Prosas de pescadores (Arquivo JRS) |
Beto Maciel, o mestre padeiro, numa dessas tardes, em meio à correria no seu ponto comercial, ali na Rua Conceição, teve tempo de me perguntar algumas coisas a respeito da história da Ilha da Vitória. O que eu sei é fruto das rodas de conversas dos velhos pescadores da minha terra. Um desses contadores mais queridos foi Eugênio Inocêncio. É dele que reproduzo a última parte do texto.
A Ilha da Vitória pertence ao município de Ilhabela, cuja sede administrativa está na grande Ilha de São Sebastião. É um arquipélago caiçara. A distância da costa é de mais de 6 léguas, mas sempre houve uma boa relação com os moradores da costa de Ubatuba. Imagine remar com regularidade essa distância! Hoje, com os motores nas embarcações, está mais fácil a vida desses caiçaras-ilhéus.
Considerando a tradição dos contadores, dentre eles o saudoso Eugênio Inocêncio, só existe moradores na ilha de uns duzentos anos para cá. Assim como já comprovado na Ilha do Mar Virado, no sítio arqueológico, onde pesquisadores da USP encontraram ossadas com idade superior a dois mil anos, cujos “habitantes eram coletores- pescadores, com uma expectativa média de vida de 25 anos e baixa estatura”, espero que os estudos mostrem algo similar na ilha em questão. Afinal, também existe vários sambaquis, com indícios de ocupação muito antiga na Ilha da Vitória. Os estudiosos devem estar debruçados nos sinais dos sambaquis de lá. Hoje, segundo dizem, ainda há cerca de 50 pessoas na Ilha da Vitória. Eu cheguei a conhecer alguns ilhéus que migraram para a costa ubatubana, em busca de melhores condições para se viver. Muita coisa eu aprendi trazido por caiçaras vitoreiros. O Ovo que cura, um dos primeiros textos do blog é um exemplo desse aprendizado.
Eugênio Inocêncio, um parente muito próximo, filho da Maria Balbina, do Mar Virado, era um negro claro de olhos verdes. Ilhéu da gema. Boa parte da vida passou na Ilha do Mar Virado; a outra boa parte viveu morando na Ilha da Vitória (a mais próxima dos ubatubanos nas relações de amizade e de comércio). O que lhe restou de vida foi um mínimo de tempo na Praia do Perequê-mirim.
Do Eugênio, bom apreciador da “branquinha” e muito bom de conversa, eu ouvi sobre o “russo da ilha”. Vitorov era o seu nome. Porém, os ilhéus o chamavam de Vito Ovo. Veio com um grupo para o Brasil fugindo do regime comunista, da perseguição de Stálin na União Soviética, logo depois do primeiro quartel do século XX.
Ao chegarem ao Brasil, do porto de Santos foram encaminhados para a capital, onde as autoridades não tinham ideia de onde acomodar os quase duzentos russos (e russas!). A solução provisória foi encaminhá-los à Ilha Anchieta, onde funcionava a Colônia Correcional. Colocaram os coitados na praia do Sul, sem nada para comer, nem espaço para plantar. Logo estavam famintos, desesperados. Nesse ambiente qualquer caiçara se vira bem: marisca, coleta frutos e raízes, faz armadilhas para os bichos etc., mas russos !?! Morreram quase todos intoxicados. Uns dizem que foi por mandioca brava, mas o Eugênio, ouvindo o Vito Ovo, me garantiu que na verdade eles comeram nogas (frutos da nogueira) acreditando serem castanhas. A fome era tanta...
Victorov, gritava na praia do Sul quando o Constantino (da Vitória) o socorreu. Ainda jovem, e com o poder dos remédios caseiros dos ilhéus, logo se recuperou. Com o passar do tempo aprendeu a língua e a cultura dos caiçaras. Por lá se casou e foi pai de caiçarinhas.
Eugênio, em suas divagações, contava histórias da Rússia (de um lugar beira mar chamado Mezem, de revolução, de palácios fantásticos) que um dia aprendeu, debaixo da jaqueira, no Saco da Flexeira, onde morreu de velhice o russo-caiçara Vito Ovo.
(Nota: as castanhas da nogueira eram usadas para fazer sabão e também como combustível de candeia).
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