domingo, 29 de maio de 2011

Tempo de farinhada é todo tempo

   
          
        Até a década de 1970, no universo caiçara vivendo somente de subsistência, outra forma de ganhar dinheiro, depois da lida no bananal, é a produção de farinha da mandioca. Também é trabalhoso, mas todos fazem. Quem não tem “viamento” próprio, faz “de às meias”, ou seja, dá uma parte da produção como pagamento pelo uso da “casa de farinha”.
         A cultura da mandioca requer mais cuidados; ainda tem a praga da saúva, que é impossível de se acabar.   Só que a mandioca não é planta exigente; se dá bem em qualquer lugar e dá bastante. Geralmente ela é plantada no meio do inverno; a área plantada precisa ser carpida regularmente, e, após um ano, a rama sofre um corte quase rente ao chão. Assim ela engrossa, ganha mais massa. Após um ano e meio ela está sendo arrancada para a farinhada. Se passar muito tempo ela se torna fiapenta, “cheia de pau”.
         A farinhada é mensal, quinzenal ou até mesmo semanal dependendo da necessidade e da pressa que o plantio exige. Também varia conforme a época. Exemplo: no tempo da tainha não se pode contar com os homens, pois devem uma dedicação exclusiva para a pesca. O trabalho quase só é das mulheres e crianças.
          Muita gente se ocupa desde a ida à roça para arrancar mandioca até o últimos bijus e quirera que se desprendem do forno quando não tem mais fogo, bastando a caloria do forno. Os balaios de taquaruçu ou de timbopeva servem para recolher as raízes no eito e depois transportá-las até o terreiro, onde são raspadas com “serengas”.  Nessa etapa todos trabalham, inclusive as crianças ficam com dedos tingidos de roxo pela rapa, ganham alguns calos e pequenos cortes nas mãos. Aprendem esse aspecto da cultura caiçara herdada diretamente dos índios tupinambás. A fase seguinte começa com a gamela cheia de água. Dela saem  mandiocas que voltaram ter a cor de marfim. Em seguida, os balaios com as raízes lavadas são encaminhadas para a “roda de cevá”.
         A “roda de cevá”. Ah, a “roda de cevá”! Poucas pessoas têm o talento e a habilidade de escolher, de controlar, de encaixar os pedaços triangulares de mandioca sobre os outros, ralá-los numa unidade sem desperdiçar nenhum naco. Nem um “cuí” voava fora do “cocho da roda”. Mesmo assim, próximo do “viamento” ficam espalhadas folhas verdes de bananeiras para aparar qualquer rebarba.       Algumas pessoas, quando se distraem na roda, ganham sérios ferimentos nos dedos, param momentaneamente, mas logo estão na labuta porque a farinhada é constante.
         Uma imagem difícil de esquecer é a de quem está no cabo da “roda de cevá”. Precisa  ser habilidoso e ter força. O seu movimento tem uma sincronia espantosa, de uma beleza inigualável, que determina o ritmo da produção.
         Após todas as raízes estarem cevadas, é a hora de encher os tipitis, depois de devidamente lavados na cachoeira. Todos se esticam no enchimento com a massa ralada para logo se encolher sob a “prensa de fuso” ou da “arataca”, soltando sobre a mesa da prensa o caldo precioso que, depois de decantado na gamela, fornece a goma para bijus e bolos (as iguarias que concluem cada farinhada). Assim passa, “de atarraxo em atarraxo, de pedra sobre pedra”, um período de doze horas.
         Bem cedo os tipitis são deformados no “cocho de massa”. A peneira entra em ação, deixando tudo preparado para a outra etapa: a do forno. Próximo, encostadas na boca do forno estão lascas de tinticuia, caneveteiros, imbaúbas e outras madeiras apropriadas para “fogo leve”.
         Ah, a farinhada! A massa peneirada, de cuia em cuia, vai ganhando, após os movimentos do rodo de madeira sobre o forno de cobre, as características de murcha, morna e torrada. Na borda fica uma vassourinha de pena de pato para não deixar nenhuma porção em desigualdade de ponto de farinha pronta.
         Só após toda a massa torrada entra os preparos para bolos e bijus. Por fim, a fiapada separada pela peneira esgota a caloria do forno, se transforma em quirera para a criação (galinha, pato etc.). Pronto!  Acabou a farinhada após vinte e quatro horas de labuta! Só resta dividir a quantidade, ensacar e ir pelas vendas onde tem mais movimento, principalmente de turistas, e, vender o produto. Mas isso ainda é penoso: transporta-se nas costas, de canoa ou até mesmo em ônibus (quando tem!). Após a venda, outra carga vem de volta à casa: são as mercadorias que não são produzidas por aqui, que custa dinheiro e dá alegria aos comerciantes, sobretudo aos da “vila”. De vez em quando ainda é guardada uma reserva para qualquer necessidade que apareça.
         Assim é o povo desse lugar: teve que desenvolver uma criatividade conforme as suas necessidades e a natureza que o circunda. Certamente que, nesse ritmo de vida, as matas continuam com seu verdor, as águas são sempre límpidas e o ar é puro de frescor e aromas.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Quando o gargalo é a solução (?)

