quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

BAÍA DO FLAMENGO


Vista a partir do Saquinho Manso (Arquivo JRS -2014)

Roberto, neto do finado Zé Henrique, que foi um amigão do meu pai, teve um ano intenso, se dedicou às competições de canoas, às observações biológicas e oceanográficas, mas teve tempo de escrever suas reflexões a partir das lembranças do nosso povo e do nosso lugar. O seu presente texto eu escolhi para homenagear a Dona Gertrudes, que completou -oficialmente! - noventa e sete anos. Parabéns a essa caiçara das Toninhas que tanto têm para nos ensinar! Parabéns ao Roberto pelo engajamento nos movimentos! Ah! Achei o sumo da sua esperteza ao deixar de comer carapau preparado pela Mercedes para comer robalo no seu recanto tranquilo. Um abraço.

Dedico aos meus amigos da Baía do Flamengo, aos vivos e aos que já se foram. Essa é para seu pai, Jéssica, e todos os Parús, que me ensinaram nomes e a arte da pescaria. Os Góis que faziam os equipamentos e cuidavam da nossa saúde. Os Henrique dos Santos pela descendência. Os Oliveira pela companhia e aulas. Para meus primos que nunca recusaram uma aventura nos mares, costões e praias da baía. Para os que lutam para conservá-la. Nem que seja na memória.

Parado, 

Perdido entre tantas memórias e pescarias

Encarando Pedras e cruzando morros com lajes

Não se lembra mais.

Onde teria malhado aquela Corvina?
Onde foi que encontrou aquela Guaivira?
O Siri Candeia?
Já chegaram as Tainhas?

Aquela figura pálida compondo a Baia do Flamengo

Pescador-Resistência

Remo e Canoa.

Persistindo feito o dia de amanhã
O trabalho de uma vida inteira.

Ou talvez não.

Talvez esteja cansado

E volte ao primeiro sinal de mudança.

Quem sabe o que se passa na cabeça desse homem enquanto faz a marcação.

Sem ter para onde ir,

Desamparado

O pescador clandestino.

Ele que mede o mundo em braças

As larguras em palmos

Que decifra nos ventos

o tempo.
E encontra resposta na temperatura da chuva
Ou na cor do mar.
A sua canoa do tamanho do mundo inteiro.

E Onde guarda tanto nome? 

De Peixes, pedras, arpoadores

De onde vertem todos os fios d’agua?

De Baías, picos, lajes.
O seu território todo em sons e odores.

Um mundo de vida própria prestes a explodir

Na iminência da próxima maré

Em sua Canoa

Debaixo de seus pés.

E aquele homem parado

De pele curtida pelo sol

Catarata nos olhos

Cruzando morros com lajes
Com outra percepção de tempo
De realidade ampliada

A Tarioba, a Pegoava, a Tatuíra e o Guaruçá

O Santola, o Guaiá, o Pindá, e o Cambiá.

No lagamar da sua vida cabe tanta coisa

Que ele é tudo.

Venta por cima de mim, e cai sobre nós

Em todas as ondas da Baía do Flamengo

Nos Ingás debruçados nos rios
Nas pequenas saíras de corações agitados.
Nos Bananais, jiraus, ranchos,
No azul marinho, banana verde
Limão cravo, coentro bravo
No café quente,
Na minha Mãe misturando farinha no escaldado (como se essa fosse a própria essência da vida),
O Noroeste de sua expiração abafada,
E o trabalho de uma vida inteira.

sábado, 26 de dezembro de 2015

MAIS UMA REFLEXÃO

 
Linda foto do mano Clóvis (Arquivo JRS)




                A minha amiga Maria Cruz me conhece desde pequeno. A casa em que nasci era bem próxima da sua, na Praia do Sapê. É onde ela mora até hoje. O seu texto anterior é um dos mais visitados no blog. Sedento de mais coisa dessa pessoa tão caiçara, reclamei e fui atendido. Um abraço, Maria. Até breve.

Hoje, 25 de dezembro de 2015.
Quantas coisas vemos e ouvimos nestes tempos cabeludos!?  “Não posso comprar presentes pra minha família e nem fazer a ceia,  perdi meu emprego e não há dinheiro para as compras de natal”.
Eu me lembro de minha infância. Nossas famílias não tinham emprego. Vivíamos do que a roça    ou no mar nos possibilitava, ou  da “graça de Deus”, como muitos diziam  e chegamos até aqui. Que diferença de hoje! Sabíamos do dia de Natal porque éramos católicos e era uma data santa.
Não me lembro de ter ganhado presente nesta data. Não havia essa cultura criada pelas TVs.  
Nunca vi árvore de natal na minha casa ou na de meus parentes. Ceia de natal... o que era  isso naquele tempo? Nunca vi.  ( Até hoje é assim na minha casa ,sou antiga demais pra mudar e não vejo por quê mudar) .  Havia uma nuvem de beleza a cobrir esse dia.  Rezava-se na nossa capelinha, comíamos nossa comidinha de sempre e havia amor no ar, nas casas.  O canto noite feliz, que até hoje me emociona,  lembra minha infância.
O que é natal hoje? Papai Noel,  passeios,  celulares  dos caros,  barato não vale,  joias, roupas , etc.  Jesus um dia escorraçou os vendilhões do templo.
O Natal está dentro de nós, não no exterior, todos os dias, e não no que damos ou ganhamos, onde só fica o objeto e se volatiza pouco  depois  aquele “parecer” de  espírito natalino.
Muitas vezes, somente a troca de presentes, o carinho, o amor e  paz  do Cristo nascido, nada.  É que falamos e não vivemos . Afoga-se o natal  em bebidas e comidas. “Feliz natal”, como um jargão, já meio grogue , empunhando um copo .
Precisamos tanto dos ensinamentos de Jesus. O distanciamento do singelo e do santo é tão grande na vida de hoje!
Recolho-me  á minha pequenez e vejo aquela  paz ainda ,  talvez com  outros valores  para muitos , mas pra mim com um significado diário, que presente nenhum paga.

