segunda-feira, 29 de junho de 2020

APRENDIZADO DE BALCÃO


                  
Debaixo deste salão ficavam os escravos (Arquivo JRS)
       Quando eu passei a prestar atenção melhor na conversa dos outros, fui aprendendo coisas que nunca imaginava. Certa vez, adolescente, quando eu atendia num balcão de bar, o Seo Luiz, um turista que, depois de aposentado, resolveu morar no Perequê-mirim, era freguês costumeiro num aperitivo chamado fernet. Ele sempre tinha algum assunto interessante, ou uma observação que me despertava pensamentos. Nessa mesma época, se tecia por ali um negro por nome de Tadeu que passava o maior tempo bêbado, sendo surrado pelos outros por pouca coisa. Foi olhando para o Tadeu numa situação de fazer dó que o Seo Luiz assim se expressou: “Coitado deste homem. Desde que os seus antepassados foram escravizados na África, não tem sido muito diferente as condições dos negros. Imagine você que, Rui Barbosa, considerado um dos homens mais inteligentes do Brasil, decidiu dar um fim em milhares de documentos que tratavam do sistema escravocrata alegando ser uma coisa vergonhosa para a Pátria. É por desconhecer a verdadeira história desse período que nem nos importamos com coitados como este homem. Pior: até perseguimos. É por isso que eu digo: o que Rui Barbosa determinou foi crime”.

                Com o passar do tempo, encontrando pessoas cheias de sabedoria, fui me embrenhando em diversos assuntos. Hoje, dando razão à prosa do balcão com o saudoso Seo Luiz, encontrei o seguinte relato do holandês Dierick Ruiters, que , em 1618, passou um ano preso no Rio de Janeiro:

                Vi um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar [bloco de cristal no formato de um pão caseiro no qual o açúcar bruto era comercializado assim que saía do engenho]. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca. Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas piche derretido. O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma noite, de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem ter as suas feridas tratadas. (Citado por Laurentino Gomes, em referência a Jean M. C. França, A construção do Brasil na literatura de viagem)

                Quanta maldade! Que tortura! Que crueldade! 

               É verdade! Grande crime cometeu o político Rui Barbosa. Fica difícil reconstruir totalmente essa horrível história da escravidão sem os valiosos documentos! Quantos desses milionários que estão aí, na sociedade brasileira, têm suas raízes em situações desumanas de outros tempos ou ainda de hoje vividas pelos afrodescendentes!? E o que dizer de um presidente que idolatra um torturador? 

quinta-feira, 25 de junho de 2020

É INVERNO: VAI QUENTÃO?

Arte na telha (Arquivo JRS)


Estou escrevendo. De repente um cheiro bom toma conta da casa. É de quentão, conforme a nossa tradição quando chega o inverno (mesmo que seja bobo e nem dê para vestir a nossa costumeira proteção para os braços). Que cheiro bom! Então comecei a imaginar os ingredientes e seus caminhos: cravo, canela, gengibre... Tudo trazido do Oriente, da África e de tantas outras terras distantes para o Brasil depois de 1500. Também um monte de coisas foi daqui para os lados deles. E aqui, nasce com o açúcar, a cachaça: a água ardente. “Vai uma pinguinha aí?”. O santo nunca recusa.

        O historiador Laurentino Gomes afirma:

Entre os séculos XVI e XVII, São Tomé, Cabo Verde e as demais ilhas atlânticas ao largo da costa da África – incluindo os arquipélagos da Madeira e das Canárias, grandes produtores de açúcar e também entrepostos de comércio de escravos – funcionaram como um grande jardim botânico para a aclimatação de uma infinidade de plantas que, a bordo das embarcações europeias, deixavam suas terras de origem, cruzavam os oceanos e se adaptavam a outros climas e paisagens. Até hoje, os botânicos já catalogaram  mais de 150 espécies vegetais comestíveis nativas da África Ocidental.

                A necessidade é mãe da criatividade. Sabe-se lá quantas coisas esses povos de longe faziam com esses ingredientes. Certamente os povos africanos também usavam muito o gengibre. Já li em algum lugar que, nos porões dos navios, junto dos cativos, era comum virem algumas raízes, inclusive de gengibre. Será que era para mitigar as dores? Ou serviriam para exalar um gostoso cheiro? Pode ser por tantos motivos... Mas o melhor, nas agruras do trabalho forçado, sob açoite, foi o uso para fazer quentão. Depois, de um “prova aqui, o sinhô vai gostá”, a bebida ganhou a preferência nas noites frias, nas rodas de prosas, cantorias e danças. De lá pra cá não deixamos de ter sempre o nosso quentão. Certa ocasião, no Rio Grande do Sul, ao pedir quentão, me vieram com um vinho quente. É o quentão deles, ué! E roda em todas as festas como o nosso quentão, que não pode faltar nas festas juninas. Mas cadê as festas juninas?

