encontrova no terreiro da casa do Gastão, no lugar chamado de Pedra Branca, para torcer. Dentre eles, eu conheci o José Carlos de Góis. Morava ali, na Rua do Cruzeiro. Hoje, ele é um competente advogado e cheio de talento na escrita. Parabéns! Sou muito grato pelo presente texto que transpira tanto de caiçara! Um abraço, Zé!
Quando
nasci, na década de 50, Ubatuba era paradisíaca. Meu mundo era a Praia da
Enseada, o quintal da mamãe cheirando manacá, arruda, alecrim, guiné, as flores
das laranjeiras nevando o chão. O jundu, na praia, com sua vegetação nativa, as
flores roxas do cipó de corvina, o rabo de bugio, os frutos cheirosos dos
abricoeiros, as amêndoas dos chapéus-de-sol, os coquinhos jarobá... Quanta
saudade!
Papai
subia o caminho do porto assobiando, os olhos refletindo todo o azul do mar, a
fieira de peixe, o samburá de timbopeva cheio de sururu, aquele pé de moleque
caiçara, cheirando a gengibre, que regalava eu e minha irmã Conceição.
Mamãe
na velha máquina de costura, cantando, completamente desafinada, músicas que
ainda hoje estão na minha memória, como se estivesse ali, sentado no canto da
sala, ouvindo sua voz forte de mulher caiçara: “Eu vi sobre o mar navegando, um
barco floreando em flor/ Albertino em tu pensando, nada mais do que o amor”...
E outra: “Vamos sambar minha gente, pelo sertão, pelo mar/Queremos ter na
lembrança a dança do carnavá” (segundo ela, a música do carnaval era de
autoria do padrinho Benedito Henrique, na época de sua mocidade, quando faziam
blocos de carnaval para brincar na praia).
O
costão da Enseada, o meu velho e querido amigo Silvério Bastos de Ornelas,
carinhosamente chamado de Sabá, na pesca da garoupa. Dele tenho gratas
recordações. Quando ia pescar, já me chamava, alto e bom som: “Vamos
Zé Calos?” E era assim mesmo, sem a letra erre. Eu não cabia em mim de contente. Pegava minha
varinha mixuruca, com anzol de pegar amborê, e lá ia com o Sabá para a costeira
do lado oeste da Enseada. No costão, a pedra onde ele ficava era a mesma. Só
que não deixava eu ficar rente a ele. Mandava eu ficar em outra pedra afastado
uns vinte metros donde ele estava, “pra mode não intrapalhá, não ispantá as
garopa”. E lá ficava eu pegando meus amborés, às vezes um guaiá,
enquanto o Sabá pegava uma ou duas garoupas. A isca que sobrava (sardinha ou
bonito) ele jogava no mar, e dizia: “Zé Calos, isso é pra ingodá, quando a gente
vortá aqui, despois de amanhã, elas já
vão istá isperando e nóis pega mais umas duas.” E era tão somente o que ele pegava. Era pura sabedoria. Pescava
apenas o suficiente para o nosso sustento (ele sempre me dava postas das
garoupas). Não tinha a ganância de hoje de pegar duas, três, dez, vinte..., na
usura de vender e ganhar com a exploração desenfreada.
Cabe
aqui contar uma passagem que demonstra a sabedoria do Sabá: estava ele a pescar
garoupa, eu, os amborés, quando percebi que sua linha havia enroscado. Ele com
toda a paciência que lhe era peculiar firmou a vara numa reentrância das pedras
do costão, de modo que a linha de pesca ficou retesada. Pegou algumas pedras pequenas
(do tamanho de um punho fechado), pegou no samburá pedaços de linha, e foi
amarrando nas pedras, deixando as pontas soltas; daí passava as pontas da linha
amarrada na pedra ao redor da linha retesada, dava um nó e soltava: a pedra
deslizava pela linha retesada, e “tchimbum”, afundava na água. Ele
pegava a vara, experimentava, dando pequenos puxões; tornava a repetir a
operação. Na terceira pedra, veio uma bela garoupa, de, pelo menos, três
quilos. Fiquei admirado! Pedi pro Sabá me explicar como a linha tinha
desenroscado e ele tinha pegado a garoupa. Me explicou com seu lindo sorriso: a
garoupa quando é fisgada pelo anzol tenta desesperadamente entrar na toca;
quando consegue ela se arrepia toda e as galhas ficam presas na pedra, e a
linha fica enroscada; quando ele fez as pedras deslizarem pela linha
retesada, as mesmas bateram no focinho
da garoupa. Primeira, segunda, na terceira ela já estava incomodada e saiu da
toca. Daí foi só puxar! Ah, Sabá, eu tinha, então meus doze anos...
Da
saudade da Enseada antiga, escrevi este poema (que musiquei à minha moda), em
2.013:
PRAIA DA ENSEADA
Praia da
Enseada, que gosto me dá
Cantar para o
mundo que eu nasci lá,
Filho de Fabiano
e de Pitiá
Cresci embalado
nos braços do mar,
Ouvindo as
cantigas dos sabiás,
Curtindo a
beleza dos caraguatás,
Sentindo o
perfume dos manacás,
Em meio à pureza
dos laranjais,
Infância-caiçara
que não volta mais!
Mudei
da Praia da Enseada em 1.987. Vou lá sempre visitar minhas irmãs Zefa, Conce,
Doca, e rever meus amigos. Gosto de ficar olhando o mar e vejo o garoto feliz,
cabelos desenfreados ao vento, dorso nu, ouvindo o assobio que vem do passado,
e sinto a leve carícia de papai nos meus ombros...
Ubatuba,
08 de janeiro de 2.015.
Em tempo: e que tal decifrar o caiçarês ?
Em tempo: e que tal decifrar o caiçarês ?
1- UMA NIMBUIA NA GAMBÔA FAZENDO BULHA.
2- MININO, QUIDELE O TESTO QUI TAVA DE JÁ HOJE AQUI, JUNTO DA SERENGA?
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