         
         A cachaça, a “nossa branquinha de cada dia”, desde que chegou acompanhando a produção de açúcar, sempre esteve entre os caiçaras. Muitos engenhos funcionaram em diversos pontos do município de Ubatuba. Eu mesmo tive um parente próximo (tataravô), na praia do Pulso, proprietário de engenho, onde a parentada eram os camaradas. O que sei dele e da “faina cachacística” escutei da vó martinha, trabalhadora na meninice no engenho da família. É bom saber que, quando o “ouro despontou nas Minas Gerais”, Ubatuba passou a exportar para aquelas paragens três produtos principais: peixe seco, farinha de mandioca e aguardente.
         Por que expliquei tudo isso? Para justificar a “branquinha mardita” como remédio, sobretudo para quem ama errado (“levou esporada” ou “ganhou chifre”). Casos desses são muitos, “como chuchu na tralha”. Desconhecidos, amigos e parentes próximos passaram por isso. Cada um achou uma solução, “a melhor possível”. Continuam vivendo.
         Não foi o que se deu com o Renato, ainda gente dos Rolim, amigo estimado de infância: entrou na bebedeira, perdeu o gosto pela vida. Vivia gritando: “O gargalo é a solução”. Definhou... foi atropelado... definhou... contraiu cirrose... Definhou de vez. O coitado, do gargalo como solução foi ao caixão.
         O meu tio Tonico, religioso de cepa genuína, nunca chamava infeliz-finado de coitado. Só dizia: “Os mortos nos esperam”. E continuava: "É conforme o dizer na entrada do cemitério de Paraibuna: Nós que aqui estamos por vós esperamos”.
         Para encerrar este volteio desgosto-pinga-morte, o meu pai vive a dizer: “A nossa única certeza é a morte”.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Eugênio Inocêncio

                         Eugênio Inocêncio, um parente muito próximo, filho da Maria Balbina, do Mar Virado, era um negro claro de olhos verdes. Ilhéu da gema. Boa parte da vida passou na Ilha do Mar Virado; a outra boa parte viveu morando na Ilha da Vitória, que pertence ao arquipélago da Ilha de São Sebastião, mas é mais próxima dos ubatubanos nas relações de amizade e de comércio. O que lhe restou de vida foi um mínimo de tempo na praia do Perequê-mirim.
         Do Eugênio, bom apreciador da “branquinha” e muito bom de conversa, eu ouvi sobre o “russo da ilha”. Vitorov era o seu nome. Porém, os ilhéus o chamavam de Vito Ovo. Veio com um grupo para o Brasil fugindo do regime comunista, da perseguição de Stálin na União Soviética, logo depois do primeiro quartel do século XX.
         Ao chegarem ao Brasil, do porto de Santos foram encaminhados para a capital, onde as autoridades não tinham ideia de onde acomodar os quase duzentos russos (e russas!). A solução provisória foi encaminhá-los à Ilha Anchieta, onde funcionava a Colônia Correcional.      Colocaram os coitados na praia do Sul, sem nada para comer, nem espaço para plantar. Logo estavam famintos, desesperados. Nesse ambiente qualquer caiçara se vira bem: marisca, coleta frutos e raízes, faz armadilhas para os bichos etc., mas russos... Morreram quase todos intoxicados. Uns dizem que foi por mandioca brava, mas o Eugênio, ouvindo o Vito Ovo, me garantiu que na verdade eles comeram nogas (frutos da nogueira) acreditando serem castanhas. A fome era tanta...
         Victorov, gritava na praia do Sul quando o Constantino (da Vitória) o socorreu. Ainda jovem, e com o poder dos remédios caseiros dos ilhéus, logo se recuperou. Com o passar do tempo aprendeu a língua e a cultura dos caiçaras. Até casou-se e foi pai de caiçarinhas.
         Eugênio, em suas divagações, contava histórias da Rússia (de um lugar beiramar chamado Mezem, de revolução, de palácios fantásticos) que um dia aprendeu sob a jaqueira no Saco do Guaecá, onde morreu de velhice o russo-caiçara Vito Ovo.

(Nota: as castanhas da nogueira eram usadas para fazer sabão e também como combustível de candeia).

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Tristeza de garoupa no largo

            
           Aconteceu! Demorou para acontecer, mas aconteceu!
          Tia Mariquinha, passando dos vinte anos, já era considerada solteirona. Quem me contou isso foi a tia Maria (do tio Genésio), casada na década de 1940 com a idade de 13 anos. Ela afirmou que a mulher sofria muito em tal situação.
         Por sorte, ou pela “bondade infinita de Deus”, conforme a titia contadora de causos, apareceu um pescador catarinense por essas bandas. Não era tão jovem, mas se apaixonou pela tia Mariquinha. E logo falou com o tio Argelo. Este aprovou com desconfiança.
         O caiçara tem um código moral orientado pela religião católica. Por isso que, apesar da alegria deslumbrante da filha, o pai desconfiado começou a investigar sobre o pretendente. Enquanto isso, a cada serão, o catarinense estava sentado no banco da sala trocando olhares e sorrisos com a donzela. De vez em quando contava alguma coisa da sua terra, mas nunca dos seus familiares. Esse detalhe também fez a mãe da moça ficar ressabiada, “de orelha em pé”.
         Quando o barco em que o catarinense “barriga-verde” trabalhava deveria continuar o itinerário, o pescador titubeou, mas acabou optando pelo embarque. Tia Mariquinha afundou na tristeza porque não houve promessa alguma do namorado. Voltaria? Não voltaria? Ela e o pescador catarinense se casariam um dia?
         Vendo a tia Mariquinha nesse estado, deste modo expressou a tia Maria Balbina: “A coitadinha tá com tristeza de garoupa no  largo”.
         Mais  tarde, a desconfiança do tio Argelo se mostrou com fundamento. De fato aquele pescador era casado em sua terra.

