quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

SERESTEIROS CAIÇARAS

O primo Elias e seu cavaquinho de tantas cantorias (Arquivo JRS)


                Na minha infância, vivendo na pequena comunidade da Praia da Fortaleza, dentre muitas coisas prazerosas, havia os momentos musicais. Isso acontecia ao se findar o serão, quando um a um dos parentes iam se arrumando num círculo na areia do Porto da Capela. Era a nossa Roda Musical!  Jorginho tocava violão, Elias se animava no cavaquinho, Jovane ritmava no pandeiro, eu, batendo no agogô do Tio João, acho que “não fazia feio”. Tinha ainda o Toninho do Dário e seu bandolim, Tio Maneco Armiro e sua rabeca, Maurício da Praia Grande e mais um violão, Elizeu no atabaque, Ricardo no chocalho  e... Ah! Sempre chegava mais alguém!
                Eram rapazes, moças e gente mais idosa que ficavam nas belas noites enluaradas, até “tarde da noite” no dizer da Vovó Eugênia, entoando gostosas músicas aprendidas dos mais velhos ou pelas ondas sonoras dos rádios de pilhas. Por volta das 22:00 horas tudo já era silêncio naquele pedaço de chão, pois os corpos precisavam descansar para um outro dia que ia chegando com suas tarefas.
                Me inspirei para este texto após ler a descrição de um diálogo entre um bêbado seresteiro e um padre, na obra Incidente em Antares, de Érico Veríssimo:

                - Não repare, mas estou num porre medonho... mal me aguento nas pernas.
                - Por que não vai pra casa? Se quer, eu o acompanho...
                - Não, padre, muitas gracías. Vou esperar o nascer do dia. Quero fazer uma serenata pro  sol, já que fiz tantas pra lua. E vai ser a última da minha vida.
                - Por que a última?
                - Ora, com essas músicas loucas que andam por aí, não vale mais a pena um vivente cantar as modinhas de antigamente. Ninguém mais aprecia. E quer saber duma coisa? Vou enterrar meu violão.
                O padre sorriu:
                - Não faça isso. A gente não deve nunca enterrar as coisas que ama.

                Infelizmente, por falta de reflexões em torno da nossa identidade de caiçaras, influenciados pelos programas televisivos, por outras crenças e devido ao avanço dos  turistas sobre nossas terras, o nosso grupo se desmoronou. Ah! Que tristeza!

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A DONA ANA, OS PÊSSEGOS E AS INSPIRAÇÕES

Frutas do meu terreiro (Arquivo JRS)
                       Olá, Guadix! Que prazer tê-lo seguindo o blog!

                Há muito tempo um amigo, craque em escrever, disse que a inspiração bem que pode ser equivalente à empolgação. “Mas não é mesmo, Zé? Não acontece com você isso: de olhar uma imagem, de escutar um som, ler um fragmento etc. e logo querer escrever algo?”. “É... tá certo. É assim mesmo!”.
                Agora, por exemplo, vendo a fotografia de alguém colhendo pêssegos, veio-me à mente uma situação vivida há muito tempo, por volta de 1970, na Praia do Perequê-mirim. Foi assim:
                A minha família não morava muito longe da casa do Velho Pedro Cabral, no jundu.  Por isso que, de vez em quando, passávamos pelo seu terreiro bem do nosso jeito, cheio de árvores frutíferas e de galinhas. Eu, na verdade, sempre esperava um agrado da Dona Ana, sua esposa. Criança é assim, né? Principalmente em época de pêssego amadurecendo, eu passava mais frequentemente. É que a bondosa senhora tinha uma dedicação especial a essa fruta. Era impossível de não se encantar pela sua maravilhosa produção. Como ela conseguia aquela proeza?

                Hoje eu deduzo o “mistério”. Primeiro: toda a varredura do terreiro era para a cepa do pessegueiro; segundo: fazia poda e limpeza com muito esmero; terceiro: ensacava fruto por fruto desde pequenininho. Nesta tarefa, vale detalhar: cortava os panos, costurava (com ajuda da Luzita do Nilo) e ensacava com cuidado cada fruto, quando ainda parecia uma bolinha de veludo verde.
                Dias atrás, conversando com a Luzita, minha comadre, ela se recordou: “A Dona Ana cortava os panos e dividia comigo a tarefa da costura. Era à noite que eu fazia o trabalho. No dia seguinte a gente se encontrava e via quem tinha costurado mais sacos. Depois era só completar o trabalho, ou seja, acabar de costurar rente ao caule da fruta. Você acredita, Zezinho, que alguns cresciam tanto que  parecia querer rasgar o pano? Ah! Que delícia aqueles pêssegos vermelhos-alaranjados!”. Eu confesso que, ao menos em Ubatuba, nunca mais me deliciei com tão lindos e suculentos frutos.