                Junto com o friozinho vem o quentão, vem o cará-roxo, o cará-moela... Melhor: chega a tainha vindo do sul. Que beleza! Agora... com licença, vou tomar o meu quentão.

terça-feira, 23 de junho de 2020

A DEVOÇÃO DO TIO FRANCOLINO

Meus rabiscos (Arquivo JRS)


                Quando eu era criança uma coisa me impressionava ao ver o saudoso tio Francolino chegando na rodovia, no ponto do ônibus da Praia Dura, vindo do Corcovado com um enorme saco de farinha de mandioca na cabeça, indo vender na cidade: ele sempre estava totalmente suado, pingando mesmo! Assim que acomodava a sua carga, ele tirava a camisa, pegava uma toalha que trazia na sacola, se enxugava, dava um tempo e vestia outra camisa. (Detalhe: os nossos antigos vestiam uma camiseta sob a camisa). Eu acreditava que jamais veria alguém suar tanto. Também, pudera! Ele era obeso e a sua casa era longe mesmo, talvez quatro quilômetros dali. Era notável a disposição deste caiçara que nos deixou faz tempo!

                Vovô Armiro, falecido faz tempo,  se dava muito bem com o tio Francolino. Quase sempre ele também estava levando a sua carga de farinha para vender no centro, depois de ter andado mais de sete quilômetros na estrada da Fortaleza. Naquele tempo, todos se davam bem, conversavam bastante, contavam causos e davam risadas contagiantes.  Era normal, pois se conheciam desde os tempos de criança, eram parentes, trabalhavam e festavam juntos. Eis uma particularidade dele que eu nunca imaginava. Segundo o vovô: “raramente o Francolino não levava a sua viola na canoa quando ia para a pescaria. Conforme a cara do tempo, ela era embarcada bem protegida e dentro de um balaio de taquara. Seu rancho era em algum ponto, rio acima, quase chegando na Folha Seca”. Estranho? Estranho mesmo! Era paixão! “Numa ocasião, numa pegadeira de espada depois da Barra, quase no Saco Grande, lá estava o Francolino também. Todo mundo estava puxando peixe, inclusive ele. A certa altura, depois de retirar a linhada da água, pegou do saco a sua pequena viola paulista que tanto estimava e nos alegrou com umas modas nossas daquele tempo. Era costume cantar duas ou três delas; depois protegia o instrumento, guardava no balaio e voltava a pescar.  A gente gostava. Era uma alegria só! Não demorava muito para alguém pedir mais cantoria. Quase sempre ele atendia aos pedidos. Coisa comum era de mais gente, nas canoas que estavam por ali, também entrar na cantoria. De uns tempos para cá, devido ao excesso de peso, ele não pesca mais, mas continua tocando a sua viola em casa. O primo Jeú, vizinho dele lá no morro, diz que é costume de um grupo se encontrar no serão, no terreiro do Francolino, para as cantorias e prosas. Ele tem um grande carinho pela sua viola paulista. Diz que, depois da mulher e da canoa,  a viola é o sua maior devoção. O nome grafado nela logo que comprou numa viagem de promessa à Aparecida é: Minha santa".

               Tio Francolino: pescador, roceiro e violeiro radical! Tio Francolino: parte de nossas raízes! Só de imaginar as cenas eu ainda me emociono.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

CARAVANAS DE 1970 A 1974

Frei Pio e a turminha (Arquivo Iolanda)


Iolanda(agachada) em ação (Arquivo Iolanda)


Sempre é bom recordar de outros tempos e de outras pessoas que fizeram muito por Ubatuba. As Irmãs Franciscanas Missionárias de Assis, no começo da década de 1980, fundaram com o frei Pio a Creche Francisquinho. Eu trabalhei na reforma/adaptação do espaço no bairro da Estufa. Até uns dias desses estava lá ainda partes dos brinquedos que eu fiz.

Nos anos de 1970 a 1974, durante as férias escolares de julho e janeiro, nós Irmãs Franciscanas Missionárias de Assis (que dávamos aulas) e mais alguns leigos que se dispunham, tirávamos de 18 a 20 dias, para ir a Ubatuba fazer uma espécie de missão com os caiçaras e pessoas do sertão de Ubatumirim. 

Na época ainda não havia a estrada Rio-Santos. Aquele povo das praias e do sertão plantava mandioca, colhia, ralava e fazia farinha com grande sacrifício, inclusive, ‘lutando’ contra a “imundície” como chamavam a formiga saúva, que muitas vezes devastava as plantações. Quando conseguiam fazer a farinha, ensacavam-na para ir vendê-la na cidade. Este era outro grande sacrifício, porque tinham de ir a pé com o saco de farinha nas costas, atravessando praias e morros. 