Fujo dos cumprimentos efusivos. As pessoas me olham diferente  porque sou assim, entretanto,  vejo a beleza da vida, que  cabe em  todos,  e me emociono todos os dias.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

FOI-SE O CHICO DO BALAIO

         
Balaio do Chico (Arquivo JRS)
  O amigo Nenê Velloso, depois de ler o causo do graveto do  Mané Bento, escreveu:

"CRUZETA PARA PESCAR  PANAGUAIÚ, essa foi no fundo da minha alma, não podia imaginar que alguém lembrasse disso. Na hora  o filme passou na minha cabeça, eu pescando panaguaiú com a cruzeta de lasca de bambu, e para ficar mais bonita eu fazia da ponta da flecha de Ubá, linha de tucum e anzol unha de gato". 

          Assim, o meu objetivo no blog vai sendo alcançado: ser um espaço de partilhar nossa cultura caiçara, de fazer com que mais pessoas aprendam as características do nosso lugar. Continuo convidando outras pessoas a darem suas contribuições, deixando suas marcas e suas experiências. É muito bom isso tudo!

         Para acolher a Novidade do Natal, eis mais um causo do saudoso Mané Bento, esse meu parente que há décadas nos deixou, morava sozinho no jundu da Praia da Fortaleza. Vivia na paz, embalado pelo barulho do mar. De vez em quando eu aproveitava para lhe dar mais atenção, para escutar suas histórias. Esta eu escutei logo após um período de internação dele na Santa Casa, por motivo de "doenças nos peitos". Quero dizer, para começo de conversa, que o Mané Bento era muito desconfiado. Isso ajuda a entender o ocorrido. Fala, "Mané Aguado"!

"Você sabe, Zezinho, que neste mundo tem gente pra tudo: uns são bons, outros são ruins. Antigamente, quem podia, contratava até alguém para provar a comida antes comer. Era medo de ser envenenado. Dessa vez, onde fiquei internado, vivi coisa parecida. Primeiro me deixaram alguns dias só em observação, com doutor e enfermeiras escutando o meu velho coração, medindo a pressão e dando uma comida muito rala, sem gosto nenhum. Eu estava num quarto com mais uma pessoa doente, quase nas mesmas condições minhas. Era Chico Freitas, da Picinguaba. O meu medo maior é que me dessem um remédio que não eram remédio. Afinal, eu já escutei histórias de gente que partiu desta vida depois de lhe ministrarem ‘um remédio’. Também tenho muito medo de remédio que não seja do nosso chazinho de mato de cada dia. Mas aconteceu: numa noite, logo depois do serão, me apareceram com dois comprimidos. 'É para aliviar a dor, seo Maneco'. Na hora eu pensei: 'Sei. Eu sou bobo de cair nessa?!?'. Só pedi que deixasse ali, junto com a água. 'Já vou tomar assim que enxaguar a boca para dormir'. E a enfermeira acreditou que eu faria isso. Mas sabe que eu fiz? Eu peguei os comprimidos  e dei, junto com água, ao paciente que estava na outra cama, dizendo: 'toma tudo que é para sarar logo e voltar amanhã mesmo para casa'. Ele tomou tudo. Até pediu mais um gorpe de água. E fomos dormir. No dia seguinte, ainda de madrugada, tava aquele rebuliço. O Chico tinha morrido. Na hora agradeci a Deus. Ele me salvou, me iluminando para que não tomasse daquele remédio. Senti pela morte do amigo que dizia viver da pesca e da roça, fazendo de vez em quando alguns balaios e tipitis. E o momento era próprio só para uma coisa: uma bronca por tentarem me fazer de bobo: 'Ainda bem que eu não tomei dessa porcaria que vocês me receitaram. Viu só! Dei pro Chico e ele morreu. Era pra mim esse 'remédio'. Era para me matar, né?".








terça-feira, 22 de dezembro de 2015

BOAS FESTAS!