                Era assim: o caiçara tinha a natureza como guia. Bastava observá-la e consultá-la para alcançar a razão de viver. Os frutos vinham como consequência de não se desviar dela e das suas  leis. Coisa boa, né?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A CULTURA É O ESPÍRITO DE UM POVO


Antônio de Jesus em dois momentos históricos  (Arquivo Trindadeiros)

                Relendo notas, recordando de tantas pessoas e momentos que fizeram parte da minha breve existência,  sustento cada vez mais a importância de manter viva- memória para a nossa sobrevivência cultural. O saudoso Rubem Alves há muito tempo disse que “quem se lembra do passado com emoção nunca sentirá tédio do presente”. É a memória que sustenta a cultura. E a cultura é o espírito de um povo!
                Comecei assim, hoje, dando continuidade ao tema do livro Genocídio dos Caiçaras, da Priscila Siqueira. Parece que foi ontem que ela, o frei Valdir, o Zé Gil e outros encabeçaram, em Ubatuba, uma mobilização contra as investidas dos especuladores e exploradores que queriam desalojar os caiçaras de suas terras. Me lembro bem que, na Casa de Emaús, no Sertão da Quina, o movimento ecológico Pela Vida, Pela Paz em Defesa de Ubatuba, a Associação dos Produtores Rurais de Ubatuba, as pastorais da Igreja Católica e outras entidades de apoio nos inteiravam dos acontecimentos e encaminhavam atos concretos que pudessem barrar as injustiças no território caiçara. Além da questão da Dona Luzia Borges, no Rio Escuro, também nos angustiávamos pelos trindadeiros. Era o ano de 1980. Acompanhávamos tudo de perto. Colhíamos assinaturas para muitas etapas dessa luta. Os relatos nos comoviam. Tudo aquilo valeu muito! Era o espaço caiçara que sofria ataques! Mais tarde, a histórica vitória dos trindadeiros foi narrada pela Priscila:

                Uma solução considerada única na luta de terras no país foi alcançada em 5 de novembro de 1981, quando 71 famílias caiçaras moradoras em Trindade, praia situada a 28 quilômetros ao sul do centro urbano de Paraty, assinaram o título definitivo de sua propriedade. A assinatura do documento foi feita numa das salas da escola isolada de Trindade, na presença de posseiros, de seus advogados Jarbas Vasconcelos Penteado e de José Pascowitch Neto, dono da Cobrasinco, acompanhado de seus advogados.
                A Cobrasinco é uma empresa de capital nacional especializada em construções, que em junho de 1981 comprou por 3 milhões de dólares os títulos da terra da praia da Trindade, da ADELA – Atlantic Development Group for Latin America, holding composto por 227 empresas multinacionais, com sede em Luxemburgo. Durante mais de nove anos os caiçaras de Trindade resistiram a esta poderosa holding, testemunhando uma das mais belas histórias de luta dos oprimidos por seus direitos, pela posse de suas  terras e por sua dignidade de pessoas humanas.
                “Se tenho de morrer, que seja em minha terra”, afirmava Antônio de Jesus, pai de sete filhos que por três vezes foi expulso dos barracos que construía em Trindade. Durante muito tempo, Antônio, um dos líderes na luta de resistência dos caiçaras nesta praia, morou à beira de estradas, na praia e nas matas da Serra do Mar, recusando-se a abandonar as terras em que seus pais sempre plantaram. A luta dele foi igual  a de muitas famílias que, expulsas de suas casas, se embrenharam na mata, passando a viver em cavernas e cabanas improvisadas.

                Nem sempre o cotidiano dos trindadeiros foi de sofrimento. Quando a especulação imobiliária não havia chegado a este litoral, a vida era outra para esses posseiros antigos. O Cartório de Paraty atesta que há mais de 200 anos seus antepassados já moravam ali. Os mais velhos testemunham: “A gente não carecia de dinheiro, não; com um dia de caminhada a gente chegava a Paraty, onde trocava a farinha, a banana por querosene ou pelo que precisasse. Às vezes, um pano pra mulher fazer vestido”.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

EM ALGUM LUGAR... A LUTA CONTINUA!

A união e a solidariedade de tanta gente resultou na vitória (Arquivo Trindadeiros)
                             Olá, Doni! Seja bem-vindo ao blog!