(Nota: a garoupa, assim como sargo, piragica e outros peixes mais adequados para cozinhar com banana verde, pertence ao ambiente costeiro, vive entre pedras, nas tocas)

terça-feira, 24 de maio de 2011

Banho de mar das caiçaras

                
         A água é um dos ambientes preferidos do ser caiçara. Sempre foi questão de sobrevivência se dar bem com a água, sobretudo com o mar (conhecer a marés, as correntes, os cheiros e tantos outros aspectos). Porém, noutros tempos, os hábitos eram outros. Tomar banho, por exemplo, era muito restrito. O motivo principal era a presença de seres perigosos muito próximos do quebra-mar, na arrebentação das ondas.
         Na minha meninice cansei de ver os mais idosos caminhando ou parado no mar, mas com água não alcançando nem mesmo os joelhos.
         E as caiçaras?
         No tempo quente elas também iam ao mar, porém... só à noite, acompanhada por uma outra (amiga ou filha). E vestida! Isso mesmo! De vestido as antigas caiçaras, ao escurecer, avançavam até a linha dos joelhos, onde se agachavam para molhar-refrescar outras partes do corpo. Nisso demoravam pouco. Logo voltavam para casa; uma vasilha com água quente as aguardavam para o banho definitivo do dia.
         Tio Maneco Armiro, puritano somente na aparência, inconformado com tantas mulheres festejando no mar só em biquínis, certa vez disse: 
         “Naquele tempo não havia a pouca-vergonha de hoje.  Onde já se viu lavar a ova tão descaradamente?”

segunda-feira, 23 de maio de 2011

“É só taboa!”

               Hoje, ao passar por diversos bairros de Ubatuba, todos ocupados por casinhas e casarões, vem à lembrança esses mesmos ambientes em outros tempos; até mesmo a década de 1970, quando o turismo chegou forte. Quantas transformações!
         Em todos os bairros (incluo as praias!) existiam vários ecossistemas (desde o lagamar até brejos piscosos, várzeas lodosas e morros onde se coletava, caçava, extraía madeiras etc.). Quantas vezes acompanhei os meus pais e outros caiçaras mais experientes nas mais diversas tarefas nesses ambientes?!
         Com o meu avô Armiro aprendi o uso de taquaras, timbopeva e outros cipós na cestaria; raspei e carreguei cascas de aroeira para cardar cordas e redes. Da minha vó Eugênia vieram os primeiros contatos com as raízes (inhame, cará, mangarito, araruta, mandioca e outras) e o gosto pelas flores. Não me sai da memória o seu tão bem cuidado jardim com tantas variedades de cores, formatos e perfumes. A outra avó –a Martinha - me iniciou no conhecimento das ervas medicinais e das orquídeas (“parasitas”). A ela também devo o aprendizado em piché, paçoca de indaiá, tucum, pindoba e outros cocos nativos. Ah! Quanto de pati comi socado na pedra do terreiro!
         Vovô Estevan é um capítulo à parte. Dele herdei o gosto pelas árvores (coleta de frutos, escolha certa para fazer bodoque, remo esparrela etc.) e pelo olhar silencioso aos sinais na natureza. Com ele, por várias vezes, cortei taboa (era demais!) nas áreas alagadas para fazer esteiras. Nesses momentos escutei dele, entre risos, a expressão:
          “Como abunda taboa em nossa terra!”

domingo, 22 de maio de 2011

Retrato de família

      
         Ontem, 21 de maio de 2011, passei o dia em São Luiz do Paraitinga. Vi e ouvi sobre os esforços para recuperar, após a enchente do ano passado, o ritmo, a dinâmica cultural, além do orgulho caipira tão historicamente arraigado nesses nossos vizinhos.
         Andei pelas ruas, vi os sinais.
         Conversei.
         Escutei projetos simples, despretensiosos, mas repletos de energia interativa com o meio ambiente, com os demais seres que partilham deste mesmo espaço tão específico. Visitei o colega Marcos e conheci a sua família.
         Na roça, com os colegas Marcos e Marquinhos, fui a um bar escutar roceiros falando de abelhas, da roça, da técnica hidropônica, de cachaça, das festas e danças, de queijos e embutidos e de tantas coisas mais.
         Foram momentos simples, onde percebi um alinhamento entre caipira e caiçara: duas vertentes de um mesmo desejo em viver bem intensamente uma interação natural com o espaço circundante.
         Há tempos imaginara isto: um encontro entre os princípios caiçaras e caipiras regado com o ar da serra que gera os princípios do grande rio do Vale do Paraiba.
         É isso! Somos uma só família! Merecemos um retrato!

