sábado, 30 de novembro de 2019

O PAI DA CORUJA

Botões (Arquivo JRS)



        De vez em quando avisto o Bito Madalena, filho de Magdalena, esperando o ônibus. Está sempre bem arrumado, indo para a igreja. Se converteu ao pentecostalismo já idoso, preocupado com a vida depois do findar da vida. Já dizia o saudoso Jeú, do Corcovado: “A gente pensa de verdade no perdão quando pressente a morte mais perto”. Ah! Quantas e tantas já aprontou o estimado Benedito Antunes de Sá!

         Além desses nomes, o nosso personagem também era o Coruja. Por quê? Porque houve um tempo que, galopando ou andando pelo caminho entre a Maranduba e o Saco das Bananas, ele trazia uma coruja empoleirada num dos ombros. “Bicho manso, que se apegou assim ao Ditinho porque foi bem tratado desde filhote”, explicava a saudosa Constantina, sua esposa.

             Numa ocasião, tempo que já vai longe, pousei na casa deles, no morro da Ponta dos Morcegos. Naquele tempo ele abusava da “branquinha mardita”; naquela noite não dormiu em casa. No outro dia, ainda clareando, a Constantina gritou aos meninos: “Vão ver adonde está o pai de vocês”. Imediatamente dois deles saíram correndo, na direção do Morro da Mata Virgem. Não levou meia hora já estavam de volta. “Encontramos o pai naquela badeja, pra cá de onde é a casa do Caetano. O cavalo tava em pé, no meio do caminho; ele tava dormindo no meio do capim melado, com a coruja em cima da barriga”. “E o que fizeram?”. “Deixamos ele lá, ué! Depois que acordar ele vem pra cá”. “Tá bom, assim ele descansa um pouco”. Não demorou muito, no alto do morro despontou a figura em cima do cavalo e a sua coruja junto.
            “Lá vem o Ditinho”.
           “Lá vem o pai da coruja!”.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

ENGOLIR SAPO OU….

Sapo esperto (Arquivo JRS)


       Eu já contei que os sapos abundavam na minha infância? É, tinha bastante, numa diversidade fantástica! O motivo: existia muitas gamboas, vargens e lagoas. Era fartura de água. No Sapê, onde nasci, divisando com o terreiro do Leôncio havia um brejo lindo, com caxetas enormes. Atrás da casa do Nié tinha outro, onde a mana Ana ganhou um cobreiro depois de pisar numa intanha apodrecida. Entre a nossa casa e a do Jonas era uma só gamboa, a minha preferida. Assim que começava a chover, eu escapulia para apreciar o espetáculo: sapos de todos os tamanhos, de todas as cores, de todas as toadas. A intanha, por exemplo, chorava como uma criança, a nimbuia fazia a voz grave do coral. Guimarães Rosa escreveu:

     No brejo, os sapos coaxam agora uma história complicadíssima, de um sapo velho, sapo-rei de todos os sapos, morrendo e propondo o testamento à saparia maluca, enquanto que, como todo sapo nobre, ficava assentado, montando guarda ao próprio ventre.
- Quando eu morrer, quem é que fica com os meus filhos?
- Eu não... Eu não! Eu não!… Eu não!…
- Quando eu morrer, quem é que fica com a minha mulher?
- É eu! É eu! É eu! É eu!

         Pois é, o mundo dos sapos é inspirador. Vovó Eugênia contava dos dois espertos penetras (sapo e jabuti) que foram numa festa no céu. Aproveitaram bem, mas foram descobertos pelo chefão de lá. Veio castigo: o jabuti foi o primeiro a ser jogado para baixo, caiu numa pedra e ficou em cacos. Por isso que ele tem o casco todo remendado. Já o sapo, ladino como só, suplicou para que não fosse lançado na água, onde morreria. Imagina só! Que estratégia! Veio para baixo, em direção de uma grande gamboa e saiu feliz da vida. Esperto que só!

