sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

REVISITANDO!

      
Trilhas e praias (Arquivo JRS)

                          Estou me preparando para mais uma trilha com algumas pessoas queridas. Vejo as estatísticas do blog com os acessos desse primeiro mês de 2014: 
                          Estados Unidos: 1671.
                          Brasil: 1110.
                          Alemanha: 148.
                          Malásia: 131

                         Títulos mais acessados durante esses quase três anos:
                   Morar em Ubatuba: 994
                  Arquivo Maria Cruz: 571
                  Veio viver e morrer na praia: 292
                          Então, veio a vontade de reproduzir o seguinte texto:

                   Num dia desses fui visitar os amigos Isaías e Alcina, pais do Júlio. Tomamos café com cará-roxo. Depois continuamos a conversa como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Depois, na despedida do portão, outra caiçara chega: Vanilda Balio. Que prazer!!!
                   De novo a prosa retomou: causos e pessoas foram lembrados. Também rimos bastante. De repente, um velho hábito se manifestou: o de recorrer aos vizinhos quando algo se fazia urgente. Explico melhor:  ao perguntar aos vizinhos se não tinha cheiro verde, Vanilda provocou reminiscências de tantos momentos, de tantos “empréstimos” tão comuns entre os caiçaras. Ainda lembro-me, como fosse hoje, dos tempos em que o Mingo, com um cestinho embaixo do braço, se dirigia à casa da Livina para pedir ovos, pois não queria o que a mamãe havia preparado como mistura.
                  A Livina atendia toda satisfeita; mais tarde as coisas se acertavam. A mesma, até os seus últimos dias, sempre recordava desse ato tão simples: um menininho com um cesto na mão perguntando se tinha ovos.

GOIABADA CASCÃO (I)


Fartura de banana (Arquivo JRS)

      Nasci e cresci entre goiabeiras. Quem as semeava entre capim-melado e pela capoeira eram os passarinhos e muita gente que usava o mato para se aliviar. Assim também acontecia com maracujá roxo, com mamão etc. Nunca conseguia imaginar o que era goiabada cascão com queijo. Só na música, que chegava pelas ondas de rádio do vovô Armiro, eu ia conhecendo história de boias-frias que tinham “goiabada cascão com muito queijo”. Logo, nem essas canções podiam ser transmitidas por serem classificadas como subversivas.  Era tempo de governo militar que, sob influência dos Estados Unidos, precisava “combater o perigo vermelho, os comunistas”.
      Depois de poucos anos da minha infância, aí já se falava “à boca de siri” o que estava ocorrendo no Brasil. Por volta dos dez anos de idade, eu acompanhei o meu pai, o Carpinteiro, e o Idílio Barreto em “reuniões proibidas”. Deslocávamos quilômetros para encontros nos mais distantes pontos, quando nem as casas tinham energia elétrica. Íamos de opala. Que maravilha de carro! Aquilo era um “trabalho de formiguinha” para entender o que estava acontecendo no país e ser capaz de dar uma resposta a partir do nosso lugar de pobres caiçaras.  O Movimento Democrático Brasileiro (MBD) era a única oposição permitida. Papai falava assim: “Esse MDB é um balaio de gatos”. Mulher corajosa era a mamãe ao deixar que eu seguisse com eles. (Ou era ciumenta?)

      Hoje, depois de tanto tempo, sempre que passo pela praia da Tabatinga, me recordo bem desses momentos. Ali foi onde presenciei a maior dessas reuniões. “Noite de breu, mas o rancho do Catarina se encheu de participantes. Valeu mesmo, né Carpinteiro?!”. O varão do velho João Barreto se animava muito nessas ocasiões. Depois...uma pinguinha ou um conhaque. A cerveja ainda não era moda. E eu? “Dá uma tubaína e um torresmo para o menino”.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ATÉ CIPÓ?

Foto: Canoas em miniatura feitas por um autêntico caiçara, meu pai! =D
Canoas do tio Aristides Félix, o Caneco  (Foto: Anita)

        Os caiçaras mais antigos sempre souberam das épocas em que apareciam a diversidade de pescados em nossas praias e largos. Por isso sempre estavam às voltas com novas linhadas, preparando espinhéis, emendando e remendando redes etc. Assim diziam: “As águas estão esfriando...Logo logo chegam as tainhas”.  “De agora pra frente, chegando o tempo quente, o peixe-porco e o baiacu enchem o largo”.  “É tempo de mergulhar para pegar preguaís”.