Festa do Escrafunchando no lagamá. (Arquivo JRS)

       Mamãe e papai nasceram pobres e morreram pobres neste território caiçara de Ubatuba. Ela, bem simples,  cultivou o que foi possível em nossas condutas a partir das palavras e dos atos. “Como gostava de falar, de repetir coisas a nossa mãe! Ela foi o “nosso esteio principal, a força do nosso lar”. Ninguém nunca duvidou disso.

          Numa ocasião, estando trabalhando como faxineira na “Escola Anchieta”, em época assim de final de ano, apareceu o sentimento de confraternização. Logo organizaram tudo; ali mesmo no pátio seria o almoço. Parecia que todos estavam muito bem, se esforçando nos sorrisos largos para qualquer um. Ela, no dia escolhido, desde cedo com outras duas colegas, preparavam o local. Duas mesas, a pedido de quem mandava mais, foram montadas: uma se destacava “desde a toalha escolhida até os pratos chiques”. Segundo  Dona Laurentina, “os funcionários do pesado deveriam ficar na mesa mais pobre de tudo”. Por volta das 12 horas todos estavam a postos para avançar com gulodice, como se não tivessem outras oportunidades diante de tais iguarias. Naquele momento, de acordo com a Odete, uma das colegas da mamãe, “a Dona 'Laura' procurou a chefe e disse que confraternização que começava com duas mesas separadas sob um mesmo teto não era confraternização. E foi embora com a desculpa que deixara um tanque cheio de roupa para lavar”.

       Assim, para que nossas confraternizações sejam autênticas confraternizações, desejo a todos,  que tenham uma grande dose de humanidade, de sentido de justiça e de verdade. Que o nosso amor pelo conhecimento e pela humanidade seja transformado em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo para mobilizar mais gente em busca de uma sociedade melhor.

Feliz Natal!

Feliz 2016 para todos!

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

VAI SE FIANDO!

Causos no sarau (Arquivo Ane Casalderrey)

Nossos reis estão chegando (Arquivo Ane Casalderrey)

                    Agradeço muito pelas imagens da amiga Ane. Também só tenho a agradecer pela confraternização por ocasião do lançamento do Escrafunchando o lagamá. Festa é com você mesmo, né Júlio ?!? Foi ótimo rever tanta gente boa, especialmente o mano Jairo que veio diretamente de Areias para o evento.

                Se fiar, no dizer dos antigos caiçaras, era confiar. Desta raiz vem, por exemplo, fiado. Vender fiado é entregar uma mercadoria na confiança de receber depois, se fiar que não vai perder de lucrar.
                A confiança no outro, em outros tempos, dispensava até mesmo a necessidade de documento escrito. “O que valia naquele tempo era o fio do bigode, ou seja, a palavra dada”, assim nos ensinava o papai desde criança. Se fiar em alguém é depositar a total confiança. Isto acontecia em toda e qualquer ocasião (na construção de uma casa, no preparo de um roçado, na retirada de uma canoa etc.). Neste momento, tenho na lembrança os homens das praias da Fortaleza e do Sapê, os meus parentes que tinham, a cada semana, uma pescaria comunitária. Sabe por que dava certo esse ritual caiçara a cada semana? Porque o mestre da rede se fiava nos camaradas, não duvidava que, ao tocar o buzo, na madrugada, logo acorriam aqueles que compartilhariam as etapas da pescaria e dos quinhões no final da tarefa.
                A confiança tem forte componente religioso. Prova disso é a recorrência ao “tenho fé em Deus”, “com Deus hei de vencer”, “confio muito na minha Mãe do céu” etc. Só que as regras têm exceções, nem sempre é recomendável confiar totalmente. “É preciso confiar desconfiando”, dizia o saudoso Tio Chico Félix de vez em quando. Na verdade, era a fala dele para a gente se precaver em determinadas situações, com determinadas pessoas. A literatura bíblica até tem uma frase lapidar: “Sede manso como a pomba, mas astuto como a serpente”. No entanto, se multiplicam outras frases comuns na religiosidade popular: “Ai, minha Nossa Senhora”, “Acuda, minha Virgem Maria”. E por aí vai.
                Numa ocasião, no mês de outubro do ano de 1963, pescando sororoca no correr da linha do Mar Virado, ao ver o tempo virando para uma tormenta que prometia fazer muito estrago, Tio Chico enquanto levantava a poita, escutou de várias canoas vizinhas o apelo-confiança: “Valei-nos, Virgem Maria”. O imediato comentário dele entrou para o nosso código caiçara: “Se fia na Virgem e não corre não pra ver!”.  E saiu remando com toda a força que tinha, buscando abrigo e se salvando no Saco do Cedro, onde morava o Tio Lindo. O resultado daquela ocasião, conforme já sabemos, foi uma triste tragédia, sobretudo aos pescadores mortos da Praia Grande do Bonete.
                Hoje, em muitas ocasiões, a gente repete:

                - Se fia na Virgem e não corre não pra ver!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

RIMAS E RUMOS

Flor do quintal (Arquivo JRS)

                O saudoso Gusto, natural da Praia da Santa Rita, nos marcou bastante no tempo da infância porque sempre tinha um simples comentário ao ver as nossas reinações. “Não deixem essa garuzada na lata por muito tempo senão eles morrem por falta de ar”; “Vocês precisavam mesmo tirar os umbigos dos cachos para fazer barquinhos?”; “Peguem essas mandiocas, toda essa miuçalha, que vou mostrar a vocês como se faz vaquinhas”.  Algumas vezes ele, com um cigarro na boca, apenas olhava o que fazíamos, como se admirasse as nossas brincadeiras, as nossas “artes”.
                A saudosa Dona Antônia, natural de Minas Gerais, já era a sua companheira quando eu conheci o Gusto.  Ela também era muito compreensiva com aquela criançada que se tecia pela vizinhança. Só esbravejava quando alguém ficava assobiando para eles em sinal de provocação. Xingava mesmo!