O padre Frei Pio Populin, franciscano, grande missionário de Ubatuba por mais de 30 anos, idealizou um barco que pudesse transportar o povo das praias e do sertão, para ir vender seus produtos na cidade, seja a farinha, como também artesanatos que muitos faziam de madeira ou palha, ou para irem a médicos, etc. Esse barco, construído pelo (na época frei Odorico) foi uma bênção para o povo. Os “timoneiros” eram os conhecidos Salvador e Nelson. E era do barco que também nós nos servíamos para chegar à praia Ubatumirim. Que medinho quando estava em alto mar! A travessia durava aproximadamente duas horas. Quando víamos ondas muito altas e fortes, olhávamos o rosto do Salvador para ver se estava preocupado ou tranquilo. Se estava tranquilo, também nós nos acalmávamos.
Descíamos em Ubatumirim, e,  divididas em equipes,  uma equipe ia a pé para o sertão, outra atravessando um rio e depois um morro para a praia Almada e cada equipe durante o dia fazia visitas às famílias, levando uma boa palavra de amizade, um incentivo, uma bênção de Deus.  Muitas vezes comíamos o que nos ofereciam com tanto carinho aquilo que tinham: bananas, farinha doce, café com beiju: que gostoso! À noite, eram eles que vinham ali nas escolas onde ficávamos hospedadas para dormir e guardar nossas coisinhas. Então, pequenas catequeses, orações e depois brincadeiras, cantos com viola ou violão, e até “arrasta-pé”! Ô tempinho bom foi aquele! A última caravana foi em 1974 quando a Rio-Santos já estava adiantada e havia chegado até Ubatuba e mais para frente e logo não foi mais necessário o barco, porque os ônibus o substituíram. Ótimo! Porém, como sempre, ao lado do que é bom, o progresso traz também o que é ruim. Pelo fato de as praias de Ubatuba ser lindíssimas, aqueles que tinham e tem dinheiro, começaram a comprar os locais onde os caiçaras tinham suas casinhas simples, para construir seus casarões. E assim os caiçaras foram sendo empurrados para outros lugares mais isolados, ou não sei dizer para onde. O fato é que a partir daí tudo mudou. E agora, Almada e outras praias por ali já são dos turistas.

           Envio algumas fotos desse belo tempo das inesquecíveis caravanas, que gostávamos tanto. As irmãs que sempre iam: Ir. Clara, Ir. Antonia,  Ir. Maria, Ir. Redenta,Ir. Iolanda, e umas ou outras pessoas ou irmãs, uma ou duas vezes.

            Com saudade deste tempo   Ir. Iolanda

quinta-feira, 18 de junho de 2020

TOTONHO E A JUSTIÇA

Em Silveiras, orgulho da mula (Arquivo JRS)


                Totonho do Rio Abaixo, famoso por pilantragens, insiste em ter a minha amizade. Dias atrás, para me agradar, falou: “Cadê o Queiroz?”. Mas é muito gado mesmo! Pensa que eu não sei que continua na dieta de capim e cloroquina? “Quer enganar quem?”.  Ele, no espírito das palavras do Bozo de Brasília, é o que poderíamos classificar de “terrivelmente evangélico”.  Agora, conforme o dizer do estimado baiano Bartolomeu, “a casa tá caindo”. É, não tem como continuar essa enganação. Mas faço questão de dizer que, na história, as falcatruas sempre estão para privilegiar quem já é privilegiado.

                O Poder Executivo, na sua instância máxima (STF), tem as suas preferências, sabe de qual lado se colocar. Por exemplo, tem processo favorável a quem está mais para o lado das classes populares que fica parado, esquecido até, mas...quando mexe com eles (Juízes) , tudo se movimenta bem rápido. Faz-me lembrar de uma escola, de um aluno terrível, cheio de malcriações para todos os professores, de arrumar confusões com os colegas etc. A cada reclamação de alguma coisa que ele aprontava, a coordenadora dizia: “Coitado dele. É porque ele é hiperativo” e coisas do gênero. Até que chegou um dia em que o tal menino disse um monte de coisas impróprias a ela. O que aconteceu? Bastou só aquela vez para ela correr atrás de outra escola para o dito cujo. Foi transferido na semana seguinte. Agora, aquelas coisas que eram evidentes para nós que procuramos ler coisas de gente sábia, de escutar coisas inteligentes e  de ver ações concretas na superação das injustiças sociais começam a ser comprovadas pelos “homens da justa”, na expressão do mesmo Bartolomeu. Espero que ele continue vivo e feliz na sua querida Pilão Arcado.