         Tia Iaiá (Maria da Barra), sábia mulher num corpinho tão frágil, certa manhã ensinou uma lição dos sapos: “Ontem, no serão, na lagoa do Nofre, as nimbuias estavam assanhadas antes mesmo da grande Lua. Se preparem de hoje pra amanhã; é vento forte chegando. Nem pensar de baixar canoa na praia”. De fato, no amanhecer do dia seguinte, o bananal nas terras do velho João Bento estava deitado, duas amendoeiras se desprenderam no jundu com raiz e tudo, mas nenhuma casa foi estragada. “Milagre, meu filho!”. Quando eu contei isso para o tio Marcelino, ele apresentou a seguinte moral imoral: “Casamento a pique é quando o homem está engolindo sapo em vez de comer perereca”.

À SOMBRA DO IPÊ

Olha a abóbora!  (Arquivo JRS)

Posando com Papai Noel  (Arquivo JRS)

Arte em casa  (Arquivo JRS)



       Ali perto da estrada, debaixo do majestoso ipê plantado pelo saudoso pastor, eram três a prosear: o filho do Antônio Caolho, nascido depois da Eva, o mais velho do Dito Santo e o que lhe escreve, filho do Carpinteiro. O assunto principal era pescaria, depois de passar por assuntos de família e desse nosso lugar que cresceu tanto, onde quase ninguém já se conhece. Arrumar tempo assim é costume de tranquilidade, coisa de caiçara que muita gente nem faz questão nos dias de hoje.
         
            -   E o  seu irmão?

      -  Meu irmão agora é evangélico, tem raiva das imagens que eram da minha mãe. Depois que ela se foi, eu trouxe tudo para casa. Agora, se você for lá, verá na sala o oratório com alguns santos. Todos eram dela. Ela e meu pai eram católicos e morreram assim. Eu sigo eles, vivo me lembrando dos exemplos deles.

      -   Eu sei disso. Me lembro muito bem de como trabalhavam os dois. Quantas vezes tomei café com vocês, na casa da beira da estrada!?! O vizinho mais perto era o velho japonês. Mais ao fundo, debaixo da grande mangueira, era a casa da sua irmã e do Genésio. Coitado… Bebia tanto… Saudades deles e de tanta gente boa que partiu.

       -  E você? Cadê aquela moto bonita, antiga, CB 400, né?

     -  Ela tá ali, em casa. Fica na sala. Quase todos os dias dou partida nela, senão trava o carburador.

        -   Quando foi a última viagem nela?.

      -  Ah! Faz tempo! Há anos fui em Serra Negra visitar um amigo. Pousei lá para depois seguir até Mairiporã, entrar pelos caminhos da roça e visitar meu pai. No dia seguinte amanheceu uma chuva torrencial, grossa mesmo. Meu amigo ainda tentou me dissuadir de sair com aquele tempo, mas não conseguiu. Uma jaqueta e uma calça grossa era o meu agasalho. A chuva continuava do mesmo jeito, grossa que só. Quando peguei a estrada de barro é que senti a dificuldade. Pior foi quando a moto atolou até o motor. Depois de um tempo veio um cavaleiro e me ajudou, senão eu ficaria ali por muito tempo. Ao dizer que estava indo visitar o meu velho, Antônio Caolho, ele disse que o conhecia, mas que seria impossível porque a estrada adiante estava em piores condições, recomendando que seria bom voltar dali mesmo. Foi o que fiz. Poucos quilômetros depois, já no asfalto, continuando cair água na mesma pancada, a moto tava limpinha de novo, sem nada de barro. Seria a última vez que encontraria com o meu pai. Não demorou muito tempo, ele faleceu.

      -   O nosso amigo aqui, agora aposentado, tem mais tempo para pescar.