    No começo de 1970, na Praia do Perequê-mirim, papai , o Carpinteiro, Vicente Preto e Angelino Barreto estavam se preparando para pescar baiacu. A “pegadeira” estava perto da costeira, entre as praias da Dionísia e Flamengo. Papai recomenda ao Vicente:
   - Vamos levar duas poitas e mais corda porque baiacu é peixe danado. Tem dentada forte. Ele corta mesmo!
    - Que nada, Carpinteiro! Até parece que um peixinho assim é capaz de cortar corda de poita!
  - Corta sim! Ainda mais quando tem muito! Isto quem afirmou foi o Angelino.

    Só sei que na pressa, saíram assim mesmo. E lá se foram os três remadores no sossego daquela tarde distante, o mar parecendo uma lagoa de tão parado que estava.
      Assim que chegaram já começaram a puxar peixes. “Era cada bitelo!”. De repente, reparando na posição das pedras da costeira, o meu pai diz:

     - Pronto! Já cortaram a corda! Estamos rodando.

    Vicente, que estava na proa, puxou a corda. Estava leve. Só um toco.
    - E agora?

    Papai tinha a solução:
   - Agora temos de ir até a costeira, pegar um cipó e uma pedra e voltar a pescar.

E assim fizeram. Angelino escolheu um cipó amargo de coroanha. Não demorou muito para voltarem ao mesmo local, próximo de uma laje escondida, bem "na cabeça" do cardume. Novamente, no “melhor da festa”, eles enxergam o cipó boiando. Aí o Angelino esbraveja:

- Agora sim! Acabou a pescaria! 

E o Vicente Preto, meio desajeitado, diz:

- Mas até cipó eles não perdoam?! 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

PARCERIAS

images

         Ontem, ao conhecer pessoalmente o caiçara Diógilei, pensei nos pescadores João Zacarias, Estevan Félix, Chico Félix, Mané Hilário, Florindo T. Leite, Genésio Almiro, José Almiro, Hilário da Praia Grande, Dico do Puruba, Aládio e tantos outros que deram a sua contribuição ao nosso ser caiçara.
Acho que a poesia do Mingo e a imagem falam muito mais.



Na vida a gente aprende que os melhores resultados

aparecem somente com parcerias,


seja pra catar goiabas, jabuticabas,


enfrentar empreitadas ou pescarias.


E depois de pescar, construir, colher


é preciso saber dividir:


Um pra mim, um pra você,


um pra mim, um pra você…

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

PRECIOSIDADES


"Os antigos já contavam" (Arquivo JRS)

     Comecei o ano lendo umas preciosidades inspiradas nas terras e no povo ubatubano. Trata-se dos livros de Annaïs Guisard: Sununga e Bantu. Ambos são de meados do século vinte.

     Anaïs, filha do taubateano Félix Guisard, passeia por nossos temas. Eu a imagino, em plena mocidade, fazendo parte dos primeiros turistas que se aventuraram na descida da Serra do Mar, se encantando pelas histórias e pelos causos caiçaras, convivendo com a nossa escritora Idalina Graça...Vivendo aqui os seus melhores dias. O seu pai, um empresário importante, comprou a herança dos herdeiros de Balthazar Fortes, o Casarão do Porto, fez a sua “colônia de férias” junto à Ilha dos Pescadores e desfrutou o que pode em Ubatuba. Portanto, a autora teve uma vivência maravilhosa nesta cidade. É isso que seus livros transmitem!

     Em especial, adorei a sua versão da Lenda do Corcovado. Eis um “aperitivo”:

     “Num incessante labutar de sol a sol, atravessando as serras, transpondo vales e terrenos acidentados, atingiam as ricas jazidas. [...] Assim, sem tréguas, desesperados com o trabalho insano, os negros, cada vez mais unidos, deliberaram pôr um termo um termo a tão inqualificável trato. E foi então, que, em determinado ponto, no alto da montanha do Corcovado, ao lado do riacho, de cada turma que passava com carga, um ou mais pretos se embrenhavam e se escondiam na mata com todo o ouro que traziam. [...] Tencionavam acumular ouro suficiente para comprar a sua liberdade, permutando essa fabulosa riqueza pelo regresso à pátria. Talvez algum capitão de mar aceitasse trocar uma viagem pela fortuna incalculável.
      Passava-se o tempo e já eram numerosos os negros que se haviam desviados com o precioso metal. Entretanto, algo muito estranho parecia acontecer aos cativos...nunca mais eram vistos...nenhum só deles voltou para contar aos chefes onde estavam localizados e como viviam...desapareciam para sempre com a sua carga![...]
   Apavorados com o desaparecimento de tantos companheiros, os chefes se reuniram e resolveram abandonar os seus intuitos de liberdade [...]”