                Seo Filhinho explicava, numa ocasião, sobre a escravidão em Ubatuba:

                “Não é de hoje, meu jovem, que peixe graúdo tem proteção das leis, sempre escapa das redes. Há muitas histórias de chegada clandestina de escravos em Ubatuba. Tinha vários portos para esta falcatrua. Contavam de dois escravos que, no desespero, nadando mar afora, na Enseada de Bananal, foram resgatados pela escuna FLUMINENSE. Deram sorte de ser uma embarcação que cruzava a costa a serviço do governo, na fiscalização do tráfico negreiro em 1834. Houve tentativa de aplicação das leis, mas o tráfico continuava e era do conhecimento do Governo da Província.  A vacilação, o temor dos Juízes de Paz no cumprimento da Lei também era compreensível, pois aquela ilegalidade era exercida por argentários, pelos maiorais da terra, com os quais não seria prudente nem interessante criar qualquer animosidade. Mas imagine se fosse os parentes deles que estivessem sendo escravizados. Você imagina?”.

                É pena que tantos pobres não enxerguem as provas, mas acreditem nas evidências mentirosas para darem tiros nos próprios pés. Dá dó e raiva ver tanta gente enganada por lobo em pele de cordeiro, sabia Totonho?

quarta-feira, 17 de junho de 2020

VISÃO DO ALTO DO MORRO

À sombra da bananeira (Arquivo JRS)

Outro poema do mano Mingo para ilustrar o meu último trabalho: "À sombra da bananeira, do alto do morro, a gente avistava o mar"


Eu sei, desde os tempos de menino,
que a gente vive por teimar,
pois quem nasce à beira-mar
tem o destino escrito na areia
e se a onda vem e apaga tudo,
e se não der peixe na linhada,
e se vier pouco peixe no espinhel
ainda tem a rede armada
no pesqueiro do parcel.
Esse mar está cheio de vida,
(mas já teve mais!)
esse mar ainda é generoso
(mas já foi mais!)
Quando a gente chegava do mar
com uma fieira de peixes na mão,
vovó  nos abençoava e dizia:
"Quando Jesus andou no mundo
procurando seguidores,
escolheu só os melhores
no meio dos pescadores."

Quer mais? Vai lá: barbatuba.blogspot.com

terça-feira, 16 de junho de 2020

MANO MINGO

Passarinhos que gostam do meu quintal (Arquivo JRS)


Começando o dia com uma poesia do mano Mingo. Quer mais? Visite barbatuba.blogspot.com.


Eu aprecio os poemas
com rumor de cachoeiras que cantam
que até as pedras mais ásperas
são suavizadas pela leveza das águas.

Eu gosto de poemas de cantigas de passarinhos
cantadas e aperfeiçoadas de geração em geração
nos galhos das fruteiras carregadas
e nem precisam ser poemas
com as palavras rimadas.

Eu prefiro os poemas que tresandam
a cheiro de capim orvalhado
às margens de um caminho
que não tem outra serventia
senão ligar-nos com o passado.

domingo, 14 de junho de 2020

O QUE VEM DEPOIS DA RESSACA?

O mar tem muita força, minha gente! (Arquivo JRS)



                É bonito apreciar o movimento das águas, das marés. Uma ressaca, então, me encanta demais! Não conheço caiçara que não gosta de assistir um espetáculo da força do mar. O mato do jundu é surrado, recebe areia, tocos, ciscos que passeiam com as correntes. Agora, de uns tempos para cá, vem muito lixo também, mas na minha infância era raro encalhar coisas estranhas à natureza. Em dias assim, quando o mar parecia estar puto da vida, a gente tinha o prazer de ir até a beira da praia para ver tudo. Vovó dizia: “Ele até está espumando de raiva!”. Ou seja, o espetáculo ajuntava avós, filhos, netos... Todo mundo! Creio que foi assim desde os primórdios. Depois, a calmaria voltava a reinar. Eu escolhia entre aquilo que encalhava as melhores toras de cortiça para fazer os meus barquinhos. Em geral, se alguma coisa tivesse sido danificada, providenciava-se consertos. O mais importante eram as vidas.

                Hoje vemos governantes e outros (sem-noção ou perverso) defendendo a economia como superior à vida. Que tamanha inversão de valores! “Quando o mar voltar à sua paz, quem irá consertar as coisas?”.  Assim é com a sociedade: ela atravessa períodos bons e períodos ruins. Por exemplo, o município de Ubatuba, no final do século XIX festejava uma ligação ferroviária que ligaria o litoral com o Vale do Paraíba e Sul de Minas. Veio a república, medidas foram tomadas por forças que ainda não foram bem estudadas, faliram os financiadores, acabou o sonho. Mais uma decadência depois das outras (extinção do pau-brasil, fracasso canavieiro e esgotamento da cultura do café) marcou a nossa história. No começo do século XX, poucos dos ricos aqui ficaram, decerto esperando algum sinal no horizonte. Muitos acompanharam a cultura do café para o interior. Só os pobres ficaram, com alguns poucos indo em busca de trabalho na Baixada Santista (nos bananais, no porto...). Voltamos à agricultura de subsistência. “Tendo farinha, peixe e banana a gente vive, meu filho, e faz coisas, luta”. Foi-se a economia, mas ficaram as pessoas!