sábado, 21 de maio de 2011

Lida no bananal

                
         Tarde; meia-tarde. Os homens com seus “penados e roçadeiras” limpam o mato miúdo, tiram as folhas secas que abafam os caules e retiram as mudas a mais (“filha que suga a toceira”).  Somente pequenas aranhas saem apavoradas. Nem no cacho verdolengo tem tié, ou sanhaço, ou gracaí ou qualquer outro papa-banana.
         É quase tempo de “bardeá” os cachos. Primeiro devem ser cortados e deixados nas beiras dos bananais. Em seguida, todo mundo que está disponível, como num trilho de formiga, trança os “embigos” de dois em dois cachos e toca a descer até o lugar do embarque. Cena inesquecível: de alguns homens só se vê as pernas, pois o resto é como se fosse um único cacho. Parecem cachos gigantes andando pelas “grimpas, badejas e pirambeiras”. Repassam nos “caminhos de servidão” que bem distante já foram “carreiros, picadas e trilhas”. Agora, por enquanto, estão no ponto certo. Mas não tarda para chegar a tal de pavimentação para desequilibrar isso tudo.
         A condução sai “carregada até a boca”. Onde estava um monte de cachos, só restam “ingaços, imbigos e folhas murchas” que os cobriram. O dinheiro? A cada embarque eles recebem o valor correspondente ao do “corte anterior”. Isso significa que o produto é entregue sem nenhum preço fixado, isto é, dependendo da cotação no mercado da capital será a gratificação. Mas só será conhecido (o valor) no próximo embarque (geralmente mensal). Também se deduz que o caiçara confia demais, pois tudo é feito sem nenhum contrato escrito. Nada garante que o transportador-comprador voltará no próximo mês. Se não voltar... adeus trabalho, adeus produto. A “ética do fio de bigode” impera.
         “O dinheiro é custoso, mas o de comê tem de fartura”. Estão contentes pela gratificação do trabalho. Vai possibilitar a compra de “carosene, sá, banha, pilha pra rádio e frachilete, corte de fazenda pra costura de arguma peça de ropa, e, tarvez dê  ainda pra trazê pão de farinha de trigo”.
         Dos retalhos de bananais do meu avô Armiro, presenciei muitos embarques mensais de até 10 dúzias de cachos, mas muitos outros ultrapassavam de longe essa marca. Tudo isso só na praia da Fortaleza! É de crêr?
         Assim labutavam os caiçaras até a década de 1970.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Um casamento caiçara

      
         Ontem, 19 de maio, às 10 horas, após o sol ter despontado com toda a alegria, fui ao casamento de Marcos e Adriana, dois caiçaras legítimos do Perequê-mirim.
          Familiares e alguns amigos fizeram questão de ocupar a dependência do Cartório de Registro Civil, na rua Dona Maria Alves, onde a caiçara Mair, da cepa dos Serpa, oficializou o ato. Após a leitura do documento, Marcos pediu a palavra. Emocionado lembrou a todos dos seus entes queridos, de quanto foram importantes no ato que naquele momento se consumava. Em seguida, confirmou tudo aquilo que há tempos a Adriana já sabia. Por fim, justificou o horário da cerimônia: “Em uma pesquisa da historiadora Maria Marcílio, no seu livro Caiçara, ela indica que, há dois séculos, nesta cidade (Ubatuba), a maioria dos casamentos acontecia às 10 horas, ou seja, era tudo previsto e planejado para os convidados fazerem parte de um almoço celebrativo, realmente alegre e acolhedor. Tais características fazem parte da alma caiçara”.
         Naquele momento pensei nos ausentes: Pedro Cabral, dona Ana, Vitalina, Odócio, dona Maria, Angelo, Dorcas, dona Preciosa e outros tantos caiçaras ubatubanos que marcaram nossas vidas.
         É isso!
         Viva o povo caiçara!
         Viva o casal!

terça-feira, 17 de maio de 2011

“Temos pano da mesma fazenda”

          
        O título deste é uma frase dita pelo caiçara Antonio “Paratiano” num dia de sábado, final da tarde, pouco antes do frei Pio iniciar a missa na capela São José, na praia do Félix, no início da década de 1970. Era serão; se escutava os primeiros pios dos curiabôs pelas grotas. Isso já faz muito tempo! Para quem conhece o local, já sabe que o jundu é o mesmo. No serão, era o horário das últimas canoas, aquelas que foram arriar os tresmalhos, serem puxadas do lagamá até os ranchos sob os rolos esbranquiçados de embaúbas.
        O velho pescador Antonio, mais conhecido como “Paratiano”, tinha duas filhas quase chegando aos dezoito anos, ainda solteiras: Maria e Rosa. Ambas precisavam arrumar marido logo, deixar a solteirice. Os candidatos não eram tantos. Um era o filho do Anastácio, o Pedro Malaquias que era atraído pela mais velha – a Maria. Nunca  disse isso diretamente à moça, mas muita gente do lugar sabia do seu desejo em se casar, de preferência com a filha do cidadão de Parati que há muito se fixara por ali. O pretendente ensaiou, ensaiou, ensaiou... até que foi tomado pela coragem. Decidiu “pedir a mão da moça” em casamento.
         Neste teor descreveu, naquele dia distante, um pouco antes do badalar do sino chamando para a missa, o futuro sogro do Malaquias: “Ele chegou como quem não quer nada. Parou no terreiro; olhou a jabuticabeira parecendo que cheirava alguma coisa naquela direção. Depois deixou a minha velha contente falando da beleza da ‘parasita’ orelha de burro, grudada na mexeriqueira. Logo virou a cabeça para o lado da Bocaina e da Ponta Lisa. Fez um comentário bobo sobre o tempo (‘Parece que vai chover’), mas concordei assim mesmo. Foi quando a minha patroa chamou a gente para um café intirume porque já era manhã alta. Na cozinha, então, ele fez o tão custoso pedido. Nós aceitamos; a mulher se dirigiu à camarinha a fim de falar com a menina. Aí o inesperado aconteceu: a Maria não quis. Porém, a outra –a Rosa- se assanhou; prontamente cobiçou o rapaz. A coitada da mãe ficou surpreendida; de lá me chamou. As meninas me olhavam; a mulher disse tudo. Eu achei normal. Voltei à cozinha, ofereci mais café para o rapaz e informei-lhe: ‘A Maria não quer, mas... temos pano da mesma fazenda. Você aceita casar com a Rosa?’ Na mesma hora, ainda gaguejando, ele disse sim. Agora está feito! Por isso, fiquem sabendo: demos a Rosa! É só esperar a festa!”.      Nesse momento, subindo a areia grossa do jundu, ainda com o remo e o samburá na mão, chega o Antonio Malaquias. Foi, então, o centro das atenções. O felizardo, sem querer (?), ficou com a mais bonita das filhas do caiçara paratiano. É, conforme o dizer: “Há ocasiões em que os fados nos concedem os nossos mais caros desejos”. Até parece estar conforme o verso da música: “casar com mulher feia pensando na cunhada”.
        Viva todas as pessoas aqui citadas, inclusive os já falecidos!!!