    -  Isso é verdade. Adoro pescar. Não é tanto pelo peixe, por gostar, mas pelo prazer da pescaria, pela paz junto ao mar. Geralmente vou depois do almoço para a costeira e só saio no serão, quando vai chegando a escuridão.

      -   É isso mesmo! Sempre ele deixa lá em casa uns peixes que pescou. A vizinhança se dá bem, todos se conhecem. Toda latinha lá de casa eu jogo por cima do muro dele.

      -  Eu vou ajuntando aqui e ali e depois vendo. Sempre rende o suficiente para pagar algumas continhas. Me pagam quatro reais pelo quilo. Agora vamos entrando, ver como está o meu quintal cheio de plantas. Ah! Tem uma abóbora reservada para você.

      -  Fiquem vocês aí porque eu preciso ir à feira comprar algumas coisas. Foi bom estarmos juntos. Foi bom rever você. Era uma criança quando foi morar no Perequê.

      -  Isso mesmo! Eu tinha sete anos.

     -  Até logo. Hoje você toma café com ele, mas na próxima é lá em casa. Vê se não demora.

       -  Até. Pode deixar, Cristino.

domingo, 24 de novembro de 2019

ADEUS PÉS DESCALÇOS




Arte em casa (Arquivo JRS)

Sabe aquele dizer: "Nesses dias eu tava pensando nisso"? Pois é! Assim o Dito produziu este texto. É simples, assim como são simples as pessoas que foram iludidas para votarem em alguém que agora está contra elas. Quantos Ditos, Marias e Zés foram enganados!?!



      Na década de oitenta do século passado, ainda era comum pessoas andarem descalças no Sertão da Quina. Caiçaras, caipiras e até os migrantes faziam isso. Porém, o chão que pisávamos (me incluindo, claro!) era outro.

     O chão que se pisava era diferente, mais natural, mais convidativo a se voltar às origens e sermos crianças novamente. Quem já teve o prazer de andar com os pés no chão sabe do que estou falando.

       Liberdade é a palavra que define a sensação de conforto proporcionada por uma caminhada sem os pés prisioneiros dentro de um calçado. A sensação mudava conforme o tempo: se chovia, pisávamos na lama ou no barro. E era bom, pois segundo as escrituras, nós viemos do barro. Se chovia forte, vinha areia. E ela massageava nossos pés. Se o sol estava muito quente, o chão nunca esquentava muito. E, depois, quem era maluco de enfrentar o sol de meio dia?

        O fato de não andarmos mais descalços não é culpa nossa. O grande culpado é o asfalto, que para muitos é necessário, principalmente para os apressados. Ou seja, gente que acha que a vida é curta, e, se andar depressa, o tempo é mais aproveitado. É essa gente que trocou uma boa conversa numa roda de amigos por uma mensagem no tal whats. A desculpa é sempre a mesma: “Eu não tenho tempo”. Aí chega em casa e gasta duas horas respondendo mensagens e apagando as mais variadas bobagens. Essas pessoas esqueceram o valor de uma caminhada, o valor de um bate papo; que conversar com um amigo não é perder e sim ganhar tempo. Muitos pensam que buzinar é cumprimentar. Mais uma das culpas do asfalto.

           Para encerrar o assunto, vou dividir o mundo em três tipos de pessoas: as que amam o asfalto, as que acham necessário e as que, como eu e os caiçaras tradicionais, correm dele.

Para reflexão: Devagar também se chega. É só sair mais cedo.

Benedito Evangelista Filho (Galo)

domingo, 17 de novembro de 2019

PITIRÃO NA PRAIA


Imagens do pitirão

            O dia amanheceu lindo, com uma claridade esfuziante. É dia de pitirão. A caiçarada e os novos caiçaras, adeptos da nossa cultura, foram convidados para o embarreamento do Rancho Caiçara, na praia do Perequê-açu. Bem-vindos! 