      E a autora continua a dizer o quanto repercutiu nas pessoas os comentários sobre a dramática ocorrência dos “negros que foram tragados pela montanha”. Porém, o ouro, a grande quantidade desse metal, atraía as pessoas, despertavam cobiças incontroláveis. E caravanas partiram de tempos em tempos em direção ao Corcovado. “E, novamente, a montanha cobrou o seu tributo, arrancando a vida dos que atentavam contra os segredos ciosamente guardados em seu opulento regaço”. Até um religioso, querendo desvendar o mistério, desapareceu na região.

     Hoje em dia, poucos sabem dessa história, mas, conforme a escrava Vicência: “O ôro qui desce nas enxurrada é ôro qui os escravo dexaro na beira du riacho lá em cima”. 

domingo, 19 de janeiro de 2014

ALTERNATIVAS BÁSICAS



          Eu consigo vislumbrar algumas medidas  no meio ambiente litorâneo para pensar no produto final, que é a saúde do mar e a garantia de vida aos pescadores. A cultura caiçara depende disso. A nossa galinha de ovos de ouro   - a beleza natural que atrai turistas - também! Só a ignorância produz a destruição daquilo que temos de maior valor.
    Primeiro eu parto da minha casa, do lixo doméstico. Encaminhar  para a terra tudo aquilo capaz de resultar numa boa compostagem já é o que faço há décadas. O resultado disso é a vitalidade do solo, as verduras e os frutos maravilhosos que são produzidos, o espaço sombreado para se deliciar, cultivar samambaias, pimentas etc. Enfim , o meu quintal é o meu espaço privilegiado para a terapia pessoal tão necessária no cotidiano. 
   Em seguida, tento reciclar ou encaminhar para um reaproveitamento os demais materiais. Assim vou transformando um monte de coisas em outras coisas. Só que tenho a consciência de que a indústria é a grande responsável pela opção de continuar despejando um monte de lixo em nossas vidas. As embalagens trazem o símbolo de que são recicláveis, mas qual fabricante implanta uma rede de coleta delas? Ou seja, a origem de tais materiais são evidentes, estão estampados, mas ninguém se importa onde vai chegar. Na natureza, aliada à falta de educação e de respeito aos demais seres, essa atitude vai desembocar em tartarugas engasgadas com plásticos, mangues repletos de vasilhames, praias entulhadas de porcarias etc. 

      Muitos pescadores deveriam receber uma recompensa pela quantidade de lixo que recolhem no mar, em suas redes. Quem sabe disso?

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

ALTERNATIVAS DOMÉSTICAS

Praia do Perequê-açu: peixe morto no lagamar  e aratu longe do mangue  (Arquivo JRS)


     Eu me assusto vendo todo esse avanço tecnológico “alardeado ao som de trombetas”. Me causa mais angústia ver tantas incoerências na relação entre tecnologia e qualidade de vida. Prova disso está nas lanchas, nos jet-skis barulhentos, perigosos e poluidores das águas, nas embalagens descartáveis por todo o espaço que nos rodeia, na diversidade de lixo nas “límpidas areias”, nas pessoas encantadas por seus aparelhinhos portáteis, etc. É lógico que me refiro ao ambiente próximo, sobretudo na temporada, quando a situação fica medonha! Duvido de que na maioria dos lugares a coisa seja muito diferente!

     Quem nunca viveu as oportunidades de constatação das maravilhas da engenharia humana?! Dói perceber que uma imensa parcela da humanidade é deixada de lado no gozo das vantagens do progresso. É essa parcela o sustentáculo de tais avanços tecnológicos discriminatórios, que se justificam em afirmativas do tipo: “É preciso ter ricos e pobres”, “Vai ser sempre assim”... Será um conformismo para justificar a nossa apatia e falta de compromisso com a realidade, de não perceber que a tecnologia, quando se alia à vontade política, pode ser a grande aliada na preservação ambiental?