        Recomendação de leitura: Mundéu, de Domingos dos Santos

domingo, 15 de maio de 2011

Dois casos do Porubinha


No alto da serra, num lugar chamado Porubinha, entre a fazenda Santa Virgínia e Catuçaba, seo Mário tem um sítio muito simples, no meio da mata, lugar quieto e desabitado, onde faz muito frio à noite. Quando quer descansar, pescar e plantar ele vai para lá com a família e alguns amigos.
Ele conta que, quando ainda não havia erguido todas as paredes da sua casa, era um rancho só com a cobertura, mesmo assim já iam para lá e passavam as noites bem enrolados nos cobertores. Dois casos estranhos aconteceram nessa época.
Quando sua filha Eliana ainda era uma menina, acordaram uma noite com o rumor de seus passos saindo de casa. Seu Mário se levantou e viu a filha indo em direção à mata escura seguindo uma pequena luz. Foi atrás da menina e a trouxe de volta, sem ter visto ninguém mais. Ela explicou que uma velhinha havia lhe pedido que fosse com ela naquela direção.
Numa outra noite em que chegava com os amigos no rancho, foram saudados por um guarda florestal que passava por ali. O guarda lhes alertou para tomarem cuidado porque havia muitos caçadores atirando naquela região. Na manhã seguinte outro guarda apareceu nas terras do seu Mário falando dos caçadores. Seu Mário agradeceu e disse:
- Um colega seu já passou por aqui ontem à noite alertando do problema.
- Não senhor, ontem não havia ninguém de serviço por aqui. Como era essa pessoa?
Após a descrição feita por seu Mário o guarda abaixou a cabeça parecendo não acreditar, e, visivelmente abatido, revelou:
- Um companheiro nosso parecido com o que o senhor diz foi morto há pouco tempo a tiros nessa região.

sábado, 14 de maio de 2011

Pré-história de Ubatuba

     
         Arqueologia é o estudo científico das civilizações pré-históricas ou desaparecidas, sobretudo pela interpretação dos vestígios que deixaram, conforme definição de Japiassú  e Marcondes.
         Em quase todos os lugares é possível pesquisas arqueológicas. Afinal, temos poucas noções do que ocorreu nos milhares de ano nos pontos específicos da Terra. No caso de Ubatuba, a Geologia nos satisfaz em relação à formação da Serra do Mar, ao rompimento e afastamento progressivo entre nós e o continente africano. Porém, nos estudos arqueológicos, apesar de alguns sinais recentes (sambaqui do Tenório, povo do Mar Virado, cemitério do Vivamar etc.), que mostram povos de “ocupação recente”, estamos atrasados. Outros sinais, vez por outra, atestam provas de ocupantes mais antigos da Serra do Mar e de seu entorno. É o caso da “Pedra Lispe”, do Roberto. Outro exemplo recente é da “Cabeça I”, da amiga S. Cito só isso para justificar a afirmação que pouco se fez ainda em termos arqueológicos por aqui.
         Resolvi chamar de “Cabeça I” um dos artefatos recolhidos pela amiga S, caiçara da gema, recolhido no rio Ipiranguinha. Num primeiro momento você diz que se trata de uma pedra comum. Ao examinar melhor, lá estão as cavidades de uma cabeça de um bicho; talvez de macaco ou de um hominídeo. Está petrificada, assim como outros artefatos recolhidos da curva do rio. Por enquanto não podemos dar mais detalhes porque o município não consegue dar conta nem mesmo do que já tem um estudo avançado, mas... fica o desafio para os cidadãos:
         Há muito ainda para pesquisar neste chão caiçara de Ubatuba.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Zé da Nhãnhã