        Cheguei cedo, mas o Rochinha e o Tião já começavam a transportar o barro, a ocupar o espaço de masseira. Logo foi chegando todo o nosso pessoal, homens, mulheres e crianças. Molhar barro, sovar bem com os pés, molhar, sovar de novo e perceber o ponto ideal para embarrear, quando todo mundo mete a mão no barro para preencher os vãos do pau a pique. Que festa! As histórias e os causos não podem faltar em ocasião assim. No mesmo ritmo da odisseia do barro, algumas pessoas vão preparando o de comê. Até batata-doce foi assada junto com as carnes. A consertada era farta. Da minha parte, na garrafa de azeite, deixei a pinga com cambuci, em homenagem ao grande líder. A Roberto e Ostinho, recomendei: “Cuidem da ‘criança’, viu!”.

           O pitirão que mais marcou a minha vida foi na nossa casa, no morro da Fortaleza. Lá, onde debaixo da aroeira do terreiro, nós avistávamos todo o mar da baía e de mais longe, onde os navios passavam soltando grossos rolos de fumaça. Naquele dia distante, veio gente até da praia Grande do Bonete, mostra da grande irmandade caiçara. Tal como se repetiu no Rancho Caiçara, logo a grande tarefa estava pronta. Antes mesmo do fim já tinha peixe assado, café, farinha e cachaça. E muitas histórias, lógico! Foi quando o Artelino Flor contou o seguinte fato ocorrido num pitirão:

          “Já faz tempo que aconteceu isso, nem foi aqui, mas na minha terra, em Pernambuco. No dia, bem cedo, todo mundo estava com muita disposição para o pitirão na casa do Dinho Piquiá. O pessoal nem quis esperar o café de tanta afobação. Ainda precisava os últimos acertos para que todos se envolvessem. Um amarradilho aqui, um prego acolá… Até o enripamento ainda estava por acabar. Eu e mais dois subimos para este trabalho. Uma hora depois, Eva, a mulher do Dinho veio chamar todo mundo para o café. 'Venham que tá na mesa'. Notando que o pessoal do telhado estava demorando, o anfitrião gritou: ‘Desçam. Venham logo! Venham tomar o café que a Eva coou!’. Aí, os três retardatários, rindo demais, disseram do telhado: ‘Quem evacuou? Então nós não fazemos questão!’”.

        O papai, sossegou o Artelino, fingindo-se de zangado: “Aqui ninguém evacuou em nada, né pessoal? A ordem antiga, mas que tá valendo ainda é: quer cagar vai pro mato, no monturo”.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A CHAVE

Em Brumadinho, antes da tragédia (arquivo JRS)


        Quando eu era criança, conforme disse em outras ocasiões, o espaço caiçara era bem diferente do de hoje. Eram poucas as cercas entre as posses; os terreiros estavam acessíveis a todos, bem varridos, floridos e sombreados; os caminhos eram abertos a todos e os espaços eram públicos. Os bens eram repartidos entre nós. A modernidade hoje, se apossando de discursos de ódio, maquinando mentiras a partir de particularidades históricas localizadas, nega e combate os valores comunitários. O que importa é a cobiça, as conquistas individuais, o vencer a todo custo. “Ah! Nossos antigos estão superados, eram atrasados, não pensavam no futuro! Se fosse hoje, eles cairiam nessa moda de comunismo!”. 

          Pois é! Eles cairiam sim! Na verdade, os nossos antigos, no sentido etimológico do termo, eram comunistas, pois tudo era repartido por todos. Papai e mamãe, dentro da rotina comunitária, após uma caçada ou uma pescaria farta, despachava os filhos com quinhões a serem distribuídos nos arredores. É o chamado comunismo primitivo. Jesus Cristo, se acreditarmos nas narrações evangélicas, recomendou ao jovem rico, que almejava o paraíso, a repartir com os pobres os seus bens. Em outra passagem, na primeira comunidade cristã é conhecido o episódio do casal (Ananias e Safira) que acumulava, deixando de repartir como era praxe, e, no final, morreram para a comunidade. Tudo isso está para comunismo ou capitalismo? Mas tem um monte de gente, inclusive “cristãos”, parentes meus "crentes da Palavra Sagrada e da fila semanal da hóstia", condenados às exigências expoliativas, defensores de princípios individualistas que cultivam o ideal parasita. Ou seja, o trabalho é uma maldição; por isso “tenho de ficar rico, não trabalhar mais e só viver de rendas”. São cristãos assim que, empunhando uma Bíblia, dão golpes políticos, apoiam quem persegue as minorias em nome de uma elite, de uns poucos privilegiados neste mundo.

