sábado, 4 de junho de 2022

UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO EM APUROS

Tio Dico consertando peixe - Arquivo JRS


       Bem cedo olhei a imagem do Tio Dico, no rio da Praia do Puruba, consertando peixes depois de uma redada, ainda trabalho comum na comunidade. Ao mesmo tempo me defrontei, na leitura de Joatão e a ilha, com a passagem onde os amotinados do presídio da Ilha Anchieta (21 de junho de 1952) alcançaram a Praia da Justa e encontraram o posto do telégrafo que ali existia. (Lembre-se que eram sessenta e um homens que desembarcaram no canto da Praia do Prumirim e foram andando pelas matas e praias). O pai da saudosa Maria Balio (nossa vizinha no Sapê), tio-avô do Tio Dico, era o funcionário local que foi obrigado a conduzir o grupo pela trilha em direção a Paraty. Deles - Maria Balio e Tio Dico - eu escutei várias vezes o episódio seguinte que o autor transpôs para o romance. Nele, o telegrafista caiçara recebe o nome de Sidônio.


       Passaram a prainha, na ponta da Praia de Ubatumirim, toparam com a linha telefônica e o posto telefônico ali instalado. Voltada para a praia a velha igreja, de paredes avermelhadas, envelhecendo com o tempo.
      Joatão correu. Não podia afastar-se dos acontecimentos. Quando adentrou a sala de transmissão já Lino berrava ao apalermado funcionário da telefônica:
     - Deixa de ser besta, homem. Quero falar já-já  com Parati.
     O funcionário, atordoado, complicava:
     - Por favor: o número do assinante.
    - Não sei número nenhum. Liga para qualquer um!
    O bolo de presos armados, tumultuando o pequeno compartimento do posto, aumentava a tensão e tornava o operador mais apavorado [...] Terminado o quebra-quebra, os chefões retornaram a picada. O caiçara Sidônio assistiu tudo, inteiramente coberto de desconfiança. Poderia ter fugido, mas as pernas não obedeceram. Recebera algum dinheiro para ser guia.
    - Tocar pra frente, Sidônio - bradou Lino - É agora que vamos seguir a linha telefônica?
    - Sempre por baixo dela - Sidônio via-se condenado à submissão.
    - Todos na picada embaixo do fio - Ferreira e Lino ajustavam os refugiados confusos - Vamos em fila bater firme a picada! Quem cair de fracote, fica. -Os molóides, cabras de saia, não vão ser ajudados. Ninguém vai ser burro de carga!
    Os alienados afastaram-se da Praia de Ubatunirim, entraram pela região de lavoura - o sertão, de muita roçada: plantações de banana, mandioca, feijão - até o pé do morro, o primeiro da Serra de Parati.

    Em 1981 eu me aventurei em percorrer o mesmo caminho daquele grupo de fugitivos. No Sertão do Pasto Grande encontrei um guia. O saudoso Mané Grande encarregou o neto, uma criança de 10 anos, a me acompanhar morro acima. Depois de muita subida, encontramos um homem trabalhando num roçado. Era irmão do Lacerda, um líder político esquerdista da cidade de Ubatuba. Ali passei o resto do dia em prosa, aprendendo muito sobre o percurso e as histórias mantidas por ali, sobretudo do período dos governos militares, da Ditadura Militar, entre dois ou três moradores existentes naquele tempo. No fim da tarde retornei pelo mesmo caminho, sempre em companhia do menino que hoje nem me recordo do nome, mas a quem devo muito pela companhia.

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