         Conheci bem o Zé da Nhãnhã. Não tinha como ficar sério quando se estava por perto desse caiçara que por muitos anos morou em Santos, mas a sua velhice o fez retornar ao seu lugar, ao seu morro querido no Perequê-mirim, onde, apesar de ter a idade de se aposentar, esse caiçara jamais deixou de trabalhar. Por isso, a cada manhã caminhava mais de dois quilômetros para ajudar numa cozinha de restaurante na praia da Enseada. Eu o encontrava a cada dia. O seu cumprimento era assim: “Fronkisting, tit gromitiriam, titi on cambrê. Ion tian!”. Nunca ousei saber o significado de tais palavras. Só restava rir e dizer: “Bom dia, Zé da Nhãnhã!”. Em seguida ele sempre tinha alguma história antes de continuar a sua caminhada para o trabalho.
         Num certo dia, percebendo que ele não sabia ler, quis saber o motivo, pois sempre soube que a escola local era muito antiga. Ele começou a falar sério sobre o assunto, se lastimando por não ter aprendido ler e escrever. Disse que antigamente não era fácil estudar, principalmente quando era o “esteio principal da casa”. Quando estava me emocionando, ele deu outro rumo à conversa. E assim terminou: “Eu fui à escola. Conheci a professora; era bonita pra perder! Comecei a cartilha, mas parei na lição do cachorro, quando fui expulso”.  Ao demonstrar interesse, ele continuou o que estava contando: “A lição do ca-co-cu complicou a minha vida. Bem nessa a professora foi me chamar à lousa para dizer a lição. Conforme ela indicava com a régua, eu ia dizendo: ‘esse é o ca’, ‘esse é o co’ e ‘esse é o cu’. Aí a turma toda riu sem parar mais. E eu ainda caí na besteira de repetir ‘esse é o cu’ mais vezes. O  resultado final: reguadas nas costas e expulsão. De vergonha, nunca mais passei nem em frente da escola. Depois fui pra Santos, onde o tempo era para o serviço. Desconfio que não deveria dizer acintosamente para a professora ‘esse é o cu’, mas disse, né?”.

domingo, 8 de maio de 2011

Mané Hilário (Parte 17)


(Aviso: esta é a última parte desta etapa)

Júlio: Conta algum causo de assombração pra nós

M.H.: Eu não posso dizê nada porque eu nunca vi assombração, mas o pessoá até hoje ainda tem medo. Uma criança que nem aquela ali [mostra o bisneto]: “Olha, não vai em tar lugá porque tem isso assim, assim”. Ele guarda aquilo consigo, né? Mais tarde... Agora tem uma coisa: quem disser que não tem o demônio, o coisa ruim... Tem! Porque nós tinha um cachorro em casa por nome de “Saúva”, um cachorro bonito. Quase toda noite o cachorro apanhava no lado de fora, mas nós escutava o rumor da guasca que batia no cachorro, e, o cachorro, coitadinho, botava a cauda no vão da perna e vinha na porta. Nós botava ele pra dentro. Um dia, uma noite, aliás, a minha tia Elídia, que morreu com cento e poucos anos, o cachorro tava apanhando, e ela: “Tá batendo no cachorro, seu porco, sem- vergonha, seu pé de pato”. E xingava o que era, né? “Espera aí que eu já vou com um tição de fogo aí”. E foi lá na cozinha, pegou um tição de fogo. Ela sabia reza, muitas rezas, né? Chegou no terrero, pegou a rezá arto, em voz arta. O que era saiu pelo caminho do poço. Quando chegou perto do poço deu dois sobiu: fiuiuuuuuuu.......fiuiuuuuuuu...... Ela: “Tá sobiando ainda, seu malandro, seu sem-vergonha, seu ordinário! Crêm’Deus Pai Todo Poderoso, Santíssimo Deus!”. E deu uma risada lá. Ela pegou um tição de fogo, largou com força. O tição foi assim, foi assim, caiu lá no meio do mato. Eu disse assim: “Vai pegá fogo! O capim melado tá seco”. Mas não pegou fogo. Aí o que era desapareceu; nunca mais vortou. O que era eu não sei. Então ela dizia: “Era o demônio meu filho; o coisa ruim que anda rodeando a casa da gente, atentando a vida da gente”. Então eu digo: tem. O  demônio tem! Porque eu acho que, uma pessoa pegá o revórver, uma espingarda, e, matá seu semelhante assim, de sangue frio, é o coisa ruim que tá invocado nele, né? Será que ele não alembra que a dor da morte só esperamos de Deus? Vamos matá uma pessoa antes do dia dele? É o demônio! É o demônio que faz isso! Que nem aquele João Floriano, lá no Taquará, que matou o finado Pinho, o avô da minha nora aqui. Ter a paciênça de mais de um mês, de ele cortá o mato, fazê vorta e vim pará na beira da cachoeira, onde passava todo mundo. Uma distância como daqui lá naquela cadeira, assim ele cortou um pauzinho, afincou (até o pau brotou!), pra ele tá esperando o Pinho fosse um dia sozinho e atirá. E até que pegou o dia e matou o homi. O que é isso? Isso é o demônio, o coisa ruim. Não pode ser outra coisa! Porque assim como a fé, a esperança pra nós em Deus, tem que ter o bom e ter o ruim. Teve pra Ele: foi perseguido pelo demônio. Quanto mais nós na Terra, né? Que nós, por muito bom que seja, mas argum erro nós temo. Só Deus que pode sabê! E acontece essa coisa toda.