                “Em 1906, alguns dos últimos fazendeiros que aqui ficaram, sonharam com as atividades do braço colonizador europeu que vinha transformando a fisionomia das fazendas do Oeste paulista, abriram mão das vastas áreas de suas propriedades e doaram-nas ao Governo de São Paulo para a formação de uma colônia agrícola”.  E continua o relato do Seo Filhinho, seguindo um documento de 15 de maio de 1906 endereçado ao prefeito municipal:

                “Comunico-lhe para que leve em nome da Câmara Municipal  ao conhecimento do Dr. Secretário da Agricultura deste Estado, que me prontifico a fazer cessão ao Estado de São Paulo, de terrenos que possuo na raiz da Serra, estrada que vai deste Município ao de São Luiz do Paraitinga, terrenos que calculo mais ou menos duzentos alqueires, com o fim de o Governo aproveitá-lo  para uma Colônia Agrícola, sob a condição de serem medidos e demarcados em lotes alternados. Isto feito, redigirei a escritura deste meu oferecimento. Que a boa vontade do Governo do Estado de São Paulo se torne em breve uma realidade em benefício de Ubatuba, são os meus maiores desejos e terei muita satisfação se houver contribuído para um melhoramento à terra em que nasci. Com toda estima e consideração, sou de V. Sa.  – Conterrâneo e amigo. (a) Francisco Gonçalves Pereira”.

                Foi uma boa decisão. Faz-se urgente, após a ressaca da pandemia atual, repensar a concentração de tanta terra nas mãos de pouca gente, sem produzir nada. “Mais de 70% do que nos alimenta vem dos pequenos produtores deste país”. Tratar de fazer bom uso daquilo que temos deve ser um passo importante após a ressaca. 

sábado, 13 de junho de 2020

A GENTE MERECE, CARLOS!


Sabiá na janela (Arquivo L. L.)

                Dias atrás recebi uma imagem do amigo Carlos Lunardi, morador de Caraguatatuba, o município vizinho. “Bom dia Zé, como é o nome desse pássaro? Não é o pássaro preto porque o bico é amarelo”. Estava ali perto, numa das janelas do prédio.  Na hora pensei no sabiá-una (sabiá-preto). “Tem mais jeito de sabiá-una ”.

                Outro dia, na beira da estrada aqui perto, avistei uma caneleira florida. É uma árvore imensa, cujos frutos sabiá-una gosta muito. Então pensei no sabiá na janela de um edifício, quase no centro da cidade: o que será que ele estava querendo ali? E voltei a pensar na fruteira dele que ainda está em flor. “É sempre no mês de agosto que o sabiá-una desce o morro. Sabe por quê? Porque a caneleira está cheia de frutos maduros. Ele vem para se alimentar. Depois volta para o mato, bem no alto dos morros, onde se criam. Você nunca verá um ninho de sabiá-una aqui em baixo, por perto de nós”. Quem me explicou isso foi o Mané, irmão do  Nicodemos, lá do Sertão do Ingá, caiçaras que eu muito admiro. “É mesmo! Me lembrei de quando era criança! Era assim mesmo!”.

                Quando eu era criança, o mato estava bem perto da minha casa. Ali em volta, além das caneleiras, também tinha jiçaras, que dão o melhor palmito que conheço. Seus cachos, repletos de coquinhos pretos, também atraiam os passarinhos (tiribas, sabiás, tucano, jacu...). Então, o mês de agosto era uma algazarra o dia inteiro porque a alimentação deles era farta. Mesmo que sempre tivesse alguém estilingando ou bodocando os coitados, eles pareciam não diminuir enquanto durassem os frutos. O melhor do sabiá é o seu canto! Quase sempre a mamãe pediu silêncio para nós ao distinguir uma cantoria especial. É, tem disso! De vez em quando aparecia algum deles com um canto mais bonito que os demais. Mamãe era especialista, tinha um ouvido muito bom para identificar algo que fazia a diferença entre tantos passarinhos cantando. Então, quase sempre ela punha o dedo esticado sobre os lábios: “Chiiiiuuu, escutem. Tem um cantor pedindo a nossa atenção. Reparem que ele não está muito perto, mas vem chegando na caneleira. Daqui a pouco ele estará aqui,  no cisqueiro. A gente merece escutar essa maravilha!”. E a gente prestava atenção nos sons.  Assim fomos aprendendo a apreciar os diversos passarinhos e seus maravilhosos cantos. Nos dias de hoje, nas árvores que eu plantei, a “minha reserva particular” conforme diz a mana Ana, sempre tem um som especial. Nesta semana parei ao ouvir o trinca-ferro. Ontem, no ipê, cantarolou por quase uma hora um bonito-fogo, também conhecido por gaturamo. “Ainda bem que estou em casa!”. Desconfio que o passarinho avistado pelo meu amigo, numa janela da vizinhança, deve ter sentido cheiro de banana madura. Talvez estivesse com fome. Na próxima vez, Carlos, espero que o sabiá-una venha na sua janela para uma cantoria. Você merece! A sua família merece!