               O loteamento da Estufa, em Ubatuba, aprovado pela prefeitura em 1952, por determinação do investidor Licurgo Querido, tem o nome de Gurilândia Caiçara. Só aos poucos, com o crescimento da cidade, esse lugar foi se consolidando de fato, com ruas que receberam nomes de times de futebol. Num apêndice, divisando com os herdeiros do Marigny, surgiu o loteamento denominado Parque Paris, onde os pioneiros se estabeleceram em terrenos de características muito próximas de brejo. Prova disso você constata a cada chuva forte, com moradores passando agruras, ficando isolados e tendo perdas materiais. Ah! Nessas condições, em casas de blocos bem características, foram trazidos os caiçaras da Praia da Trindade e adjacências, por ocasião do êxodo forçado, envolvendo interesses multinacionais! Era o início da década de 1980 quando esses caiçaras foram enxotados daquele paraíso do extremo sul fluminense.
               Agora, me recordando da jornalista Priscila Siqueira, do frei Valdir Oswaldo e de tantos jovens que se engajaram na causa dos trindadeiros, faço questão de celebrar a vitória dos caiçaras. Era muita gente graúda contra os roceiros-pescadores! Veja esta passagem do livro da Priscila (Genocídio caiçara):
               “Em 1977, numa declaração à imprensa, John Sillers, então representante da empresa na praia, afirmava que ‘a vastidão da área propiciava a ação de grileiros’. Devido a isso foram enviados homens armados a Trindade, ‘armamento convencional como revólveres, rifles e metralhadoras’. Sillers dizia ter procurado acordo com os trindadeiros, mas não admitia terceiros nas posses’. Um dos terceiros a que se referia era o senador Severo Fagundes Gomes, que em 1973, através de Ivete Maciel, conhecida neste litoral pela alcunha de ‘Loba do Mar’, adquire as praias de Baixo, Cepilho, de Fora e Cachadaço, revendendo-as posteriormente”. A afirmação dos jagunços e do representante era: “contra a companhia nada se pode fazer”. No entanto, a luta valeu! A companhia perdeu! E “a maioria dos caiçaras que se mudou para o Parque Paris, na periferia de Ubatuba, voltou para Trindade. A companhia não lhes forneceu a escritura definitiva de suas casas e muitas delas apresentavam péssimas condições desde o início da construção”. O que vem a seguir se passou nesse loteamento, trinta e cinco anos depois da saga dos trindadeiros.
               Dias atrás, andando nas cercanias procurando localizar a nova moradia do primo Zé Roberto, avistei uma quadra tomada por mato alto. No meio de tanto capim , avistei um banco de concreto. Deduzi: “Isto é uma praça! Mas assim?”.
               Pois é! Lá está uma mostra muito negativa de civilidade! Nem as pessoas, nem a prefeitura cuidam do espaço reservado como praça. Isso fez com que eu procurasse uma passagem no livro Incidente em Antares, de Érico Veríssimo:

               “Como toda cidade pequena que se preza, Antares tem a sua rua do Comércio e a sua Voluntários da Pátria. E duas praças, uma delas a ‘enteada’ da família, a gata borralheira, fica na extremidade norte, é malcuidada, cercada de casas velhas e baixas, o chão de terra entregue às formigas, às urtigas e à guanxumas”.

                              Bem... pode ser que a nossa cidade tenha muitas outras ‘enteadas’ em condições bem mais precárias!

sábado, 14 de fevereiro de 2015

AO PRESENTE... O PASSADO

Ubatuba Hotel - (Arquivo Edson da Silva)

               Ao me deparar com gente encantada pela tecnologia, mas aparentando um nível muito pobre de reflexão, me recordo de um filme antigo – 2001: uma odisseia no espaço. Quando assisti esta interessante produção, era o ano de 1978, no antigo Cine Iperoig, em Ubatuba. 

               O Cine Iperoig ficava ali, na Praça da Matriz, bem onde se construiu um Centro do Professorado que se converteu num teatro encarangado, ou seja, que não é de fato. Dinheiro do contribuinte desperdiçado! Tudo isso, parafraseando o polêmico Rochinha, “porque nossos políticos têm a visão para apenas quatro anos”. Outrora, era naquele lugar que ficava o Hotel Ubatuba, onde Idalina Graça e Albino se sustentavam. Mais tarde, por risco de desabamento no sobrado colonial que ocupavam, se mudaram para perto do Casarão do Porto, onde hoje se localiza um agradável restaurante. Aos mais novos: Idalina foi a primeira escritora daqui. Vale a pena ler Terra Tamoia e Bom dia Ubatuba. Foi no hotel deles que chegaram os primeiros turistas vindos pela Estrada de Taubaté. Dentre muitos, Idalina cita o escritor Monteiro Lobato.