                Os mais velhos do lugar diziam que a primeira esposa do nosso personagem era muito especial. O nome dela: Maria Paula. Contavam que, após o casamento, depois de alguns meses, se dizendo estar grávida, foram a uma função (baile) na casa da Maria Sodré, na Enseada. Ao passar na barra (rio), ela estacou, parou de repente. Então o Gusto, que estava conforme o costume caiçara andando na frente, chamou: “Venha logo, mulher. O xiba já começou. E quem não dança o xiba, também não dança a miuçalha. E por que você tá aí parada no meio da barra?”. É aqui que entra a famosa fala dela: “Eu escutei um tchibum na água. Acredito que foi a minha criança que caiu. O dó!”. Pode isso? De acordo com as conversas dos mais antigos, o Gusto logo enviuvou em decorrência dessa gravidez complicada da dona Maria Paula.

                Do Gusto também é a nossa conhecida “rima”:

                A lua nasceu  bonita

               E redonda igual um tamanco;

                Olhei pra cama

                A Maria Paula tava com a perna pra fora.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

GRAVETO

Luiz Januário - Alto do Simão (Arquivo JRS)

            Graveto, como todos sabem, é um pequeno pedaço de pau ou uma lasca de madeira. Geralmente tem muitas serventias: cutucar casa de marimbondo, fazer cruzeta para pescar panaguaiú, coçar costas, começar fogo, calçar um objeto maior (um móvel, por exemplo), raspar sujeira do chão etc. No linguajar caiçara, por se trocar o v pelo b, a pronúncia saía grabeto, assim como vassoura era chamada de bassora.

            Numa ocasião, estando adoentado, o meu parente Mané Bento, o “Mané Aguado”, ficou internado alguns dias na Santa Casa. Nem sei que doença era, mas...se tratando do Mané Bento, podia se esperar de tudo. Era intiqueiro, puxava ponto (encrencava) com tudo e com todos. Coitadas das enfermeiras naqueles dias em que ele esteve internado!

            Naquele tempo, na década de 1960, nas praias e nos sertões não era costume ter banheiro nas casas. Geralmente uma enxada ficava encostada numa parede de trás das casas para, após “usar o mato”, cavar uma cova rasa e enterrar o resultado do esforço fisiológico, evitando o risco de alguém pisar ou de animais domésticos comerem daquilo. Na casa do Mané Bento, os seus hábitos higiênicos não eram diferentes. A verdade é que nessas condições os vermes dominavam a população caiçara.  A situação era tão crítica que o Nenê Velloso escreveu a respeito disso:Os quatro agentes da saúde responsáveis pela vermifugação da população eram os ubatubanos: Trajano Bueno Velloso, João Bordini do Amaral, João Serpa Filho (Fifo) e João Teixeira Filho (Joanito), que hoje eu os chamo de “Anjos da Saúde”. Eram chefiados pelo médico Dr. Antônio Abdalla, mas como a epidemia se alastrava rapidamente, o médico chefe, diante da gravidade, enviou Seu Trajano e Joanito, para colherem amostras de fezes, primeiro no subdistrito de Picinguaba. Só depois de contornada a situação lá, se estenderiam aos demais bairros e no Centro”.

            Numa bela manhã, na primeira ronda das enfermeiras, elas sentiram um cheiro forte vindo do banheiro próximo do leito onde estava o Mané Bento. Nem queriam acreditar no que viram: a parede caiada estava cheio de marcas de dedos amarronzadas. Era evidente a porcaria que o homem tinha feito. Tinha se limpado com aquele recurso. Cruz-credo! Imediatamente elas partiram para a bronca. Afinal, não passava um dia sem que não fosse preciso dar um corretivo no enfermo. Sabe qual foi a desculpa dele? “O que eu podia fazer? Vocês não deixaram grabeto!”

terça-feira, 24 de novembro de 2015

UM POUCO DE HISTÓRIA RECENTE

Os professores e os pescadores do Saco do Sombrio (Arquivo JRS)

No blog do amigo Peter (canoadepau.blogspot.com), encontrei o presente texto que demonstra o quanto é importante o exercício acadêmico em parceria com as comunidades tradicionais. É muito salutar essa interdependência! Grato, amigo. 