sexta-feira, 12 de junho de 2020

CHIFRUDOS CURTINDO A PRAIA

Que beleza! (Ubatuba antiga - Arquivo da internet)


                Faz poucos anos que eu fui conhecer algo que muitos já conhecem desde que nasceram: uma boiada. Se assustou? É que no litoral, ao menos em Ubatuba, não fez parte da economia local a criação de gado. O motivo? Não temos extensas áreas planas. As que poderiam ser minúsculos pastos, quase sempre eram brejos, áreas alagadas, onde pescávamos, caçávamos, coletávamos orquídeas etc. Também servia à extração de caxeta, junco, taboa e outros produtos importantes à cultura caiçara. Porém, me enviaram há algum tempo uma fotografia impressionante: bois na praia da Lagoinha. Isso Mesmo! Noooosssaaaa!!!

                A praia da Lagoinha é aquela próxima da Maranduba, onde, na margem da rodovia, estão ainda algumas colunas de uma  suposta fábrica de vidro, próximas da portaria do condomínio principal. “Patrimônio público!”.  Adentrando no bairro, você conhecerá as famosas ruínas da Lagoinha. Consta que, primeiramente pertenceu ao Capitão Romualdo, possuidor de vasta cultura de café e cana de açúcar, cuja produção de açúcar mascavo e de aguardente era embarcado para o estrangeiro. A construção de uma fábrica de garrafas era parte de um projeto em exportar a aguardente devidamente embalada. Onde buscar areia boa? No Sapê, onde eu nasci! Ali, nas cercanias do Porto do Eixo, onde a areia era branquíssima, até recentemente estavam as duas enormes lagoas, de onde teriam levado a areia necessária ao empreendimento, segundo as falas dos mais velhos. Os antigos caiçaras também falavam de um castigo de Deus sobre  a área da Lagoinha, sobre seu dono. “Foi castigado porque mijou na imagem de São Pedro, o protetor da fazenda”. Ah, mijão!

                O Seo Filhinho tem outra explicação: 

         “Sua esposa, D. Mariana, enlouqueceu, dissipou toda a fortuna de seu marido. Nos seus desvarios, a que foi levada por ciúmes mórbidos, escorraçava os escravos de trabalhos, paralisando as atividades da fazenda por prolongado tempo, justamente nos momentos mais precisos; inutilizava as colheitas nas tulhas abarrotadas; incendiava canaviais inteiros e fugia muitas vezes, levando e esbanjando, tanto quanto possível, vultosos valores do marido. Certa vez, emissários que a procuravam, depois de uma larga ausência, foram encontra-la arrasada, faminta, maltrapilha, em Angra dos Reis, para onde havia caminhado a pé, enfrentando as agruras daquele tempo”.  

           Imagine mais de duzentos quilômetros a pé! Depois disso, a área passou por outros projetos. O finado Agostinho, que agora nomeia a escola do bairro, próxima das ruínas da fábrica de vidro, disse um dia:  

       “O Estevené veio depois, quando a fazenda do Romuardo já estava tomada pelo mato havia tempo. Ele fez um plano mirabolante, conseguiu parceria, mas o banco, de onde havia promessa de dinheiro, faliu quando a coisa começava a acontecer. É da mesma época da ferrovia que não aconteceu, contam os antigos”.  

      Eu desconfio que depois disso alguém, aproveitando a pouca grama, criou uns bois. "Tinha uns bois por aí: do João Pimenta, do Dito Carlos".  Pena que o Agostinho já se foi! Ele teria mais explicações nesse negócio de boi na praia. É quase certo que a escassa alimentação levou as reses para o jundu. Dali para a areia se bronzear um pouco foi um pulo. Resumindo: A vaca não foi para o brejo, pois o mar era mais fascinante. Boiada esperta!

quarta-feira, 10 de junho de 2020

ESCRAVOS DA VACINA



Cristo da parede (Arte: Estevan)


                Poucas pessoas entendem os motivos da Revolta da Vacina em 1904, no Brasil. Um dos motivos eu dou a conhecer agora. No Ubatuba Documentário está que os senhores, do começo do século XIX, usavam negros como cobaias na condução dos vírus imunizantes, quando a varíola devastava a população no litoral e em Ubatuba. “De forma epidêmica, o último surto verificou-se aqui em 1906”.

                O Seo Filhinho, escreveu:

                Em 19 de agosto de 1805, Antônio José de França e Horta, Cap.-Mor de Santos, comunicava a Manoel Lopes da Ressurreição, Cap.-Mor de São Sebastião, ter enviado à Bahia seis escravos para receberem lá a vacinação contra a varíola, e, de volta, trariam no próprio corpo, nas secreções purulentas, a matéria imunizante, que passariam de uns a outros, numa disseminação vacino-imunizante.

