O mar, todo caiçara sabe, tem coisas medonhas também. Dona Idalina Graça,
andeja e especuladeira por natureza, escutava muitas histórias nas rodas de
prosas que, geralmente, aconteciam nos jundus, em Ubatuba. Também tinha gente
que a procurava solitariamente para desabafar sabedoria caiçara. Idalina anotava
tudo o que podia com muitos detalhes. Até que alguém descobriu a sua lata de
textos. Daquela lata de biscoitos saiu esta história.
Moisés,
numa manhã garoenta de Natal, depois de tomar seu café com peixe seco assado e
farinha de mandioca, se encontrou comigo defronte a ruína do solar colonial da
família Grandeiro, no Cruzeiro de Anchieta. Logo puxou a lenda das sereias: “Antigamente,
quando eu ainda era menino, toda esta praia tinha laranjais e algumas casinhas
espalhadas entre o verde das árvores. Meu pai tinha a dele, um pouco maior que
a de seus companheiros, pois éramos cinco irmãos. Ali, onde a senhora está
vendo, havia um rancho de canoas. Nele morava o preto Venâncio. Dormia enrolado
nas velas que lá se guardava. Nós, os garotos da vila, vínhamos em busca do
Venâncio, em noites chuvosas, para o bom preto nos contar histórias de
fantasmas, duendes e sereias. É com saudade que recordo essa meninice
abençoada! A senhora havia de ver o silêncio que reinava entre nós, endiabrados
moleques da vila, encarapinhados nos rolos de corda, para ouvirmos,
embevecidos, a voz do 'Vovô Venâncio', como o chamávamos pra agradá-lo. Naquela
noite em que ele nos contou a Lenda da Sereia, o mar estava sereno e a voz de
um pescador retardatário, vinha até nós, trazida pelo vento que soprava na
mansidão, em dolente e apaixonada canção de amor.
O
velho, após pigarrear, contou que numa tarde ensolarada, estavam os pescadores
na praia à espera das tainhas. Formavam um grupo alegre, troçando uns com os
outros. Apenas Guilherme parecia distante. Um dos rapazes, mais íntimo, deu-lhe um beliscão, dizendo: - ‘Acorda, Guilherme! Olha
que o peixe está no lanço! Talvez as tainhas tragam a sua sereia’.
Guilherme,
um jovem animado para tudo, era um ótimo pescador. A modificação em seu ser
aconteceu após um acidente numa noite, quando um vento forte irrompeu de
repente, causando a sua queda na água, bem no meio do largo, bem depois da Ponta do
Patieiro. Por coragem e força foi resgatado do mar bravio, mas só recuperou os
sentidos quando chegou à praia, perto da Barra da Lagoa. Porém, nenhum deles,
nem por sombra, imaginava que o jovem pescador ficaria com a alma marcada por
uma estranha dor pelo resto de sua vida. Tornou-se melancólico, triste, sem
ânimo algum para fazer além do necessário. Até da paquera se afastou, causando
muita dor na jovem Emília que, ao inquirir o amigo Brás, escutou o
seguinte; - ‘Emília, você sabe que eu
não acredito em sereias, mas estou quase acreditando que o nosso amigo viu
alguma coisa naquele acidente, quando quase se afogou. Acredito que ele está enfeitiçado’.
Brás,
condoído pela garota, foi conversar a respeito disso com o Guilherme. Este,
tocado pela preocupação do amigo, falou: - ‘Vou te contar, Brás, tu és um dos
que não acreditam na existência de sereias, mas eu a vi, e o pior de tudo, é
que me apaixonei pela mulher-peixe. Por que não me deixaste morrer naquela noite?
Eu tivera morrido em seus braços mais alvos que a própria neve!’”.
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