         A chave principal para repensar nosso mundo é a palavra. Ela cria e destrói modelos, alinha e desalinha utopias, revela heróis e heroínas passando pelo martírio, mas nem sempre se tornando santos e santas etc. Mas isso não me importa! O que me interessa é a memória, as lutas dessas pessoas em favor da vida em sua maior amplidão possível. Já li isto acerca do Cristo que tantos defendem: “Eu vim para que todos tenham vida”. Todos! Todos não significa somente alguns! Quer mensagem mais comunista?

          A palavra mantém a memória. Os comandos contraditórios que vivem parasitando a nossa gente têm a função principal de apagar a memória do valor comunitário. Dentre outros modelos, relembro da Árvore do Esquecimento e de seu ritual antes dos embarques dos negros destinados a serem escravos em outras terras distantes do mundo africano, numa relação parasítica. Agora, em tempo de reflexão da nossa identidade brasileira, recomendo um documentário de anos atrás: A rota dos orixás. E concluo: a chave da palavra deve atuar na fechadura da vida, romper a relação parasítica tão atualizada e remasterizada pelos recursos de última geração. A palavra deve gerar vida em vez de destilar ódio!

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O ASFALTO DÁ, O ASFALTO TIRA

Chove, faz brotar coisas boas (Arquivo JRS)


O amigo Dito, morador de muitos anos na área do Sertão da Quina, adotado pelo povo dali, faz observações interessantes após a chegada do asfalto no local.

      Nós éramos felizes e são sabíamos é a conclusão que eu cheguei após ponderar sobre o antes e o após o asfalto no bairro do Sertão da Quina.
         Muito embora eu não more em rua asfaltada, nem tampouco iluminada, faço uso de algumas que receberam tais benefícios. Analisando o antes e o depois, cheguei à conclusão que o custo supera o benefício, de longe, de muito longe!
        Em primeiro lugar, as nossas ruas não têm largura apropriada para serem asfaltadas. Segundo: as pessoas por acharem que o asfalto iria valorizar suas propriedades, aproveitaram até o último centímetro de terreno. Terceiro: a falta de consciência das pessoas que acham que o automóvel é para tudo e em todas as horas. Parece exagero alguém falar que existe hora de rush no Sertão. Quem quiser ver é só ficar entre o campo de futebol do bairro e a esquina do Moisés. Outra coisa que tem me causado espanto é o fato de que os caiçaras natos agora evitam sair às ruas, mas não sei se conscientes ou não. Cheguei a essa conclusão há algum tempo, pois ao cumprimentar as pessoas, ela vêm com a seguinte frase: “Você anda sumido”. Como, se eu vou no Sertão todos os dias!? A verdade é que as pessoas não se deram conta que o progresso esperado não deu o resultado esperado. Outra coisa notória é a qualidade do nosso asfalto: coisa triste!
           Há quem possa dizer: “Você diz isso porque não tem carro”. Então é preciso ter carro para saber o que está certo ou errado?!? Então, vamos dividir o mundo entre os que têm carros e os que não têm carros?
         Embora não existam verdades absolutas, o que se vê e o que se sente é que a tendência é piorar. A cada dia que passa, vê-se mais carros e mais motos (substitutos não naturais das pernas). Então vêm as mudanças de comportamentos, principalmente dos jovens que não usam os veículos para se locomoverem (o que seria o mais lógico). Ao invés disso, fazem verdadeiras arruaças noite adentro, principalmente nos fins de semana.
        Mudanças de hábitos é o que mais se vê depois do asfalto: gente que andava alguns quilômetros, hoje não anda metros a pé. Hoje, até os buracos são diferentes: os do asfalto são mais difíceis de consertar, aumentam mais rápido. E ainda: quem se desvia deles corre o risco de colisão.
         Saudade é a única palavra que cabe quando me lembro de antes do asfalto. Talvez um dia eu tenha um carro (incoerência?) para ir mais longe. No sertão é tudo perto.
         O asfalto diminui o tempo da distância a ser percorrida, porém aumenta a distância entre as pessoas.