(Muito bem! Ainda tem mais na gravação, mas deixarei para outros momentos. Agradeço pela fidelidade e paciência. Um abraço. Zé Ronaldo)

sábado, 7 de maio de 2011

Mané Hilário (Parte 16)


A Revolução de 1932
         Na revolução de 32 os carioca vieram aqui na Piuba, mas correram também. Correram de medo das vacas. Os gado do Zé Fabiano (que o Zé Fabiano ia levando pro sertão pra botá no pasto)...Eles avistaram o Zé cá de longe, foram dizendo assim na Itamambuca, na casa de um senhor lá, que uma esquadra de São Paulo ia de encontro com eles. Vortaram embora. Perderam perneiras... Eu achei um par de perneiras, achei dois pente de bala e fui levá na poliça. Levei lá... Deixaram tudo e correram tudo.
Júlio: Tinha um lugar na estrada velha de Itamambuca, no Morro da Cruz, onde fizeram trincheira, não tem? Tem um valão lá.
M.H.: Ali não fizeram. Ah! Aquilo lá é antigo! Ali era a picada nossa, que nós entrava pra ir pra caçá. Aquilo ali é do tempo do engenho, lá na Itamambuca. Eles não fizeram nada não. Eles deram graças a Deus ir embora logo, senão era capaz dos paulistas... Eu fui chamado. Foram lá me intimá eu lá. Eu tive trabalhando lá com eles à noite, né? De vigilante. Eu e mais uns três, mas depois... logo parou a revolução; eles ganharam lá a causa. Cabou tudo. Eu fui junto com eles. Então o moço, o sordado perguntou pra mim: “Seo Mané: e se eles virem aqui e nós quisé fugi, pra onde sai?”. “Vocês vão pra onde eu for” - Eu falei pra eles – “Que daqui nos rodeia por Itamambuca, saímos  na preia do Arto”. “O senhor sabe, seo...?”. “Eu sei todo o caminho. Sei tudo!”.
         O meu cunhado, o Agenor Fernandes, morava no bananá do Guedes. Nós ia indo, o poliça disse assim pra nós: “Olha, não vamo tudo numa direção só. Vamo afastado um do outro”. Eu  compreendi logo: ele manda afastá um do outro porque se dé argum tiro, argum escapa. E de fila assim a bala atravessa todo mundo, né? Quando chegou lá no bananá, daqui a pouco, no meio do mato: brá, brá, brá, brá... Um cachorro do mato comendo banana madura. Eles: trac, trac, trac... “Deita no chão, deita no chão”. Nós deitemo no chão assim [gesto das mãos cobrindo a cabeça]. Ele ficou de prontidão. Tivemos ali um bocado de tempo. Ele: “Parou, parou”. Eu disse assim: “Não é nada não”. “O que é?”. Eu disse assim: “É cachorro do mato! Não conhece cachorro do mato? É um cachorro grande que tem no mato, que é criado no mato; que come banana”. Aí nós puxemo uma folha de banana assim [gesto] pra fazê rumor. Ele: brau, brau, brau, brau, brau...Correu pro mato afora. Ele: “Ah, danado! Se eu te vejo já dava um tiro”. Fez nós deitá co’a barriga no chão por causa do cachorro do mato.
         No Perequê-açu tava o Raimundo e o Bertino na preia, no porto, e... O Raimundo tinha um revórver. E os poliça tava lá em casa, na minha casa. Nós tava no sertão. Eles mandaram nós ir pro sertão e ficaram na minha casa, lá. Aí... o Bertino com o Raimundo, na preia, e... tava um cepo na preia, no lagamá da preia que o mar batia. O cepo pendia pra lá e pra cá. O Bertino não fez mais nada e... pááááá! Deu um tiro. Quando deu o tiro, já tava a poliça daqui toda em roda. “Quem é que atirou aí?”. E agora? Aí o Bertino: “Atirei um vurto lá; não sei o que era dentro d’água. Pra mim era um sordado”. Aí foram vê: era um cepo. O Bertino ficou tão nervoso... travessou os dois rios de noite, subiu aquele morro do Teodoro Daniel. Foi lá em cima. Amanheceu o dia dormindo, cochilando assim no acero da roça. O Teodoro Daniel foi arrancá mandioca pra fazê farinha, tava ele cochilando. Era o genro que tava lá cochilando.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mané Hilário (Parte 15)