     É muito complexo o tema Preservação Cultural. Talvez seja mais correto a denominação de Valorização de Culturas. O primeiro tema deste texto era Alternativas Domésticas para o Viver Caiçara. Foi escrito há bastante tempo como tentativa de busca de aliados para a causa dos pescadores caiçaras, mostrando horizontes viáveis para um mundo melhor para todos. Portanto, são caminhos encontrados pelo próprio grupo cultural, mas que estão abertos às contribuições externas que não sejam afrontas ao viver  cultural específico dessa cultura que se formou entre a serra e o mar. É todo um processo que requer muita ponderação. Trata-se de reconhecer e de aprender com a cultura específica de um lugar, de não persegui-la recorrendo a tantos artifícios.

     A problemática da situação atual dos pescadores caiçaras é delicadíssima. A fala do Chico Lopes está nessa preocupação existencial: 

     “Hoje, se nos tirarem o emprego, se acabar as atividades que geram dinheiro para nós, o que é possível fazer? Voltar para a terra e cultivar poucos poucos poderão fazer. Caçar é um dilema, principalmente porque há poucos animais. Que ninguém pense que o mar está aquela fartura!".

     A simplificação dos problemas feita pelo Chico é reflexo de existência prática, de quem está à mercê de empregos que garantem só sobrevivência do momento. Ou seja, insegurança total. Foi-se o tempo em que o mar era a garantia de uma certa tranquilidade. Há um conjunto de atitudes que podem “salvar o mar”, garantindo um ambiente saudável, capaz de voltar a ter vida em abundância, de garantir peixes, crustáceos e uma infinidade de frutos para todos. Para isso, a sabedoria antiga diz:
     “Tem tarefa que a gente faz sozinho e tem aquela que a gente faz em pitirão”.

     Pitirão vem de pitirum, na língua tupinambá. Trata-se de mutirão. É isto: precisamos entender e juntar mais gente para encaminhar as medidas que possam reverter um quadro bastante danoso ao povo deste lugar chamado de Ubatuba. As alternativas podem estar mais próximas do que imaginamos!

sábado, 11 de janeiro de 2014

JOSÉ RONALDO E AS COISAS DE CAIÇARA

Olá, Leide Demo! Seja bem-vinda ao blog!


Hoje, apresento este texto elogioso do Peter, um batalhador pela cultura caiçara:

     Dois dias antes do Natal de 2013 finalmente conheci pessoalmente o José Ronaldo dos Santos.
   Esse grande Caiçara ubatubano, historiador, cronista, mestre, artista, é um dos expoentes entre os poucos guardiões da cultura tradicional local.  
     José Ronaldo reúne essas cronicas repletas de elementos do universo cultural Caiçara em seu blog Coisas de Caiçara, um verdadeiro tesouro pra quem pesquisa o tema.
      Sua arte também transborda em escultura, artesanato e xilogravuras que retratam temas do cotidiano Caiçara e suas lendas.


      Outra raridade vista foi o exemplar original do Léxico do Falar Caiçara do Ubatumirim.
            Na parede de sua varanda telhas coloniais verdadeiras, daquelas feitas nas coxas dos escravos, ganham relevos e cores retratando o cotidiano local. Bainhas de palmeira, as totoas, ganham recortes, se transformando em rostos e pássaros, e papel reutilizado se transforma em balaiozinhos tradicionais.


    No quintal uma parede inteira com orquídeas e pelo chão coentro de folha larga, arnica e outros remédios, um típico quintal Caiçara que me lembrou o quintal da minha avó Helena, que também colecionava orquídeas e ervas.
     Foi uma manhã agradabilíssima, muito proveitosa, e ser convidado para um cafezinho foi uma honra para esse "turista" aqui, aprendiz de Caiçara.
    Terminei a visita presenteando meu anfitrião com um exemplar do Glossário Caiçara de Ubatuba, livreto esse, minha tentativa simples e mal feita de registrar um pedacinho dessa maravilhosa Cultura Caiçara.
      Peço desculpas ao José Ronaldo pelos vários erros que o livretinho deve conter, estou ávido por correções, a primeira delas seria incluir nos agradecimentos: José Ronaldo dos Santos, Julio César Mendes, Mário Gato e tantos outros valorosos Caiçaras que só vim a conhecer recentemente. 
      Zé Ronaldo, muito obrigado, e continue firme no seu resgate das Coisas de Caiçara.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

CASTIGO DE DEUS


Flor no jundu (Arquivo JRS)

     A amiga Fátima, conforme eu já escrevi em outra ocasião, tem coisas escritas a respeito desse seu parente de nome tão singular: Virgínio Rita. O Zizo ficou em dúvida se ele era irmão do Velho Rita. Eu ainda não consegui apurar nada. Mas o que importa é a sua história,