               Após este volteio, retorno ao filme: a imagem que me marcou demais foi quando o macaco, sem querer, transforma um osso em ferramenta. Ele percebe que a sua força é aumentada com isso. Não me lembro bem do contexto, mas num determinado momento ele arremessa o osso para cima. Nem sei se era para acertar alguma coisa. Quando o tal osso começa a cair, no lugar da sua imagem aparece uma nave espacial. Já é uma! O diretor Stanley Kubrick foi muito feliz nessa escolha! Afinal, é inegável que toda a sofisticação tecnológica que continuamos a alcançar teve início com ferramentas bem simples. Foi quando viramos humanos!

               E agora, nessa massificação cultural, quem pensa em sair do lugar-comum? Ou melhor, quem se percebe nesse lugar? Enfim, o desafio é redescobrir a si mesmo, conhecer o mundo e fazer interferências salutares.

               Idalina Graça, essa caiçara que nos legou valorosos registros da nossa cultura caiçara, indicou, em 1967, o seguinte:

               “A verdade é que, se os homens de hoje lutam mais, em compensação amam muito menos o seu próximo. Quero crer que nunca o ser humano necessitou tanto de ajuda e amor como agora”.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

EM TEMPO DE CHUVA

Muro da escola "Deolindo" - Projeto da Soninha (Arquivo JRS)

                  Olá, Fabíola Moraes! Seja bem-vinda!

               Hoje em dia, após um ou dois dias de chuva, é comum escutar um monte de gente maldizendo: “Só chove nesta terra”, “Porcaria de tempo”, “Quando a gente pensa em aproveitar o tempo, vem essa chuva chata” etc.
               Quando eu era criança, há meio século, nesta minha terra (Ubatuba) chovia demais. Alguns diziam que esta cidade ocupava o segundo lugar nos índices pluviométricos deste país. Somente era superado pelo município de São Gabriel da Cachoeira, na região amazônica. Ou seja, só este lugar superava a nossa cidade caiçara.
               Ainda lembro bem de um ano (1975), onde a gente desanimou de ver tanta chuva a nos dificultar nas visitas aos parentes, de brincar com outras crianças e de ver as novidades nas casas dos outros e no centro da cidade. Bem mais tarde, em 1997, visitando o Dito Chiéus, o responsável pelos três registros meteorológicos diários na Estação Experimental do Horto Florestal, tive a oportunidade de comprovar o desânimo daquele ano distante. “Dito, por favor, é possível consultar os registros de outros anos?”. “É sim, Zé, Qual você quer?”. Ao dizer o ano, logo ele me aparece com um caderno de registros amarelado. “Meu Deus!”.
               Lá estava a prova: em 1975 houve registro de precipitação de chuva em trezentos dias. É mole? Quer dizer que em apenas sessenta e cinco dias não veio água do céu. Então tinha fundamento a cidade ser apelidada  de Ubachuva! Hoje não é mais assim.

               Como consequência desse sistema chuvoso, em respeito à força das águas, as margens dos rios eram respeitadas. Também as várzeas, transbordantes nas enchentes, ficavam intocadas. Não se ouvia falar de gente desalojada devido aos fortes temporais. O que vemos hoje são as ocupações dos espaços pertencentes aos rios e que se construíram pelos milênios. Também vemos os morros ganhando outras feições. É preocupante esse quadro! O que será dessa cidade, da cultura que aqui se gerou se valendo dos recursos naturais?

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CONTAR HISTÓRIAS É RESISTIR

                      
A vida caiçara não era complicada  (Arquivo Roberto Ferrero)

           Ainda bem que alguém fez este trabalho: registrar mais um pouco da nossa gente, da tradição oral! Mais gente tem de fazer isso! Cada vida caiçara é uma experiência inigualável! Nossos registros fazem parte da resistência! Parabéns, Roberto! É fascinante sim!


  •             Quando em maio de 2014 aceitei o pedido da Sra. Noêmia para ajudá-la a preservar as suas memórias, não poderia imaginar que eu estava embarcando numa história tão cheia de detalhes e nuances de uma Ubatuba esquecida. 
  •       Um caderno surrado encapado com plástico azul escondia um verdadeiro tesouro! Como eu gosto de imaginar aquela Barra Seca antiga, a travessia do rio Indaiá... ela me contou que até hoje, quando passa pela ponte de Perequê-Açu, costuma olhar uma determinada pedra, que é o "termômetro" que mede a altura da maré que ela enfrentaria mais a frente. Reflexos do tempo que em atravessar o Indaiá era uma aventura! 
  •        Fico imensamente feliz de ter conhecido essa mulher. Decerto que ela tem o poder de cativar a todos por onde passa. Não é a toa, que quando moça, enquanto ajudava o Seu Filhinho na datilografia de seus causos, o boticário homenageou-a com a Lenda dos Marinhos, da qual ela descende diretamente. A última frase da história foi composta especialmente e especificamente referindo-se a ela! Compartilho com vocês um trecho dessa história.