"Desde 1989, a equipe do Nupaub (Núcleo de Apoio à pesquisa de populações humanas e áreas úmidas) da Universidade de São Paulo esteve envolvida em pesquisas sobre a situação das comunidades tradicionais, moradoras das unidades de conservação de proteção integral. Algumas comunidades, como as caiçaras do litoral Sudeste brasileiro, estavam ( e ainda estão) sofrendo o impacto da criação dessas áreas protegidas sobre seu modo de vida. Naquele momento, a única categoria que possibilitava a permanência dessas comunidades e o respeito ao seu modo de vida tradicional era a Reserva Extrativista conseguida com a luta dos seringueiros da Amazônia. Nesse sentido, o Nupaub iniciou o contato em 1992, com a comunidade do Mandira, no município de Cananeia-litoral de São Paulo para encontrar caminhos para a melhoria de seu modo de vida, mantendo os recursos naturais de que dependiam para sua sobrevivência, em particular da extração da ostra de mangue e do pescado. Durante dois anos essa equipe trabalhou sobretudo no apoio à organização da comunidade, resultando na constituição de uma associação dos moradores e na ideia da proposta de uma reserva extrativista.Os estudos e apoio técnico-financeiro necessários ao estabelecimento dessa reserva foram realizados pela equipe do Nupaub para a implantação de estruturas de manejo onde as ostras não eram retiradas do mangue, com o corte de raízes mas transplantadas, ainda pequenas para as novas estruturas colocadas no meio do estuário. A solicitação da Reserva foi feita ao CNPT, ( Conselho Nacional de Populações Tradicionais,) do Ibama, em 1994-1995" (DIEGUES, 2015).
LEIA AQUI O ARTIGO COMPLETO DO PROF. DIEGUES

Chico Mandira e seu sobrinho Adriano. Foto: Joey L. - Lavazza Calendar 2016 - From father to son,
ASSISTA AQUI no Youtube.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

RESISTÊNCIA EM NOSSO CHÃO

"Lá descansa o Mar Virado"  (Arquivo JRS)
          O Alcides Inocêncio, o “Arcide Bambá”, descendente de negros da Ilha do Mar Virado, terminou seus dias na Praia do Perequê-mirim, em Ubatuba. Em qualquer momento que a gente se encontrava ele cumprimentava: “Olá, primo! Tudo bem?”. Os laços vinham de longe, da Tia Gaidinha, a segunda esposa do Nhonhô Armiro.

        
        Sempre nos demos muito bem. O “Bambá” adorava contar histórias da ilha onde nasceu, das prosas e dos causos escutados nas rodas de conversas, sobretudo a respeito dos ancestrais negros. Foi dele que, pela primeira vez, ouvi a referência ao “cucochila fuá” (será que não era fué? nem sei se é assim que se escreve), um recurso para avisar que alguém tinha morrido no porão do navio tumbeiro, na travessia da África para o Brasil. “E era muito recorrente isso!”.

                - Mas que palavra é essa? Quem lhe ensinou? O que quer dizer?

                - Era dizer da mamãe e de mais gente que era a nossa parentalha. Diziam que era palavra da língua da terra deles, de Angola, na África. Pelo que contavam, o porão do navio ficava entulhado de gente que era trazida para ser escravo nas fazendas dos portugueses. Era muito sofrimento!  Só poucas horas por dia a claridade entrava naquele lugar. E sempre morria alguém naquele amontoado de coitados. E o que faziam então? Começavam a cabecear na madeira da embarcação, no calado. Ouvindo o barulho, sentindo a trepidação, os vigias abriam o alçapão, retiravam o defunto, entregando-o às águas do mar, onde “Calunga” era quem dominava. O rumor causado pelas cabeçadas, a manifestação, era “cucochila fuá”. Mamãe, de vez em quando, quando tinha a impressão de alguma coisa batendo perto de casa ou mesmo na parede, exclamava: “É cucochila fuá! É morte chegando! Todos nós vamos passar por ela!”.

                Nesta ocasião, celebrando o tema da Consciência Negra, vamos refletir, dar muitos passos para refazer nossos conceitos e rever nossas ações para um mundo mais justo e fraterno. No dia 20 de novembro de 1694, quando Zumbi foi morto, algo ficou e se tornou motivação para que os negros lutassem por inclusão social. Nas raízes modificadas, misturadas e recriadas está a matriz do samba, da capoeira, da cocada, do vatapá, do candomblé, do samba de roda e de tantas outras maravilhas que compõem o Brasil, que se compõem nos brasileiros.


Aos descendentes do Alcides, do Eugênio e de tantos outros caiçaras que se originaram no Mar Virado só desejo que sintam muito orgulho das barreiras que venceram desde que deixaram a Mãe África. A consciência caiçara deve muito aos sobreviventes da Rota dos Orixás.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

PROTAGONISMO JUVENIL (?)