     Virgínio Rita morava no bairro do Acarau. Era um solteirão já caminhando para a “ponto de devezar” (40 anos), conforme o termo do saudoso Virgílio Lopes, da Praia Grande do Bonete. Foi quando, pensando numa vida abastada, casou-se com uma senhora bem mais velha, mas que “tinha dinheiro sobrando”. Calculava o esperto que a velha fosse viver um pouco mais, mas logo morreria a deixaria tudo para ele. Afinal, ela não tinha mais ninguém por si.
     Para encurtar a história, não se passou muito tempo para que o Vergínio vivesse se lamentando com os amigos:

    “Eu casei por interesse e olha no que deu: a velha não morre nunca. Estando agora doente, eu tenho de fazer todo o trabalho de casa. Até colocar a mulher para tomar sol e recolher para dentro é uma tarefa que me custa. É Deus que está me castigando pelo que fiz. Vocês acreditam que até o cambucazeiro da porta da sala, de uns tempos para cá, só dá frutas rachadas?!".

     Mas o Vergínio também elogiava a mulher. Ao que parece, ela era “instruída”, sabia  latim, entendia de vegetais, de composição do solo etc.: “Imagine vocês que eu até já aprendi um monte de coisas nesse tempo todo de casado! Ainda ontem, sentada no terreiro, aproveitando a quentura antes do serão, olhando o carreiro de saúva, ela disse: ‘formica bestiola est’. Sabem o que quer dizer isso? Vou repetir: formica bestiola est. É latim, seus burros! É o mesmo que dizer a formiga é um inseto”. No instante, um dos que escutavam rebateu: “Burro é você! Fez o que fez da sua vida e acha que precisamos aprender outra língua para saber que saúva é um inseto? Agora, você pergunte para a sua mulher instruída se esse povo, que escreveu nessa língua estrangeira, descobriu como acabar com a peste da saúva. Isso sim é que nós precisamos saber!”.

     E a prosa era encerrada, como sempre, com o pesaroso Vergínio  repetindo: “É castigo de Deus!”.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

FAZENDO CARETA NO PAU


Mestre Bigode - Fotografia: Cristina Prochaska e Lucas Conejero.
  

Achei fantástica a fotografia do Bigode, o mestre-artesão! Parabéns às pessoas que não se esquecem de importantes detalhes da nossa história!

           João de Souza, um de seus amigos do tempo do programa radiofônico "Ranchinho Caiçara", se referia ao nosso personagem como "o mestre em fazer careta no pau".

               Já faz tempo que eu escrevi a respeito desse caiçara que tanto já fez pela nossa cidade, mas que tão poucos hoje reconhecem a sua importância.  "É mais um     desconhecido entre tantos desconhecidos"  já dizia o velho Sabá. Olhando um antigo encarte, achei uma preciosidade que vem a calhar:

Antonio Theodoro de Souza, o “Bigode”, nasceu na Barra Seca em 1932. Tornou-se artesão a partir de um desafio: Dona Sara, jovem comerciante de objetos de arte, trazendo da Bahia um facão entalhado em jacarandá, perguntou ao humilde caiçara se ele tinha condições de reproduzir um igual. Na hora ele respondeu que sim, mas que não tinha uma madeira tão dura. “Assim que achar, eu faço um para a senhora”.

O caiçara corajoso, de posse de um machado, partiu para a mata para encontrar a dita madeira dura. Após andar o dia todo, sentou-se à sombra de uma árvore, próximo de um córrego de águas límpidas e fresca. Ali se entregou às lamúrias por seu aparente fracasso: uma busca que o ajudaria a ganhar um desafio. Pois foi exatamente ali, onde Bigode escolheu para descansar, que o senhor bom Deus plantou uma árvore de madeira tão dura que hoje o faz tão famoso: a palmeira brejaúba.

Ele não só fez o facão como também um par de talheres de mesa, o que causou muita emoção em Dona Sara pela beleza do trabalho. A beleza da madeira também teve participação importante nesse sucesso!

A partir do ano de 1964, Bigode nunca mais parou. Venceu muitas exposições e ganhou muitas medalhas.
  Bigode é pai de quatorze filhos. Na época (final da década de 1970), ele via na sua filha Laura, com apenas desesseis anos, a continuação de sua arte. “A sua residência, no Perequê-açu, é um verdadeiro estúdio, onde estão expostos as suas principais obras, muitas delas avaliadas em milhares de cruzeiros”.