  •            "Imaginem que eu já vim ao mundo lutando para sobreviver. Meus pais, tios e avós sempre tiveram por mim uma preocupação exacerbada, porque não se esqueciam nunca de como havia sido o meu nascimento e a minha infância e não se cansavam de contar essa história, onde também a minha mãe figurava como uma grande heroína. 

  •             Eu seria a primeira filha do casal, a primeira neta dos meus avós paternos, a primeira sobrinha dos irmãos de meu pai e a expectativa em torno do meu nascimento era grande. A gravidez da minha mãe correu normalmente, mas na época não se tinha médicos na cidade, e portanto minha mãe nunca fez um único exame pré-natal. Os partos naquela época eram feitos por uma única parteira, a saudosa dona Filismina, que residia no Perequê-Açu. Meus pais e familiares residiam na Barra Seca, distante a mais de três quilômetros da cidade, separados pelo rio Indaiá e sobre o qual atravessavam numa pequena balsa – único meio de transporte naquelas bandas. 
  •          Na manhã do dia vinte e sete de julho de 1947, a minha mãe amanheceu sentindo as primeiras dores do parto. Aconselhada pela vovó Maria, não foi a roça naquele dia e ficou em casa andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Não tinha experiência nenhuma (era o primeiro filho) e apenas ouvia os conselhos da vovó Maria, que tentava lhe passar coragem e orientava para que fizesse repouso.
  •           Ao entardecer, de volta a casa depois de um extenuante dia de trabalho na roça da família, o papai a encontrou aflita e dizendo não aguentar mais as dores. Reuniu-se a família e decidiram que alguém deveria ir até o Perequê-Açu buscar a dona Filismina. O tio Badeco ficou encarregado da missão e não tardou muito para que ele estivesse de volta trazendo a parteira e os seus apetrechos de trabalho. A partir daí, a noite foi de vigília para todos. No quarto, apenas a mamãe e a parteira tentando fazer o que seu trabalho; na grande sala, a luz das lamparinas, os demais se distraíam conversando e fazendo cada qual os seus afazeres. A vovó e a tia Baica terminavam as últimas camisinhas do neném, carinhosamente costuradas a mão. O vovô Sebastião Honório, o tio Badeco, tio Orlando e tio Neco se revezavam no trabalho de reformar o tresmalho que apresentava enormes buracos ao longo das malhas. O papai – este, coitado – não tinha cabeça para fazer nada e não saía da porta do quarto para saber o que estava acontecendo. 
  •          A manhã foi chegando de mansinho e do galinheiro vinha o alegre cantar do galo anunciando que um novo dia começava. Dentro de pouco tempo, a rústica mesa de madeira já estava arrumada, o café fumegando no bule e na grande cuia de cabaça também fumegavam os pedaços de mandioca doce e cará colhidos no dia anterior na roça da família. Após o café, os homens e as mulheres foram para a vida diária da roça – uns para carpir a mandioca, outros o canavial e o bananal, e apenas o papai e a vovó ficaram em casa para qualquer imprevisto. Mais um dia se passou e a mamãe continuava sob os cuidados da parteira, sem nenhuma definição. 
          Quando os últimos raios de sol se esconderam no poente, homens e mulheres, cansados, voltavam para casa para um merecido descanso. Banho tomado, roupas limpas sobre o corpo cansado, sentaram-se a mesa para o jantar, que prometia ser uma festa. Da cozinha vinha o cheiro delicioso de um Azul Marinho caprichosamente preparado pela vovó, com muito coentro, salsa, alfavaca, banana nanica bem gorda e verdinha; e sob o caldo azulado boiavam aqui e ali grossas postas de corvina. Sobre as brasas afastadas para um lado do grande fogão a lenha, ardiam outros tantos pedaços de corvina, cujo aroma se misturava com o primeiro e seria