Até a década de 1970, no universo caiçara vivendo somente de subsistência, outra forma de ganhar dinheiro, depois da lida no bananal, é a produção de farinha da mandioca. Também é trabalhoso, mas todos fazem. Quem não tem “viamento” próprio, faz “de às meias”, ou seja, dá uma parte da produção como pagamento pelo uso da “casa de farinha”.
A cultura da mandioca requer mais cuidados; ainda tem a praga da saúva, que é impossível de se acabar. Só que a mandioca não é planta exigente; se dá bem em qualquer lugar e dá bastante. Geralmente ela é plantada no meio do inverno; a área plantada precisa ser carpida regularmente, e, após um ano, a rama sofre um corte quase rente ao chão. Assim ela engrossa, ganha mais massa. Após um ano e meio ela está sendo arrancada para a farinhada. Se passar muito tempo ela se torna fiapenta, “cheia de pau”.
A farinhada é mensal, quinzenal ou até mesmo semanal dependendo da necessidade e da pressa que o plantio exige. Também varia conforme a época. Exemplo: no tempo da tainha não se pode contar com os homens, pois devem uma dedicação exclusiva para a pesca. O trabalho quase só é das mulheres e crianças.
Muita gente se ocupa desde a ida à roça para arrancar mandioca até o últimos bijus e quirera que se desprendem do forno quando não tem mais fogo, bastando a caloria do forno. Os balaios de taquaruçu ou de timbopeva servem para recolher as raízes no eito e depois transportá-las até o terreiro, onde são raspadas com “serengas”. Nessa etapa todos trabalham, inclusive as crianças ficam com dedos tingidos de roxo pela rapa, ganham alguns calos e pequenos cortes nas mãos. Aprendem esse aspecto da cultura caiçara herdada diretamente dos índios tupinambás. A fase seguinte começa com a gamela cheia de água. Dela saem mandiocas que voltaram ter a cor de marfim. Em seguida, os balaios com as raízes lavadas são encaminhadas para a “roda de cevá”.
A “roda de cevá”. Ah, a “roda de cevá”! Poucas pessoas têm o talento e a habilidade de escolher, de controlar, de encaixar os pedaços triangulares de mandioca sobre os outros, ralá-los numa unidade sem desperdiçar nenhum naco. Nem um “cuí” voava fora do “cocho da roda”. Mesmo assim, próximo do “viamento” ficam espalhadas folhas verdes de bananeiras para aparar qualquer rebarba. Algumas pessoas, quando se distraem na roda, ganham sérios ferimentos nos dedos, param momentaneamente, mas logo estão na labuta porque a farinhada é constante.
Uma imagem difícil de esquecer é a de quem está no cabo da “roda de cevá”. Precisa ser habilidoso e ter força. O seu movimento tem uma sincronia espantosa, de uma beleza inigualável, que determina o ritmo da produção.
Após todas as raízes estarem cevadas, é a hora de encher os tipitis, depois de devidamente lavados na cachoeira. Todos se esticam no enchimento com a massa ralada para logo se encolher sob a “prensa de fuso” ou da “arataca”, soltando sobre a mesa da prensa o caldo precioso que, depois de decantado na gamela, fornece a goma para bijus e bolos (as iguarias que concluem cada farinhada). Assim passa, “de atarraxo em atarraxo, de pedra sobre pedra”, um período de doze horas.
Bem cedo os tipitis são deformados no “cocho de massa”. A peneira entra em ação, deixando tudo preparado para a outra etapa: a do forno. Próximo, encostadas na boca do forno estão lascas de tinticuia, caneveteiros, imbaúbas e outras madeiras apropriadas para “fogo leve”.
Ah, a farinhada! A massa peneirada, de cuia em cuia, vai ganhando, após os movimentos do rodo de madeira sobre o forno de cobre, as características de murcha, morna e torrada. Na borda fica uma vassourinha de pena de pato para não deixar nenhuma porção em desigualdade de ponto de farinha pronta.
Só após toda a massa torrada entra os preparos para bolos e bijus. Por fim, a fiapada separada pela peneira esgota a caloria do forno, se transforma em quirera para a criação (galinha, pato etc.). Pronto! Acabou a farinhada após vinte e quatro horas de labuta! Só resta dividir a quantidade, ensacar e ir pelas vendas onde tem mais movimento, principalmente de turistas, e, vender o produto. Mas isso ainda é penoso: transporta-se nas costas, de canoa ou até mesmo em ônibus (quando tem!). Após a venda, outra carga vem de volta à casa: são as mercadorias que não são produzidas por aqui, que custa dinheiro e dá alegria aos comerciantes, sobretudo aos da “vila”. De vez em quando ainda é guardada uma reserva para qualquer necessidade que apareça.
Assim é o povo desse lugar: teve que desenvolver uma criatividade conforme as suas necessidades e a natureza que o circunda. Certamente que, nesse ritmo de vida, as matas continuam com seu verdor, as águas são sempre límpidas e o ar é puro de frescor e aromas.
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