terça-feira, 25 de dezembro de 2018

LENDA DA SEREIA (I)


              
Coisas medonhas do mar (Museu  da Xilogravura, em Campos do Jordão- Arquivo JRS)
       O mar, todo caiçara sabe, tem coisas medonhas também. Dona Idalina Graça, andeja e especuladeira por natureza, escutava muitas histórias nas rodas de prosas que, geralmente, aconteciam nos jundus, em Ubatuba. Também tinha gente que a procurava solitariamente para desabafar sabedoria caiçara. Idalina anotava tudo o que podia com muitos detalhes. Até que alguém descobriu a sua lata de textos. Daquela lata de biscoitos saiu esta história.

               Moisés, numa manhã garoenta de Natal, depois de tomar seu café com peixe seco assado e farinha de mandioca, se encontrou comigo defronte a ruína do solar colonial da família Grandeiro, no Cruzeiro de Anchieta. Logo puxou a lenda das sereias: “Antigamente, quando eu ainda era menino, toda esta praia tinha laranjais e algumas casinhas espalhadas entre o verde das árvores. Meu pai tinha a dele, um pouco maior que a de seus companheiros, pois éramos cinco irmãos. Ali, onde a senhora está vendo, havia um rancho de canoas. Nele morava o preto Venâncio. Dormia enrolado nas velas que lá se guardava. Nós, os garotos da vila, vínhamos em busca do Venâncio, em noites chuvosas, para o bom preto nos contar histórias de fantasmas, duendes e sereias. É com saudade que recordo essa meninice abençoada! A senhora havia de ver o silêncio que reinava entre nós, endiabrados moleques da vila, encarapinhados nos rolos de corda, para ouvirmos, embevecidos, a voz do 'Vovô Venâncio', como o chamávamos pra agradá-lo. Naquela noite em que ele nos contou a Lenda da Sereia, o mar estava sereno e a voz de um pescador retardatário, vinha até nós, trazida pelo vento que soprava na mansidão, em dolente e apaixonada canção de amor.

               O velho, após pigarrear, contou que numa tarde ensolarada, estavam os pescadores na praia à espera das tainhas. Formavam um grupo alegre, troçando uns com os outros. Apenas Guilherme   parecia  distante.  Um  dos  rapazes,  mais  íntimo,  deu-lhe  um  beliscão, dizendo: - ‘Acorda, Guilherme! Olha que o peixe está no lanço! Talvez as tainhas tragam a sua sereia’.

               Guilherme, um jovem animado para tudo, era um ótimo pescador. A modificação em seu ser aconteceu após um acidente numa noite, quando um vento forte irrompeu de repente, causando a sua queda na água, bem no meio do largo, bem depois da Ponta do Patieiro. Por coragem e força foi resgatado do mar bravio, mas só recuperou os sentidos quando chegou à praia, perto da Barra da Lagoa. Porém, nenhum deles, nem por sombra, imaginava que o jovem pescador ficaria com a alma marcada por uma estranha dor pelo resto de sua vida. Tornou-se melancólico, triste, sem ânimo algum para fazer além do necessário. Até da paquera se afastou, causando muita dor na jovem Emília que, ao inquirir o amigo Brás, escutou o seguinte;  - ‘Emília, você sabe que eu não acredito em sereias, mas estou quase acreditando que o nosso amigo viu alguma coisa naquele acidente, quando quase se afogou. Acredito que ele está enfeitiçado’.

               Brás, condoído pela garota, foi conversar a respeito disso com o Guilherme. Este, tocado pela preocupação do amigo, falou: - ‘Vou te contar, Brás, tu és um dos que não acreditam na existência de sereias, mas eu a vi, e o pior de tudo, é que me apaixonei pela mulher-peixe. Por que não me deixaste morrer naquela noite? Eu tivera morrido em seus braços mais alvos que a própria neve!’”.

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