servido logo em seguida acompanhado de café de cana e farinha de mandioca. Apenas a mamãe não pôde servir-se daquele “manjar”, pois a parteira achou que ela devia comer alguma coisa mais leve e assim orientou a vovó para que fizesse uma canja de galinha. E naquela noite sobraria um lugar no poleiro do galinheiro, pois a vovó havia se encarregado de matar e preparar uma suculenta canja com uma bonita e gorda galinha carijó ainda na flor da idade. E o jantar daquela noite não foi diferente dos anteriores, a não ser por um lugar a mais na mesa, onde se sentou a dona Filismina, que não se cansava de elogiar a gostosa comida entre um e outro comentário que fazia sobre outros tantos jantares dos quais já havia participado em outras casas por aquelas bandas, cumprindo a mesma missão.
            A noite prometia ser longa, pois a mamãe continuava com as dores e por mais que a parteira se esforçasse, não conseguia fazer com que aquela tão esperada criança viesse ao mundo. Chegou a manhã do dia 29 com o alegre cantar do galo e sinfonia de pintassilgos e sabiás sobre as goiabeiras e laranjeiras do quintal. A dona Filismina, assomando a porta do quarto, deu-se por vencida e, chamando o papai de um lado disse que era preciso chamar um médico com urgência, pois não tinha nada mais que ela pudesse fazer. Num abrir e piscar de olhos, o papai já estava pronto e acompanhado do tio Badeco partiam para a cidade em busca do único médico que ali residia e dava atendimento na Santa Casa. Este não se fez de rogado: num tempo recorde já havia preparado os materiais de que necessitaria e se pôs a caminho ao lado do papai e do tio Badeco. Ao chegar na prainha do Matarazzo, não conseguiu disfarçar o susto e o medo ao perceber que faria a viagem de canoa – uma bonita canoa de guaporubu, feita pelas mãos habilidosas do João Balbina com a qual o tio Badeco e o papai haviam feito a travessia do Boqueirão entre a Barra Seca e a cidade e com a qual fariam a viagem de volta. Passada a primeira impressão, o amor pela profissão superou o medo e logo estavam os três singrando as águas azuis daquele mar que, naquela manhã, parecia mais um rio, tão calmas estavam as suas águas.
  •         A viagem correu tranquila e em menos de uma hora o médico já estava ao lado de minha mãe fazendo os primeiros exames. Não demorou muito para que ele reunisse a família e com a voz embargada pela emoção comunicou a todos que a situação era complicada e ele pouco podia fazer, pois o caso requeria uma cesariana, mas a falta de recursos, a distância, as condições da viagem e o estado da mamãe seria um risco muito grande para leva-la a cidade. Ele tentaria um fórceps e grande preocupação era salvar a vida de minha mãe, que já se encontrava sem forças. Para a minha vida ele não dava nenhuma garantia, pois eu já apresentava sinais de fraqueza, dado o grande tempo de espera. A notícia emudeceu a todos. As mulheres, sempre religiosas e devotas, passaram a invocar cada qual o seu santo de devoção. E o nosso Deus, maravilhoso que é, o único capaz de solucionar todo e qualquer problema, ouviu aquelas preces e operou o grande milagre. Não demorou muito para que se ouvisse na sala o tímido choro daquela criança que rompia a barreira do sofrimento e chegava ao mundo para fazer a alegria dos seus pais, tios e avós, que naquele momento juntavam aquele choro um sorriso alegre, banhado de lágrimas – misto de alívio e contentamento. E naquele dia, mais um lugar ficou vazio no poleiro, pois uma gorda galinha foi sacrificada e cozida com muitas batatas, acompanhada de um suculento feijão com farinha seca. Foi o almoço que marcou o primeiro dia do meu nascimento, que ocorreu exatamente as onze horas do dia vinte e nove de julho de 1947."