A revolta da ilha Anchieta 
         Ah, rapaz! O susto que nós levemo e a carreira que nós levemo! Nós tava trabalhando numa casa lá no Perequê-açu. Tava em cima da casa botando telha.
Hilário, o filho:
         Neste dia o senhor falou: “Você leva o armoço pra mim porque o serviço lá vai sê mais prolongado; vai demorar mais porque nós vamos fazê a coberta da casa. Então, alguém vai levar  o armoço pra mim”. E, justamente, eu que ia levando, encontrei uma pessoa. O senhor não trabalhou pro Zé Dito? Zé Dito da dona Suzana? Era da Pensão Imperial, aqui perto do Esteves da Silva. Eu ia levando almoço pra ele quando uma pessoa falô pra mim: “Olha, não vai não. Deixa o almoço do seu pai e volta com o almoço que houve uma rebelião lá. Os presos fizeram um levante lá na ilha e tá tudo espalhado por aí. E ele vai também ficar sabendo e já vai vim embora”. Aí eu não sei quem contou pra ele lá. Quando ele chegou em casa com o chapéu na mão, correndo (que ele nunca usou condução)... A condução dele, graças a Deus, sempre foi as pernas. E hoje, agora pra frente, sim, que ele de vez em quando pega um carro, uma carona, qualquer coisa, mas antigamente não. Aquela história que você tava contando sobre o Alfredo Vieira, o meu pai é uma prova, testemunha. E ele também participou. Quando saiu pra pesca da tainha, ele não tinha bicicleta, não tinha nada. Era na sola do pé. Ia pra Toninha, ia pra Enseada, ia no Perequê-açu. No pé mesmo! Então, ele, nesse problema dos presos, ele veio quando soube. Colocou o chapéu na mão, e, veio que veio tirando, embora pra casa. Chegou aqui todo apavorado, contando tudo e pá! E todo mundo naquele silêncio. Inclusive, até umas horas da noite, que a gente morava do lado da chácara, era vizinho do seo Camilo Manoel, e... E chegou a noite, quando começou aquela... o pessoal... os presos invadindo pro  lado da cidade e os soldados procurando pegar, né? Prender os presos. Até por trás da casa passava soldados, ou preso correndo, naquele tropé, batendo o pé e... pá, pá, pá. Nessa época que...
M.H.: Nós, nessa hora, estava no Perequê-açu, em cima de uma casa, quando a dona Suzana chegou chamando o marido: “Ai, vamo embora! Vamo embora gente, por favor! Pelo amor de Deus! O  preso da ilha mataram uma trancada de gente na ilha. E vem uma escorta de preso armado aí dando tiro, morrendo gente por todo lado!”. Escorreguemo pela escada abaixo, e, olha [fazendo zip com as mãos] nós tudo! E quando chegou ali naquele morrinho da descida da prainha, no caminho do Perequê-açu pra cá, encontremo um sordado... poliça. Mas tava que não se aguentava mais. Se nós não faz bonito, nós ia... era morto na mão dele. “Nós viemo do serviço, no Perequê-açu”. “Vocês não são preso?”. “Não! Que preso?! Já viu preso trabalhar?”. “Não. Fala direito aqui pra nós”. Nessa hora chegou o poliça –o outro poliça. Prendeu esse. Foi embora pra cadeia – preso. No outro dia tocaro ele embora pra São Paulo. Se não é o homem, é capaz de nós ser fuzilado lá, de ele matar nós. Porque nós não podia fazê força porque ele tava armado, né? E queria, tentando, encostando o fuzil em nós. E queria saber. Nós falava pra ele e contava: “Nós não tamo sabendo de nada. Nós vem embora porque precisamo ir embora. Já acabemo o serviço”.
         Aqui não aconteceu nada com ninguém. Só aconteceu só lá na ilha; lá. Lá na ilha os poliça mataram um bocado deles lá. Eles mataram poliça. Pintaram o caneco lá, mas pra cá não deu nada não.

domingo, 1 de maio de 2011

Mané Hilário (Parte 14)

A luz elétrica

         Ah! Da luz elétrica só na frente da cidade. Só ali na frente. Só tinha nove postes com luz. No Itaguá não tinha nada; no Perequê-açu não tinha nada. Só  no centro da cidade. Depois que morreu o Oto lá na luz, ele e um primo meu, de doze anos o rapaze, e, o animá, o cavalo do Oto. Aí levou um bocado de tempo sem luz, sem nada. Depois tornou a vortá traveis, de novo, mas veio pouca coisa, né? Depois foi aumentando e chegou nesse ponto que tá agora. Quem trouxe a luz para Ubatuba foi um alemão. Agora... dele eu não tô mais alembrado. Só alembro do Oto e um outro que... depois o outro morreu também aqui. Outro veio pra cá também, ficou aí, foi embora também e depois não vortô mais. Tinha duas filhas; morou ali na... ao lado da casa do Jango Teixeira mesmo. Depois não vortô mais para cá.

O buraco da Dita

         O buraco da Dita, né? É porque ela [Dita] morava do lado. Ela tinha...era ela, o filho (Antonio Bento) e uma neta, filha do Antonio Bento: a Benedita, que às vezes eu falo aqui em casa dela, era bonitinha pra danado! Foi embora. Casou com um português e não vortô mais pra Ubatuba. E a Dita faleceu aqui mesmo. Então, todo mundo olhava e... “Ah! O buraco da Dita, o buraco da Dita! Esse buraco da Dita vai saí na prainha”. Então eu dizia: “que diacho de buraco mais grande que vai vará de um lado pro outro!?” Mas não é não... é conversa do pessoá, né? Ainda tem lá o... Agora, na semana passada, eu passei de carro lá, olhei e disse assim: “Olha o buraco. O buraco da velha Dita tá ali. Ela se foi e o buraco ficou”.

Sobre o padre alemão (João) e a fábrica de beneficiar caxeta
(Nota-se neste momento que ele confundiu dois padres: o padre João e o frei Pio. Ambos foram empreendedores, mas viveram em épocas diferentes no século XX)
         Não alembro. Isso não sei. Sei que o padre João tinha um estaleiro no Ubatumirim. E de lá ele tinha um barquinho que trazia material pra cá, pra cidade. Às vezes até pessoa mesmo, de lá do Ubatumirim, vinha com ele no barco. Trazia farinha, trazia tábua, madeira... prá ca pra cidade... o padre João. Mas que tivesse fábrica de tamanco ali não.