                No regresso da Bahia, ditos portadores escalariam em São Sebastião – como aconteceu – onde o cirurgião que os acompanhava fez a mesma operação em algumas pessoas, com a finalidade de assegurar e difundir a vacinação naquela Vila.  Ao mesmo tempo foi ordenado ao Cap.-Mor de Ubatuba que, por sua vez, mandasse a São Sebastião “alguns rapazes, acompanhados de um professor ou curioso”, para ver, e submeterem-se à dita operação, os quais, de regresso, devidamente inoculados, seriam portadores da matéria imunizante.

                Era tão grande – e louvável – o interesse pela difusão daquela empírica vacina, que Horta fez solicitar também ao Cap.-Mor de São Luiz do Paraitinga que, por sua vez, mandasse alguém aqui a fim de submeter-se à mesma prática e de volta levar para serra-acima o vírus necessário ao combate à tremenda enfermidade naquela Vila.

                Convém esclarecer que houve evolução.

           Em 29 de novembro de 1848, o Presidente da Província ordenou ao Comissário vacinador que remetesse a Ubatuba algumas lâminas de pus virulento, recomendando à Câmara que providenciasse a vacinação. Está claro que com aquelas lâminas seriam efetuadas as primeiras vacinações e, a seguir, das pústulas que se verificassem nos pacientes vacinados, seria captado o material necessário, para empírica vacinação em outros indivíduos.

                Ou seja, continuava valendo os dois modos: pus do indivíduo e pus da lâmina. Eu desconfio que  também me revoltaria. Você imaginava mais esse uso dos escravos? "Fizeram deles Cristos!", diria  Mestre Sabá, o negro da Pedra Branca.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

MULHERES DE PESCADORES

Baguari de Fora (Xilogravura própria - JRS)


                Voltei a ler uma obra a respeito dos Pescadores de Caraguatatuba, o município vizinho. Não tem quase diferença dos pescadores de Ubatuba, mas me interessa as particularidades. Assim...

                As mulheres dos pescadores do Massaguaçu trabalhavam nas lavouras, acompanhadas de seus filhos que, fora do horário das aulas, ajudavam a plantar e colher os alimentos. Enquanto os pescadores estavam no mar, as mulheres se ajudavam trocando alimentos e cuidando das crianças quando estas adoeciam.

                Enquanto estas mulheres trabalhavam na lavoura, as que residiam no Porto Novo trabalhavam na Fazenda dos Ingleses, em atividades que iam desde os serviços caseiros até os pequenos trabalhos voltados para a produção de bananas, principal produto cultivado e exportado pela empresa. Havia também a fábrica de aguardente, onde o trabalho delas era na produção e embalagem. Estas atividades auxiliavam na economia doméstica das famílias dos pescadores.

                As diferentes atividades exercidas pelas mulheres de pescadores são fatores que diferenciam o cotidiano dessas famílias, fossem elas do Massaguaçu, Centro ou Porto Novo. Nas demais localidades, suas vidas tiveram mesma rotina e mesmas preocupações com relação às suas famílias. Seus filhos, com dificuldades,  frequentavam escolas fossem perto ou longe.  Os maridos saíam com o raiar do sol para pescar, sempre com esperança de fazer uma boa pescaria. Estes, quando saíam para o mar, deixavam para trás filhos e esposas que se apegavam às crenças populares nos pedidos de proteção para os pescadores. As rezas e os pedidos para Santa Bárbara e Nossa Senhora dos Navegantes eram constantes, pois eram elas que sempre lhes davam coragem a cada vez que seus maridos pegavam suas precárias canoas para enfrentar a vastidão do mar.

terça-feira, 2 de junho de 2020

ESTA FLOR ME REMETE AO ARARIBÁ

Florada bonita! (Arquivo JRS)


                Quem passa perto da minha casa logo avista, transbordando pelo muro, flores, borboletas, abelhas e outros insetos em profusão.  Nesta época, o encanto fica por conta do frondoso pé de flor de maio. A partir de meados do mês de maio, nós ficamos na espectativa. Um belo dia, elas desabrocham para a nossa alegria e de tantos outros seres voadores. Desconfio que muita gente, passantes da rua,  também as contemplam. Afinal, basta apenas um olhar para ser cativado pelo espetáculo.