  •          Fascinante, não?

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

NOSSAS MATAS TÊM MAIS VIDA

           
Caraguatá e juá vermelho no jundu do Cedro (Arquivo JRS)
                 Achei legal este texto do Roberto Ferrero, a partir das observações de nossos caminhos e quintais de um lugar (Praia Grande do Bonete) que continua com características caiçaras. Sem dúvida alguma que, acabando os espaços apropriados, também  a vegetação típica, que tanto tempo levou para se adaptar, desaparecerá. Há ainda as questões da modernidade, com a moda de ter o quintal recoberto com um piso qualquer (cimentado, cerâmica...), excluindo as plantas, sobretudo as frutíferas que tanto nos recompensam. Ah! Sem dúvida alguma que os cambucás e bacuparis ele notou no terreno da Tia Nair! É impossível não notá-los num dos caminhos daquela praia!
  •       Como é diversificada a vegetação da restinga! É difícil de se avançar por ela. A restinga é a vegetação que se estende da beira do mar até o pé do morro, incluindo o nosso querido jundu! Não é difícil de imaginar porque ela já está quase extinta. Pelo mesmo motivo, o caiçara também está quase extinto. Arrelá, a área foi tomada!
  •          Com a restinga sumiu também um número grande de frutos, dos quais poucos se lembram. Acompanhando as festividades de São Sebastião no Bonete, encontrei o Bacupari, o Maracujá Azedo e o Cambucá. Encontrei pés de Cabeludinha e Grumixama. Como é bom ver que em algum canto do nosso território elas ainda são respeitadas!
        O Manacaru é um dos que causam mais espanto. Na beira do mar, saindo de um cacto e coroando o jundu. Dos coquinhos eu não consigo nem me lembrar da quantidade que tem. Alguns devem ser consumidos verdolengos, outros maduros. Em geral, acho que todos se aproveitam. Existem as nozes também, em menor número. E tem uma porção deles que são obscuras, que pouca gente se recorda como a Pitangatuba, a Sapiranga e a Ameixinha da Mata. Tenho tirado mudas regularmente dessas frutas e presenteando quem goste do assunto e se disponha a cultivá-las. Abaixo vou listar alguma delas com seus respectivos nomes em latim. Espero que seja útil e possa ajudar a aprofundar a pesquisa de vocês!
  • Cambuci - Campomanesia phaea.
  • Grumixama - Eugenia brasiliensis.
  • Grumixama-Mirim - Eugenia itaguahiensis (lembra a grumixama, mas da no pé da areia em arbusto).
  • Ameixinha da Mata - Eugenia candolleana.
  • Sapiranga ou Araça-Piranga - Eugenia multicostata (reconhece-se pelo caule vermelho, lisinho e tortuoso, muito bonito!).
  • Pitangatuba - Eugenia multicostata (Uma pitangona amarela, com gosto meio de uvaia. Um arbusto).
  • Uvaia - Eugenia pyriformis.
  • Laranjinha do mato - Eugenia speciosa (fruto bem bonito mas bem sem graça).
  • Pitanga - Eugenia uniflora (acho que é a única que goza de todo respeito que merece).
  • Cabeludinha - Myrciaria glazioviana (tem que rolar na mão para tirar todos os pelinhos antes de comer).
  • Cambucá - Plinia edulis.
  • Araçá - Psidium cattleianum (tem do amarelo e do vermelho. Eu prefiro o amarelo).
  • Maracujá Doce - Passiflora alata (parece uma mamão papaya, lisinho e alongado em relação ao maracujá comercial. Ele é bem doce).
  • Maracujá Roxo - Passiflora edulis (lindo, pequenininho e redondinho).
  • Morango Silvestre - Rubus rosifolius.
  • Amora do Mato - Rubus sellowii (um cacho de pequenas amorinhas. É uma trepadeira que aparece em capoeiras no mato. Acho que só vi nos morros, nunca na restinga).
  • Araticum da Praia - Annona glabra (é dessas inúmeras frutas do conde, condessa, araticum que tem. Os frutos são lisos, meio docinhos.. acho que nunca vi ninguém cultivar ele. Não é muito bom e é bem frequente. Na trilha do Bonete encontrei varios deles todos com frutos).
  • Gravatá - Bromelia antiacantha (bromélia grande do jundu. dizem ser a fruta que nomeia a cidade de Caraguatatuba).
  • Manacaru - Cereus jamacaru (um dos frutos mais bonitos que conheço).
  • Bacupari - Garcinia sp ( tem muitos frutos amarelinhos com o nome bacupari. Nunca consegui identificar direito a espécie, mas com certeza todos eles são do gênero botânico Garcinia).
  • Castanha da praia - Bombacopsis glabra (quem eu já vi escrever sobre as propriedades dessa é o Peter Santos Németh, no blog canoadepau.blogspot).
Agora os coquinhos eu realmente não domino. São muitos!



domingo, 1 de fevereiro de 2015

ECOS DA FALA CAIÇARA


Secagem de peixe no terreiro (Foto de Nícia Guerriero, conforme informação de Túlio Parodi).


Na página do amigo Pedro Caetano, de Caraguatatuba, onde foi reproduzido o depoimento do saudoso Pedro Cabral Barbosa (texto logo abaixo, na sequência), já publicado a um certo tempo por mim, li este comentário e achei legal dar a conhecer a mais gente. Boa leitura!