Carcará na praia (Arquivo JRS)
                     A juventude que se edifica no espaço caiçara pode e deve rever conceitos que impedem novas e libertadoras atitudes. Foi-se o tempo em que, devido ao isolamento geográfico, o nosso viver era mais simples e sem afetação dos grandes temas da humanidade. O sentido da vida tem que ultrapassar as mensagens muitas vezes imbecis e alienantes veiculadas nos minúsculos aparelhos eletrônicos, nas redes sociais etc. O desafio é alcançar uma totalidade reflexiva . A frase cristã de "quem é fiel no pouco é fiel no muito" pode ser ilustrativa na vontade de rever todos os aspectos da vida em sociedade (política, ambiental, comportamental etc.) a partir das mínimas ações. 
               
       Um dos meus professores,  na minha relativa distante adolescência, era um grande idealista, um motivador dos nossos sonhos, tal como a maioria dos mestres que tanto estimo. Para entender o que vem a seguir, é preciso contextualizar aquele momento histórico: vivíamos sob o governo do general  Médici, começando a década de 1970, em que era exercido um grande controle das liberdades, com censuras e punições horrendas a qualquer iniciativa considerada subversiva do ponto de vista moral e político.
                Voltando ao professor em questão, percebendo que éramos resultado de uma sociedade simples, comandada pela religiosidade católica que ainda nem tinha assimilado o básico das revisões doutrinárias do Concílio Vaticano II, ele desenvolvia estratégias interessantes, com métodos exigentes de dedicação e estudos. Numa ocasião, ao abordar a sexualidade humana, ele advertiu: “O momento político que vivemos no Brasil é tenso; talvez eu até perca o meu cargo como professor de vocês, mas eu acredito que é mais correto vocês aprenderem comigo, a partir  das pesquisas sérias e atualizadas, do que serem instruídos pelo ‘açougueiro da esquina’, de forma equivocada e até mesmo com segundas intenções”. E assim eu e a minha turma aprendemos sobre o próprio corpo, as questões higiênicas, os temas polêmicos da discriminação étnica, homossexualismo, machismo etc. Sem dúvida, esse mestre foi alguém que lançou outras luzes na nossa vivência. Atualmente, relembrando ou reencontrando colegas daquela turma, sinto o quanto fez diferença ter um professor que ousou mais do que os outros.
                O que estou pretendendo com esta introdução? É simples: a família deve ser a porta de entrada do processo educativo das pessoas, mas a escola, no seu papel formativo, não pode se omitir de fornecer mais elementos para a constituição da cidadania plena. Assim, preconceito étnico, diversidade cultural, meio ambiente, violência contra homossexuais, desigualdades sociais e outros temas são, sim, pertinentes e urgentes. Caso contrário, prevalecerá as mentalidades tacanhas de fanáticos (políticos, religiosos etc.), de uma gama de gente ingênua ou mal intencionada, desejando se aproveitar , impor ideologias escravizadoras. A História, através de personagens singulares, nos ensina a partir de outros pontos de referência, fermenta novas atitudes. O Velho Sócrates, por exemplo, foi acusado de “corromper a juventude” por  trazer reflexões até então descabidas na sociedade ateniense do século V a.C.
               Enfim, como é triste se deparar com jovens que abraçaram ideais preconceituosos, muitas vezes advindos do berço, da educação familiar! São caminhos fechados para a possibilidade de uma vivência de alteridade, de saber que eu existo a partir do outro, de que é extremamente necessário um olhar diferenciado na compreensão do mundo e das contribuições do outro, do diferente. Preconceitos em outros tempos  promoveram caça às bruxas, escravidão, violência doméstica, atos terroristas etc. E ainda hoje é assim!

                Escrevi isto porque acabei de ouvir a seguinte frase na retórica de um jovem estudante do Ensino Médio: “Filho meu que der mostras de ser bicha vai apanhar na cara até virar homem”. É...passa ano... vem ano...  "todas as novidades são suspeitas e é melhor conservar as velharias”.  Juventude com concepções assim vai protagonizar o quê? 

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

AINDA HÁ TEMPO!

Tio Dico "consertando" peixe no rio Puruba (Arquivo JRS)
Mussum (Carlos Prudente - Imagem disponível na internet)
Oikos...casa...lar: a quem interessa a ecologia?

            Este planeta é a nossa casa! Esse território com suas características inigualáveis proporcionou o surgimento da cultura caiçara. Ou seja, toda essa soma de artes, de linguagem, de técnicas, de relacionamentos, de conhecimentos e de contribuições à humanidade derivam da relação dos homens com a natureza. Quer tecer um balaio de timbopeva ou de taquara? Vai no mato que tem! Quer comer um jundiá ou um camarão do rio? Vai lá e traz!  Precisa cortar pau de mangue e de barro para poder fazer um pau a pique? É só pegar! Quer saborear pregoava, preguai ou sapinhauá? É só esperar o tempo certo! Ah...era assim! Agora, os espaços foram cobiçados pela especulação imobiliária, os moradores e turistas acham normal poluir os rios e mar etc. Eu sou do tempo em que os rios eram a nossa serventia para muitas coisas. Neles encontrávamos mariscos, lambaris, cágados, lagostas, mussuns, jundiás, mandis etc. Qual cultura vai se estabelecer numa casa detonada? Na verdade, qual cultura não sabe que rio é vida? Ainda há tempo de recuperar muita coisa! O mesmo não posso dizer das espécies que já se foram.
                