                Muita gente está acostumada com outra flor por nome de flor de maio. Nós também temos dessas aqui. Porém, desde criança eu aprendi a apreciar esta, agora apresentada com este nome. Parece uma margarida. É, poderia até ser margarida de maio, segundo a minha esposa.
Olha a abelha! (Arquivo JRS)

                Desconfio que, em décadas passadas, em todos os nossos simples terreiros  caiçaras, havia uma planta dessa. Todos queriam, no final do mês de maio, levar seu ramalhete para compor os arranjos que enfeitavam Nossa Senhora. Para quem não sabe: o mês de maio é dedicado a Maria, a mãe de Jesus. Assim... sendo os caiçaras gestados na força da igreja católica, essa devoção tem tradição, faz parte do catolicismo popular.  Então, é uma planta de grande valor sentimental. O meu primo Zé Roberto, escreveu o seguinte ao ver a florada em casa: “Esta flor me remete ao Araribá, época de criança, no mês de maio, na coroação de Nossa Senhora”. Eu digo o mesmo em relação ao Sapê, onde nasci.

                Segundo contam, essa tradição tem origem na Grécia.  Maio era dedicado à deusa Artemisa, deusa da fecundidade. Foi reforçada pelo culto dos romanos à deusa Flora, a intercessora da vegetação. Maio era o apogeu da primavera no hemisfério norte. O que fez a igreja, na Idade Média, foi se aproveitar da força da devoção existente e convertê-la em ritual católico. “Estratégia para conseguir adeptos!”.  E assim chegou até nós, deixou sua marca na formação do povo brasileiro.

                Hoje não é fácil encontrar a flor de maio. Pode ser porque as plantas exigem os nossos cuidados, a nossa atenção. Pode ser porque as pessoas queiram usar os espaços para outras finalidades. Pode ser por muitas outras razões... Eu me orgulho muito dessa planta, desse aspecto sentimental da nossa cultura. Bem cedo escuto o zum-zum-zum das abelhas e admiro a revoada das borboletas. Flores simples e lindas! Cultivá-las faz bem!

segunda-feira, 1 de junho de 2020

ARI DE OUTRO TEMPO

Na beira da estrada (Arquivo JRS)


                A fala de agora é na espera de novo tempo, depois da doença. Espera-se novas ideias na construção de coisas novas, desapegadas dos erros passados. “Milagre não acontece!”. O Velho Aristóteles, mais conhecido por Ari, funcionário do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), morava quase ali, no morro do Getuba, chegando na cidade de Caraguatatuba. Tinha um defeito: era esquecido demais. Quase sempre o nosso encontro parecia ser inédito. Com ele, numa tarde no ônibus, aprendi o seguinte:

                “Eu não sou daqui,  mas vivo neste lugar bem mais de quarenta anos. Moro ali, onde ainda tem alguns vestígios da base do DER. Ainda se vê, da estrada, um tanque de piche. A casinha branca ali é onde me escondo. Você é de onde?”. Eu falei que nasci no Sapê, que sou daqui mesmo. “Do Sapê? Eu conheço bem! Conheço um pessoal dali! Meus primeiros amigos moravam ali: Calixto, Hipólito, Tonico, Antônio do Prado... Conheci aquele pessoal todo de Ubatuba: Domingos Barreto, Domingos Soca, Tuta, Dedé, Alcides, Zico, Odócio, Chico Simão... De repente eu até conheço algum parente seu”. Falei o nome do meu avô e do meu pai. “Ah! Me lembro bem do seu avô. O Seo Estevan, de vez em quando, também prestava serviço ao DER, carpia a beira da estrada naquele trecho entre Maranduba e Lagoinha. Gente boa aquele homem!”. Fiquei contente com ele, agradeci pelo agrado feito. “De fato, de vez em quando ele estava nesse serviço”. E ele, parecendo que tinha tomado umas “branquinhas”, continuou animado: “O tempo agora é outro. O meu povo deve estudar, ainda mais agora que o presidente criou o sistema de cotas”.  Preciso dizer que Ari é negro? Só não imaginava que ele estivesse acompanhando e refletindo sobre a política de cotas aos negros no ensino superior. “Todo mundo quer ser feliz, Zé. Só que, gente preta como eu, já nasce com pontos perdidos nessa busca. Você também não nasceu salvo porque é gente pobre, que precisa primeiro se preocupar com o que comer. Mas tem ao menos uma vantagem: é gente branca. O sistema de governo, agora, com essa medida, mostra um desejo real de integração. Chega a ser uma afronta ao capitalismo que cria os meios para impedir a felicidade de muitas pessoas, sobretudo os escurinhos assim, como eu”. Quanta sabedoria! E Ele continuou: “É importante estudar, Zé! O enfrentamento das dificuldades, a busca da felicidade, pode depender do conhecimento. E isso não é milagre, meu povo! Por isso que eu digo: ela, a felicidade,  é política!”. Então me lembrei de outro Aristóteles, o grego, que dizia isso mesmo: “A felicidade é política porque é vivida na pólis”. Ou seja: a mesma fala, dos Aristóteles, em tempos diferentes. Sorte a minha em querer fixar tal sabedoria: o argumento implica estudo. Ainda bem que tem coisas que esse meu conhecido não esqueceu. Valeu a prosa, Ari!