Para refletir: Queria ter o que tinha quando queria ter o que tenho agora.
                                                     Benedito Evangelista Filho (Galo)

domingo, 10 de novembro de 2019

O MESTRE E SUA DAMA

Fandango no Prumirim (Arte: Estevan)


       “No bate-pé, pra essas bandas, ainda não apareceu ninguém que superasse o Antônio Neves, da praia Grande”. Quem me contou isso um dia foi o Dário Barreto, da Fortaleza, mas muita gente também repetia a mesma coisa quando o assunto era dança. Comecei este texto assim porque, dias atrás, vi desembarcar do ônibus, no bairro Rio da Prata, esse grande caiçara - um Mestre! -  e sua esposa Isabel, afilhada da mamãe. Estão idosos, já lentos em seus passos, mas tão honrados como sempre foram, transmitindo uma paz como pouca gente consegue. Como amo essa gente!

       O Neves, conforme chamava o Velho Peralta, nascido na Grande do Bonete, casou-se com Isabel, da Sete Fontes. Gente da pesca e das festas! Caiçaras ligados ao mar de verdade! Ah! Como subiram e desceram morros esses dois! Quem conhece a praia das Sete Fontes, indo pelo caminho desde o Saco da Ribeira, saberá muito bem a que me refiro (sobretudo em tempo chuvoso, quando o barro vermelho fica liso como sabão). 

       Dançar sempre foi uma paixão dos caiçaras. Não se passava uma semana sem função: na entrada era chiba, depois a marrafa e as miudezas (ciranda, cana-verde…). O conjunto, que hoje também é chamado de Fandango, era o Bate-pé. Tamancos se arrebentavam se não fossem bons. “Muitos preferiam o pau de laranjeira para fazer seus tamancos, mas o Antônio só usava aroeira ou cabiúna. Nunca vi um tamanco dele se partir no meio do bate-pé. Nunca fez feio no assoalhado”, conforme o saudoso Dário. “E a dama tinha de ser boa na dança, ter muita resistência para ser a parceira do Antônio Neves. Ele cansou de vencer os outros: só parava depois de todos já estarem sentados em bancos, quando o Sol já estava por cima do Mar Virado”. Outras falas do mesmo teor, cheias de admiração, dão a entender o dançarino que foi o estimado Antônio Neves. "Foi mestre mesmo!".
   
         E eu parei para apreciar aquele casal querido, indo pela beira do caminho, um atrás do outro, com algumas sacolinhas de compras. Me emocionei pensando em seus parentes, no lugar onde fizeram tanto por todos nós, onde tantas prosas boas tive o prazer de compartilhar com os dois. Seus passos lentos, cuidadosos com os buracos, carrapichos, pontas de criciúmas e arranha-gatos. "Daqui a pouco alcançam a segurança do lar, do terreiro bem cuidado". Em seguida continuei meu caminho, cantarolando o findar de uma das nossas músicas:

Minha gente me desculpa
Minha gente me desculpa
Me queira me desculpar
Remando nesta canoa
Me queira me desculpar
Na rima deste meu verso
Viola já vai parar.