Quando eu passei a
prestar atenção melhor na conversa dos outros, fui aprendendo coisas que nunca
imaginava. Certa vez, adolescente, quando eu atendia num balcão de bar, o Seo
Luiz, um turista que, depois de aposentado, resolveu morar no Perequê-mirim,
era freguês costumeiro num aperitivo chamado fernet. Ele sempre tinha algum
assunto interessante, ou uma observação que me despertava pensamentos. Nessa
mesma época, se tecia por ali um negro por nome de Tadeu que passava o maior
tempo bêbado, sendo surrado pelos outros por pouca coisa. Foi olhando para o
Tadeu numa situação de fazer dó que o Seo Luiz assim se expressou: “Coitado deste homem. Desde que os seus
antepassados foram escravizados na África, não tem sido muito diferente as
condições dos negros. Imagine você que, Rui Barbosa, considerado um dos homens
mais inteligentes do Brasil, decidiu dar um fim em milhares de documentos que
tratavam do sistema escravocrata alegando ser uma coisa vergonhosa para a
Pátria. É por desconhecer a verdadeira história desse período que nem nos importamos com coitados como este homem. Pior: até perseguimos. É por isso que
eu digo: o que Rui Barbosa determinou foi crime”.
Com o passar do tempo,
encontrando pessoas cheias de sabedoria, fui me embrenhando em diversos
assuntos. Hoje, dando razão à prosa do balcão com o saudoso Seo Luiz, encontrei
o seguinte relato do holandês Dierick Ruiters, que , em 1618, passou um ano
preso no Rio de Janeiro:
Vi um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de
açúcar [bloco de cristal no formato de um pão caseiro no qual o açúcar bruto
era comercializado assim que saía do engenho]. Seu senhor, ao saber do
ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um
negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés,
uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca.
Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote
contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive,
por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de
boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas
piche derretido. O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma
noite, de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem
ter as suas feridas tratadas. (Citado
por Laurentino Gomes, em referência a Jean M. C. França, A construção do Brasil
na literatura de viagem)
Quanta maldade! Que tortura! Que crueldade!
É verdade! Grande crime cometeu o político Rui Barbosa. Fica difícil reconstruir totalmente essa horrível história da escravidão sem os valiosos documentos! Quantos desses milionários que estão aí, na sociedade brasileira, têm suas raízes em situações desumanas de outros tempos ou ainda de hoje vividas pelos afrodescendentes!? E o que dizer de um presidente que idolatra um torturador?
É verdade! Grande crime cometeu o político Rui Barbosa. Fica difícil reconstruir totalmente essa horrível história da escravidão sem os valiosos documentos! Quantos desses milionários que estão aí, na sociedade brasileira, têm suas raízes em situações desumanas de outros tempos ou ainda de hoje vividas pelos afrodescendentes!? E o que dizer de um presidente que idolatra um torturador?