         Tenho circulado regularmente pela rodovia entre Caraguá e Ubatuba. Fazendo observações de ataques gritantes à natureza, fico imaginando o que não é perceptível. Trata-se de falta de educação, de desrespeito a um espaço natural que se constituiu em milhões de anos, de crueldade com os outros seres vivos e com os próprios humanos que continuam nascendo. Falo da poluição de nossos córregos e valas, dos pequenos e grandes rios. É notório o tipo de “tratamento” oficial que recebe o esgoto despejado no rio Acaraú. O cheiro e a cor confirmam tal procedimento! Outro ponto cruel é a barra da Praia Dura: tem esgoto in natura saindo por ali. De onde estão vindo as contribuições? Deseja ir sentir o fedor? No entanto, o rio e a praia sempre estão lotados de gente de toda idade. Muitos pescam, caçam siris e se deliciam no espaço que é muito bonito. Depois, na mesma rodovia, passando no canto da Mococa/Cocanha, em outra estação de tratamento de esgoto, novamente o cheiro de algo que é despejado em grande volume no mangue-rio e que vai desaguar nas águas límpidas, defronte ao ilhote onde os mexilhões são cultivados por bravos trabalhadores do mar. Que roteiro turístico exótico!
                Em seu livro Capitão mouro, Georges Bourdoukan, se referindo ao mal-de-bicho, numa cidade importante do litoral nordestino, o personagem constata onde está a origem deste mal. Assim escreve:
                - Fique calmo. O pouco que sei é mais do que eles sabem. Aliás, não é preciso muito para descobrir a razão do mal. Viu como as ruas estão sujas de fezes? Vou recomendar higiene, mais nada. Acredite, a falta de higiene é a principal causadora de doenças.
                Por pouca não foram atingidos por fezes pastosas atiradas de uma janela.
                - Ainda bem que vou embora desta terra – falou o governador.
                - Quando o senhor parte? – perguntou Bem Suleiman.
                - Dentro de quinze dias volto a Portugal. Espero que o meu sucessor tenha mais sorte. Eu só encontrei problemas.
                Saifudin jamais vira tanta sujeira em tão pouco espaço. Era quase impossível andar pelas ruas daquela cidade sem correr o risco de pisar nos dejetos. Fezes humanas e de animais tomavam conta de todo espaço vazio. Era prática comum fazer as necessidades ao redor das casas, atrás dos muros ou sob árvores. As casas não possuíam latrinas. Banheiros, então, nem pensar, já que o banho era raríssimo, mesmo na Europa.
                Quando isso? No século XVII!

               

                

domingo, 8 de novembro de 2015

TEMPO DE FUNÇÃO

Mestre Zé Pereira (Arquivo JRS)

              “Ai meu São Gonçalinho
                Ele é tão bonitinho
                Ele dorme na cama
                Ele bebe seu vinho
        Ai meu santo São Gonçalo
        Ai meu Santo São Gonçalo”.

Pensando neste verso, parte de uma música que gravei com o saudoso Aristeu, na Praia da Ponta Aguda, em meados de 1980, me coloquei no espírito do 1º Encontro de Fandango Caiçara, ocorrido dias atrás, em Ubatuba. Em especial presto homenagem à Mercedes e sua equipe que se esmeraram no preparo do peixe com banana verde. Bons tempos na comunidade do Itaguá, né Mercedes? Né, Élvio?
Comecei o dia ainda pesaroso com a notícia dada pelo Nísio, um caiçara dançador de Congada, natural do Sertão do Puruba: “O Pedro Brandão morreu, Zé”.
 Foi um golpe perder mais um cantador de Ubatuba. O Aristeu da Ponta Aguda me garantiu que a música e a dança de São Gonçalo aprendida por ele na década de 1950, foi ensinada pelo Pedro Brandão: “Ele, a cada ano corria a Folia por todas as praias e sertões. E nós aprendemos com ele tudo isso que nós continuamos até hoje. De acordo com o Pedro Brandão, São Gonçalo é protetor dos violeiros e santo da fertilidade, protetor das prenhas". Depois da parte votiva, das cantorias sagradas, vinha a parte profana. Era a função, parte sagrada (que não podia faltar) da religiosidade dos caiçaras, onde os dançarinos suavam em ciranda, cana-verde, xiba, tontinha etc. até o sol despontar no horizonte do mar. Naquele tempo, onde somente os Caminhos de Servidão sustinham nossas passadas, andar por todos os lugares não era fácil! O Pedro morava no Sertão do Puruba; o Aristeu na Ponta Aguda. Ou seja, quase setenta quilômetros separam os dois bairros.
Outra notícia que me surpreendeu foi a da morte do querido professor Hércules Cembranelli. Com este mestre eu aprendi a gostar ainda mais de estudar História. Assim a morte vai levando as nossas bibliotecas humanas que dependem de nossas memórias para se tornarem imortais.
Espero que esse encontro, que teve representantes da Cananéia até Paraty, se torne o marco de reorganização da cultura caiçara. Assim, transcrevo a letra cantada por Pedro Brandão. Está no CD Canto Caiçara, de 1999:

“Este Bendito louvado
Foi feito com fundamento
Recordai as minhas culpas
Suspendei meu pensamento”.



