Viva Dona Gertrudes! (Arquivo JRS) |
A
tarde anunciava trovoada passageira quando eu já estava na casa da Dona
Gertrudes, que festejava os seus quase cem anos anos. Todo final de ano é assim:
reencontro-festa dos parentes e amigos, onde a gente sempre aproveita as agradáveis prosas
de caiçaras de outras gerações. Não demorou para vir chuva barulhando e coriscando.
“É coisa rápida, passa logo. Espere só
estrondar umas duas ou três vezes”, falou do meu lado uma figura garantida
de todo ano: o Ataliba, caiçara do lado do Norte, mas que há muito tempo se
mudou para o centro da cidade. Depois de quarenta e sete anos trabalhando
embarcado (na pesca e cuidando de lanchas de passeio), ele se aposentou.
Conversar
com o Ataliba é ouvir de tudo, mas o que mais me agrada é ver as suas emoções
ao contar coisas do mar, de tempo em que viveu embarcado em grandes barcos pesqueiros:
“A gente pescava desde o litoral capixaba
até quase no Rio Grande do Sul. Tinha lugar de pesca que ficava por volta de
vinte horas de viagem até o porto mais próximo. No Rio de Janeiro, nas
principais fábricas de sardinhas enlatadas, eram toneladas e toneladas de
sardinhas que a gente deixava! Aqui mesmo em Ubatuba, o barco esvaziava para
abastecer as salgas do Altino Maciel, do Igawa, do Gitano... Era fartura de
peixe! Até mesmo para fazer adubo a gente entregava peixe! Imagine você que a
caixa de sardinhas, pesando oitenta quilos, era entregue a cinco cruzeiros (Cr$
5,00). Era barato demais! Agora, veja só, se acabou o peixe. Imagine entregar
peixe até para adubo! Eu já dizia
naquele tempo que um dia isso tudo se acabaria. Era perseguição demais aos coitados dos peixes!”.
Se recordando
de coisas impressionantes, o Ataliba contou:
“Tem gente que tem um poder especial. Eu me
lembro de um homem que passava de vez em quando na Rampa (área dos bares e
mercearias e do comércio de pescados, na Barra dos Pescadores) ajustando
balanças. Ele, com apenas dois dedos, envergava enormes pregos, encostando
ponta com cabeça. Uma vez, estando ele na peixaria do Caetano, eu lhe dei um
prego, desses de 22 por 48, só para ver a proeza que tanta gente admirava.
Assim, diante dos meus olhos, sem fazer força nenhuma, o prego se dobrou. Fiquei
bobo. Em outra ocasião, tinha um sujeito com um galo chamando a atenção de quem
zanzava por ali, na ponte que vai para o Perequê-açu: ele fazia um galo
arrastar tranquilamente uma viga de 12 [6 x 12 cm], de peroba. E não era pequena não! Imagine você! Se ajuntava um monte de gente para ver aquilo: um galo arrastando
uma viga como se não fizesse nenhum esforço. De repente, chegou o Cristino, do Perequê-açu, trazendo um cacho de banana. No meio do cacho vinha uma cobra, mas ele não
sabia. Quando passou perto daquela gente toda olhando o galo, ele quis saber o
porquê. Logo as pessoas lhe disseram que a ave arrastava uma viga sobre a ponte
pra lá e pra cá. Ele olhou e viu outra coisa: o galo puxava furiosamente era
uma palha de esteira, bicava, largava, tornava a arrastar. Então, veja você: a
cobra, que estava no dormindo no cacho de banana quebrou o feitiço. As pessoas
estavam encantadas, viam uma coisa, mas era outra. Imediatamente o Cristino disse: ‘Vocês
estão cegos? Eu só tô vendo um galo brincando com uma palha de taboa, de
esteira velha!’. Na verdade, o dono do galo tinha poder, um magnetismo forte. Ele
fazia todo mundo enxergar uma coisa que não era. É, meu amigo, cobra quebra
feitiço. Aquilo confirmou o que os nossos velhos já diziam, não é mesmo?”.
Parabéns,
Dona Gertrudes! Valeu mais um ano e uma oportunidade de reencontrar toda essa gente
boa! Que todos nós tenhamos um bom ano próximo.
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