terça-feira, 30 de dezembro de 2014

REFLEXÃO DE FIM DE ANO


Galhetas, na divisa com Caraguatatuba      (Arquivo JRS)
      Diretamente da Praia da Enseada,  Roberto Ferrero, um caiçara da nova geração, neto do Zé Henrique e bisneto do Tio Rita, nos dá esta gostosa reflexão no encerramento de 2014. Que legal! Que venham muitas outras junto com um feliz 2015 para todos!

        Curioso, às vezes uma imagem nos transporta para outro lugar. Perdido entre memórias e causos que muitas vezes se aproximam do realismo fantástico, pondero. Poderiam essas coisas todas terem acontecido? Não importa, embarquem comigo, se aconcheguem no bojo dessa história que eu vou firme no remo. E se segura que vamos se alagá. Cuia na mão!

    Achei uma foto do meu amigo Zezeca tirada num dia de mariscada na Praia das Conchas. Carregávamos o tachão, uma caixinha de fósforos e um punhado de limão. Era basicamente o que precisávamos. Outros apetrechos eram um balaio, tênis velho e uma faca de manteiga cortada na metade. Tirávamos só os maiores, escolhidos a dedo. Era esse o costume do caiçara, e era assim que aprendíamos. Eu gostava de fazer a limpeza dos mariscos que iam sendo descarregados nos buracos naturalmente escavados nas lajes. Quantas horas eu fiquei curvado sobre aquela vida toda, separando pequenos santolas, cracas, saguaritás, guaiás, nereis, lebres do mar, anêmonas, pindás e piranjitas. Às vezes penso se foi tudo isso que me levou, anos mais tarde, a escolher o curso de Ciências Biológicas. Seja como for, decerto tenho: o Zezeca foi o meu primeiro professor. Com ele aprendi um punhado de coisas que levo comigo até hoje. Assobiar para guaiá, abacaxi pra guaiamum, picaré na lua escura, buraquinho da pegoava, cruzar picos para achar pesqueiros e decifrar os ventos. O que começa quente e vem pelo espelho d’água escalando as canelas, anuncia o Noroeste. Ele sempre me dizia, que o Noroeste não deixa a Mãe morrer de sede. Bordão Caiçara que poucos se lembram. Como são poucos os que se lembram que não se usa enxada para tirar marisco.

         Quando não era na Praia das Conchas era na Laje do Tapiá que buscávamos o mexilhão. A movimentação começava cedo. Eu e meu irmão éramos arrancados da cama pela minha tia Tuca e meu primo Cleiton. Meus pais já estavam preparando o barco, pequenos lanches e água. Logo a chatinha já estava deixando nossa casa na Praia da Enseada rumo ao boqueirão. Passávamos pelo rancho do Parú onde o pessoal também estava se arrumando pra pesca, saudávamos-nos. Todas pequenas baias até o boqueirão tinham nomes e não me recordo mais deles. Frequentemente as pedras também o tinham assim como as lajes que adentravam no mar. Como é detalhado o mapa do território caiçara! Passávamos o cerco flutuante. Eu gostava de ir na proa, gostava de alertar sobre tocos na água que poderiam comprometer a viagem. Da proa eu avistava também uma enorme canoa a motor vinda da Ilha Anchieta. Não dá para esquecer o póc póc póc do motor. Ouvia-se de longe. Na canoa, todos sentados em fila indiana, vinham uns 4 ou 5. De primeira vista eu conseguia distinguir, com sua cabeleira branca amarelada, o Sr. Joel da Praia do Sul!!! Quem eram os outros? O Betum? O povo da Praia do Sul...Quando atravessávamos o boqueirão, na Ponta do Espia, começavam a aparecer as toninhas. Quantas delas correndo atrás de cardumes de sardinhas e manjubas. Era uma festa de se ver, meu pai desacelerava o motor e ficávamos a admirar o trabalho coordenado de caça delas.  Tímidas, logo iam embora. Diferente dos golfinhos, que nos acompanhavam algumas vezes por um determinado tempo. Já na Laje do Tapiá, tirávamos mariscos no mergulho. Eu ficava aflito com o tempo que meu pai conseguia segurar a respiração. Quase sempre voltava com um punhado na mão. Meu primo fazia linhadas para eu pescar enquanto catavam o marisco. A isca era sempre saguaritá. Não tinha muito sucesso na pescaria, acho que a movimentação toda afastava os peixes. Lembro-me de Garoupinhas, Badejos e Sororocas. Todos miudinhos, voltavam sempre para o mar. Ah, tinha um vermelho também. Olho grande e um espinho nas guelras que sempre me furava. E o Budião, profissional de roubar isca. O Budião dava na mesma época que a tainha. Na mesma época que o João Paru colocava rede de camarão na frente da minha casa. Meados de Junho-Julho. E eram dois os sons desse tempo.  O primeiro era um TOC TOC TOC rápido e seco. Era o João macetando os siris na borda da canoa para tira-los da rede de camarão. O segundo era um TCHUF abafado. Seguido de outro após alguns segundos, e outro e outro. Era a pedrada na água no cerco à Troia, que era o jeito de capturar Tainhas e Paratis. Graves sons do mundo Caiçara.

