terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A CULTURA É O ESPÍRITO DE UM POVO


Antônio de Jesus em dois momentos históricos  (Arquivo Trindadeiros)

                Relendo notas, recordando de tantas pessoas e momentos que fizeram parte da minha breve existência,  sustento cada vez mais a importância de manter viva- memória para a nossa sobrevivência cultural. O saudoso Rubem Alves há muito tempo disse que “quem se lembra do passado com emoção nunca sentirá tédio do presente”. É a memória que sustenta a cultura. E a cultura é o espírito de um povo!
                Comecei assim, hoje, dando continuidade ao tema do livro Genocídio dos Caiçaras, da Priscila Siqueira. Parece que foi ontem que ela, o frei Valdir, o Zé Gil e outros encabeçaram, em Ubatuba, uma mobilização contra as investidas dos especuladores e exploradores que queriam desalojar os caiçaras de suas terras. Me lembro bem que, na Casa de Emaús, no Sertão da Quina, o movimento ecológico Pela Vida, Pela Paz em Defesa de Ubatuba, a Associação dos Produtores Rurais de Ubatuba, as pastorais da Igreja Católica e outras entidades de apoio nos inteiravam dos acontecimentos e encaminhavam atos concretos que pudessem barrar as injustiças no território caiçara. Além da questão da Dona Luzia Borges, no Rio Escuro, também nos angustiávamos pelos trindadeiros. Era o ano de 1980. Acompanhávamos tudo de perto. Colhíamos assinaturas para muitas etapas dessa luta. Os relatos nos comoviam. Tudo aquilo valeu muito! Era o espaço caiçara que sofria ataques! Mais tarde, a histórica vitória dos trindadeiros foi narrada pela Priscila:

                Uma solução considerada única na luta de terras no país foi alcançada em 5 de novembro de 1981, quando 71 famílias caiçaras moradoras em Trindade, praia situada a 28 quilômetros ao sul do centro urbano de Paraty, assinaram o título definitivo de sua propriedade. A assinatura do documento foi feita numa das salas da escola isolada de Trindade, na presença de posseiros, de seus advogados Jarbas Vasconcelos Penteado e de José Pascowitch Neto, dono da Cobrasinco, acompanhado de seus advogados.
                A Cobrasinco é uma empresa de capital nacional especializada em construções, que em junho de 1981 comprou por 3 milhões de dólares os títulos da terra da praia da Trindade, da ADELA – Atlantic Development Group for Latin America, holding composto por 227 empresas multinacionais, com sede em Luxemburgo. Durante mais de nove anos os caiçaras de Trindade resistiram a esta poderosa holding, testemunhando uma das mais belas histórias de luta dos oprimidos por seus direitos, pela posse de suas  terras e por sua dignidade de pessoas humanas.
                “Se tenho de morrer, que seja em minha terra”, afirmava Antônio de Jesus, pai de sete filhos que por três vezes foi expulso dos barracos que construía em Trindade. Durante muito tempo, Antônio, um dos líderes na luta de resistência dos caiçaras nesta praia, morou à beira de estradas, na praia e nas matas da Serra do Mar, recusando-se a abandonar as terras em que seus pais sempre plantaram. A luta dele foi igual  a de muitas famílias que, expulsas de suas casas, se embrenharam na mata, passando a viver em cavernas e cabanas improvisadas.

                Nem sempre o cotidiano dos trindadeiros foi de sofrimento. Quando a especulação imobiliária não havia chegado a este litoral, a vida era outra para esses posseiros antigos. O Cartório de Paraty atesta que há mais de 200 anos seus antepassados já moravam ali. Os mais velhos testemunham: “A gente não carecia de dinheiro, não; com um dia de caminhada a gente chegava a Paraty, onde trocava a farinha, a banana por querosene ou pelo que precisasse. Às vezes, um pano pra mulher fazer vestido”.

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