E perguntei ao Nísio: “Em que idade tava o Pedro?”. “No documento ele tinha 93 anos. Mas ele era do mato, né Zé. Gente assim tem muito mais daquilo que tá no papel!”.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

NÃO É DE HOJE

Olha a turma da boa prosa! (Arquivo JRS)

                Via de regra, cada geração vai encontrando a seu tempo, novos desafios ou atualizações de alguns que nunca desapareceram. São “situações novas”, trazidas à história por intermédios de empreendimentos, de estrangeiros, de avanços tecnológicos ou por pessoas com outras visões de mundo, ávidos por lucros fáceis, buscando uma vida boa etc.
                Conforme eu já escrevi, no século XX, logo no começo, os jovens caiçaras de Ubatuba migravam para outros lugares atrás de emprego, de dinheiro. A Baixada Santista era o lugar preferido onde, nos bananais e nas docas era possível arranjar uma classificação. Era penoso esse deslocamento. O padre João (Johannes Beil), pároco em Ubatuba naquele tempo, teve ao menos duas iniciativas importantes na região: a primeira foi a fábrica de beneficiamento da caxeta tão abundante nas áreas de brejos, nas gamboas. A segunda, na praia dos Barreiros, na Ilhabela, ele criou uma escola de pesca, onde adolescentes e jovens caiçaras tinham aulas no ofício em que nasceram e foram criados. Eu mesmo tive quatro tios que passaram pela Escola de Pesca dos Barreiros. Na semana passada, juntamente com o meu filho Estevan, ouvimos o que o Tio Aristides tinha a nos contar nesse assunto.

                “Eu estava por volta dos 18 anos quando fui para a escola dos Barreiros, criada pelo padre João. O Nié Carlota, o Tonico e mais alguns foram na mesma época, por volta de 1958. Éramos, ao todo, cinquenta alunos por turma.
                A rotina da escola era rezar, tomar café, fazer exercícios de educação física, estudar e trabalhar. Estávamos divididos em duas turmas que se revezavam: uma estudava no primeiro período enquanto a outra trabalhava na roça ou na pesca, produzindo o sustento da escola. Depois do almoço, aquela turma do trabalho se empenhava nos estudos enquanto quem já tinha estudado na parte da manhã, agora se dedicava ao trabalho. Eu fiquei lá pouco tempo porque era praticamente a mesma coisa que a gente já estava acostumado a fazer. Achei que era mais útil eu voltar e ajudar o meu pai e meus irmãos em casa”.

                Então, nesse momento, dentro do assunto de pesca, o tio nos mostrou o seu diploma, conseguido na Escola de Pesca de Santos. No início da década de 1960, ele se dedicou com muito afinco em conseguir outras condições na carreira de pescador.


                “Eu e o Tobias do Tio Ezídio estivemos na mesma escola. Após a formatura, fomos admitidos na mesma companhia. Era uma empresa japonesa – a TAYO. Só no nosso litoral ela operava com sete barcos, sendo quatro na pesca de parelha e três no espinhel. O Tobias logo estava embarcado numa baleeira, pescando na região de Cabo Frio, no Rio de Janeiro. O meu barco era o Tokayo XV, cuja tripulação era composta de oito japoneses e oito brasileiros. A exigência da capitania era, sendo o capitão japonês, o imediato teria de ser brasileiro. Era embarcação para pescar cinco toneladas por dia.
                A gente pescava fora, bem longe da costa. A viagem durava cinco dias e cinco noites na direção do sol. Outros barcos da companhia que me lembro bem: Azuma Maru, Akashi Maru, Akashi XXXII e Akashi XXXIII. Eu fui demitido porque comecei ver coisa errada, não me conformava com aquilo e denunciei. Era o seguinte: os atobás pousavam no convés para comer aquela miuçalha descartada, os japoneses, munidos de cacetes ou dando chutes, matavam os pássaros. Quem conhece os atobás, sabe que eles não descolam imediatamente, precisam cair para sair batendo as longas asas. Eram presas fáceis, né? Outra denúncia contra essa empresa era a matança de filhotes de baleias, fora do tamanho permitido naquela época. Os bichos, coitados, ficavam boiando pelo mar.
                A TAYO também fazia contrabando, em viagens que duravam até dois meses até a divisa com a Argentina, com ordem para não chegar em nenhum porto, enfrentado toda e qualquer tempestade em alto mar. Lá no extremo sul, os barcos encontravam com embarcações que vinham do Japão com relógios, botas, pulseiras, anéis etc. Quem se preocupava em fiscalizar um barco pesqueiro? Muitas vezes os objetos de mais valor vinham enfiados dentro das barrigas dos peixes grandes, congelados em câmara fria. Isso era o ano de 1962. Então, não é de hoje que a gente tem de refletir sobre o que fazer diante das coisas erradas que nos rodeiam, não é mesmo?”.