       De pesca de Tainha eu nunca participei. Sempre observei a movimentação das canoas fechando cerco, rodeando cardume, procurando... mas nunca participei. Me restava perguntar para o Zezeca. Como faziam para achar o cardume? Ele me explicava que sempre tinha alguém, o Espia, que subia nos morros e pedras altas para avistar o cardume. O Grosso da Água denunciava a sua presença. O Espia mandava sinal para os pescadores. Como eu não podia participar da pesca, quis participar da Espia.Ele me levou num final de tarde. O caminho era o mesmo que levava à Praia de Fora, mas a certa altura pegamos uma saída lateral da trilha principal. Chegamos a um ponto alto, onde podíamos observar quase toda a Baia do Flamengo e a Ilha do Mar Virado. Sentamos ali naquele pequeno descampado e esperamos, eu sem saber ao certo o que esperar. Ele me apontou a Ilha do Mar virado e me contou do Boitatá, uma luz esverdeada de forma circular que subia da Ilha e rondava até quase o continente, assustando toda a gente. Era isso que eu estava esperando??? Meu coração batia em todas minhas artérias e veias enquanto meu olho não desgrudava da Ilha. Mas não era. Esperávamos um cardume de Tainhas. A luz do dia já estava acabando e começávamos a desistir de ver um cardume quando, da direção da Praia do Flamenguinho, pareceu surgir uma modificação na superfície da -água. Eram elas! Um enorme cardume de tainhas fazendo algazarra na superfície do mar. Fiquei ali maravilhado com o espetáculo mas infelizmente a tarde foi caindo e o Zezeca achou por bem voltarmos. E assim foi. Perdemos um pouco o tempo e a escuridão tomou conta do caminho. Foi difícil, avançamos vagarosamente por essa saída lateral da trilha da Praia de Fora. Quando alcançamos a trilha propriamente dita, foi mais tranquilo e seguimos bem. Pouco antes de um descampado onde hoje tem um pé de Ingá, tinha uma abertura na mata e conseguíamos ver, não tão do alto, mas ainda assim do alto, um pedaço da Baia do Flamengo. Paramos ali para tentar adivinhar onde eram nossas casas (naquela época não tinha a iluminação pública na Praia da Enseada). Pedi para ficarmos um pouco ali, que eu queria ver se não aparecia a tal da luz misteriosa na Ilha do Mar Virado. E ficamos. Olhando atentamente toda aquela imensidão escura, qual não foi a minha surpresa quando comecei a ver clarões esverdeados-azulados no mar. Seria ela?  Era isso? Não era!? Uma mancha luminosa que se modificava e se transportava pelo mar. As vezes sumia  para reaparecer novamente nas imediações de onde havia sumido. Uma hora a mancha dividiu-se em duas, que andaram por um tempo para lados opostos mas logo se juntaram novamente. Tinha horas que brilhava tanto!!! O Zezeca me falou que só podia ser o cardume de Tainha agitando a água e fazendo brilhar a Noctiluca, um pequeno ser vivo (Dinoflagelado) que emite luz quando é estimulado. Que espetáculo foi aquele cardume brilhante de Tainha! Ficamos observado aquela dança de luzes no mar completamente calados até ela desaparecer do nosso campo de visão. Até hoje eu penso nessa noite. Naquelas luzes. Uma espécie de aurora boreal no Mar. O Zezeca morreu poucos anos depois disso. Também a pesca farta da Tainha, a Lage do Tapiá, o Sr. Joel foi expulso da Praia do Sul, as canoas foram encostando, o camarão mirrando...

          E muito da cultura Caiçara foi se perdendo. 

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