Coisas de Caiçara Conheci muito o Sr Pedro Cabral do Perequê-Mirim. Pai do Miguel Cabral, Nilo Cabral e Aurora Cabral. Não sei se tinha outros filhos. Aurora foi casada com Benedito Ciro dos Santos, muito conhecido no litoral norte, pois fez parte do lendário time do XV de Novembro de Caraguatatuba, junto com Xixo, Justo Arouca, João Paulo, Zé Pinto, entre outros. Depois trabalhou no DER, onde desenvolveu,paralelamente aos deveres de funcionário daquela autarquia, a parte esportiva, montando o Clube de futebol do DER, -ASDER-, em Ubatuba, que participou do primeiro campeonato de futebol daquela cidade em 1964 ou 1965, se não estou enganado. Em relação ao fato narrado, tudo perfeito. Claro que até em função da minha idade, posso falar algo tendo como referência inicial a revolta do presos, que aconteceu em junho ou julho de 1952. Das pessoas mencionadas, Francisco Maciel Leite, pai do Altino Maciel, homem de fala mansa, realmente ganhou muito dinheiro com a abertura da Colônia correcional da Ilha das Palmas. Era assim que se chamava o Presídio da Ilha Anchieta. João Glorioso, um dos maiores pescadores que conheci. Homem de muita garra. Dizia ser filho bastardo de Theotino Tibiriçá Pimenta. Realmente tinha muita tralha de rede de tainha em seu rancho no Saco da Ribeira. Sua filha, Dona Esmerânia, ainda é viva. Conheci tambem o Cabo Xavier, que ficou tomando conta da Ilha, pós revolta. O peixe que seu Pedro Cabral fala, "troiamo de montão, teve cardume, que de tão grande...", tenho quase certeza,- embora tenham outros peixes de "meia-água", tais como, carapau, enchova, cavala, que fazem o mesmo escarcéu no escuro-, que o peixe a que seu Pedro Cabral faz referência, que precisou emendar a rede dele do Seu João Glorioso e do Seu Cristóvão das Toninhas, era tainha. Entrava muita do Ilhote de Sul pra dentro da Enseada. Um abraço grande em todos caiçaras


FALA CAIÇARA....Lembranças dos tempos d’antes

            “Bem piquininho eu já ia com o papai pescá. E não tinha percisão de í muito longe pra mode pegá pexe. A maió lonjura que trago na lembrança é da Ilha Anchieta, da época que ainda se chamava de Ilha dos Porcos, quando nem tinha serventia de prisão. Não sei quanta casa egistia, mais era bastante. Moravam iguar os do Búzo, sem medo de morro caí na cabeça. Arguma casa já era de telha.
            Morava muita gente naquelas banda. Os mais velho ripitia sempre que vivê em ilha tinha arguns ganho. Lá não tinha saúba pra mode istragá mandioca. A terra era boa e dava de tudo. Purisso não era desperdiçada nenhuma badeja. Me alembro que de longe se avistava as coivara.
            Pexe era uma fartura pra tudo que é lado. A maió vantage de sê moradô da ilha é vê direto barco grande passando, apoitando no largo, comprando produto que os moradô oferecia. Tudo se negociava: daquilo que sobejava e daquilo que era só pra negociá mesmo.
            Direto, em quarquer casa, tinha farinha que pudia sê negociada. Também se curtivava pimenta, cará, banana... Mais o que os barco mais comprava mesmo era todo o óleo de caçoa que tivesse: o tanto que tirasse era o tanto que vendia. Dizia que era usado em máquina pra mode não gastá peça.
            A mulherada também se esmerava na feitura de chapéu; se vendia toda trança de parma de brejaúba que tivesse feita. Desse modo elas negociava com peça de fazenda e mais coisa que carecesse.
            Dependendo da época, também tinha pra negociá: goiaba, araçá, bacate, cambucá, jaca, jabuticaba, grumixama, coco brejaúba, indaiá e pindoba, manacaru, laranja... Balaio, tipití, penera também tinha aceitação. Sempre sarvava situação.
            O que mais se vendia era pexe seco. Não me sai da lembrança o terrero de cada moradô com seu jirau inteirinho de pexe escalado se dorando, depois empilhado em grandes balaios entremeado de folha de bananeira seca. Isso carecia fazê pra mode mantê sempre arejado.
            Adespois, veio o governo e construiu aquilo tudo lá. E veio preso, muito preso. Daqui do Perequê, da Enseada, da Ribeira e doutros lugá tinha gente que trabalhava lá. O Chico Cruz, irmão do Antonio Julhião foi um deles, também tem o Bito Góis, o Rodorfo Barreto e tantos outro que é bem vivo, que você conhece. O Macié, do canto da Enseada, atendia a Ilha, fornecia mantimento, ganhô dinheiro com preso.
            Adespois veio a revorta que assustô todo mundo. O mundaréu de sordado surgiu da noite pro dia. Diz que um tantão de preso morreu, mais também teve falecido entre gente que trabalhava lá. Eu não sei o certo; nunca fui entremetido.    Logo acabaro com tudo. Agora só o Xavié toma conta daquilo; mais tudo é vazio, lugá mar-assombrado.
            Nesse tempo todo nóis sempre pescamo em vorta da ilha, troiamo de montão. Teve cardume que, de tão grande, foi perciso emendá a minha rede, a do João Glorioso e a do Cristóvão das Estoninhas. Era quantia e mais quantia de milheiro. Era muita fartura.”
Depoimento colhido de Pedro Cabral Barbosa (Perequê Mirim, 1970)
Texto: José Ronaldo