Astrogilda e Silvário: dois exemplos para nós caiçaras (Arquivo Toninho) |
MEMÓRIA DE
LUTA
Começava o
século XXI quando, no ginásio esportivo de Ubatuba (Tubão), por iniciativa de
alguns caiçaras, nos reunimos com diversas autoridades para discutir a questão
das terras em Ubatuba, sobretudo dos remanescentes da Fazenda Caçandoca e do
Camburi. Disso resultou no valioso material ajuntado no título: Quilombo – a
vez e a hora dos sobreviventes. Dentre as diversas falas (Genésio,
Vitória...), escolhi partilhar o breve relato da Tia Astrogilda, natural da
Praia do Pulso, casada com Silvário, da Caçandoca.
Hoje, já se passando dois anos do seu
falecimento, ouço notícias desencontradas das pessoas que convivem no espaço
que tanto lhe custou. Quem, das pessoas beneficiadas por essa lutadora, sabe do
quanto essa mulher simples, sempre presente em nossas reuniões, foi uma força
inestimável? Não será uma empreitada valiosa ter um memorial caiçara assim?
A fala da Tia Astrogilda é apenas uma
das muitas que podem atestar o quanto sofreram os caiçaras com a chegada dos
especuladores de terra para fins imobiliários em Ubatuba. Foram muitas as
famílias expulsas da Caçandoca!
“Quando nós saímos enxotados de lá,
ninguém levou nenhum tostão, nem para comprar um pão para comer na viagem. Eu
estava grávida de uma filha. Era o nono mês. Saímos e fomos morar na Enseada,
na casa que o Dorico cedeu para nós; lá nós passamos os nossos pedacinhos.
Passei fome, passei sede, passei tudo
o quanto não prestava, não tinha nada, não tinha roça. Nós largamos para trás
muita roça, muita mandioca que ficou lá jogada e o pessoal do Gabriel
aproveitou um pouquinho e fez farinha para a gente comer e vender uns
quilinhos. Sei o que sofri; como diz a história: comi o pão que o diabo
amassou. Mas, com a graça de Deus estou aqui com 81 anos de vida, com sessenta
anos de casamento com o Silvário, firme com os oito filhos que saíram da
Caçandoca todos pequeninos, feito uma escadinha, agora estão todos criados,
todos casados. Só que não moram aqui comigo e com o Silvário; moram fora porque
ninguém pode ficar naquelas condições. Foram saindo para arrumar emprego e por
lá ficaram, casaram e estão vivendo por lá [na Baixada Santista].
Nós vivemos aqui na estrada de
Taubaté, no Morro das Moças, compramos um pedacinho de lama, aterramos e com
esforço fizemos um barraco; e estamos vivendo lá até hoje.
Da Caçandoca, não tenho muito que
falar porque me sinto mal”.
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