Suas obras ganharam o mundo. Graças ao seu talento de escultor, ele conseguiu o “1º lugar (medalha de ouro) no PAÇO DAS ARTES (SP) e 2º lugar na mostra MAIORES SANTEIROS DO BRASIL, concorrendo com 60 artistas”.

A fotografia maravilhosa pertence a Cristina Prochaska e Lucas Conejero, postada no alvorecer de 2014. É de onde vem esta finalização:


“Sexta Feira eu e meu parceiro de equipe tivemos a honra de entrevistar e fotografar Mestre Bigode, reconhecido ao lado de Aleijadinho, como um dos maiores escultores santeiros do País. Nascido e criado na Barra Seca em Ubatuba. Orgulho e muita emoção.Aos 81 anos e cego, o Mestre continua ensinando...”

domingo, 5 de janeiro de 2014

MAIS MINGO

 
Saquaritá  nas areias da Lagoa   (Arquivo JRS)

                     Férias...fim de tarde....muito calor...etc.
             Assisto alguma coisa, leio...Acho velhas poesias do mano Mingo. Espero que mais gente goste.


Perenidade da lembrança 

A roda do mundo girou,
quem era criança cresceu,
quem era solteiro casou,
quem era talvez nasceu,
a flor cheirosa murchou,
uma nova rosa apareceu,
a roda do mundo girou,
só faltou levar junto

a nostalgia que restou.

sábado, 4 de janeiro de 2014

VELHO RITA (III)


Peixe no muro descascado (Arquivo JRS)

Lembrar do Velho Rita é lembrar do contador de causos que foi o seu filho João de Souza. Ontem mesmo, ao ver as conchas de algumas ostras, lembrei-me do caso dos patinhos no Rio Puruba. Conto eu outra ocasião!
Agora, trago outra do tio Filadelfo:

Eu já contei que o Filadelfo, sendo fiel ao seu sobrinho Zizo, morava na capital paulista, mas regularmente visitava os parentes e amigos de Ubatuba, tanto no Itaguá quanto no Acaraú.  Tanta gente boa! 

Sebastião Rita, o Velho Rita, era o contador de causos preferidos desse tio. Assim, nem bem arriava a bagagem de viagem, lá ía ele à casa do amigo caiçara, localizada na margem do Rio Acaraú. Depois se mostrava radiante ao recontar aos parentes os gostosos causos escutados enquanto pescavam nas águas límpidas daquele rio, naquele tempo (até final de década de 1970).
Assim recontou o tio Filadelfo:

“O Sebastião Rita continua do mesmo jeito! Hoje ele me contou de um ‘fato ocorrido há bem pouco tempo’. Tudo começou com uma sororoca colocada na beira do rio, na tábua de consertar peixe. Era ‘uma bitela, presente do Otávio da Conceição, o violeiro e versista da Folia do Divino Espírito Santo’. Enquanto se preparava pegando a faca e a vasilha, o gato do vizinho do outro lado, o Garoçá, ‘trabalhador da empresa do Estado, da SUDELPA’, foi chegando e...vupt! Abocanhou a sororoca. 

“Era um ‘senhor gato amarelo e branco; do mesmo tamanho do peixe!’ Ele catou o peixe do jeito que o bicho é esperto para isso. ‘Deu um salto, caiu numa jangada de pau no meio do rio e já se foi para o outro lado. De lá saiu correndo pelo mato, rompendo treporeva, em direção da casa dele’. Agora é que vem o  espantoso: ‘Eu não pensei duas vezes! De onde estava também me apinchei na jangada e ganhei a margem de lá. Saí desabalado atrás de gato. Mas quá! O bicho desapareceu; eu perdi a sororoca. Maldito gato!

“Isto é que me impressionou mais: ‘Voltando desconsolado para o lado de cá, saltando outra vez pela jangada, foi que reparei bem naquilo boiando na água: era um pernilongo, de um tamanho que eu nunca tinha sonhado. Nunca vi tão grande assim! Você já pensou um pernilongo ser como uma jangada? Matei com uma foiçada pelo meio. Para se ter uma ideia do colosso, de uma junta de perna dele eu fiz uma capa de facão. Agora está emprestado para o Damásio, outro vizinho do lado de lá. Se tivesse em casa, eu mostraria a você para comprovar o tanto que era grande’. Só mesmo o Sebastião para imaginar coisa assim!”

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

ILHÉUS

Prosas de pescadores         (Arquivo JRS)
                



     Beto Maciel, o mestre padeiro, numa dessas tardes, em meio à correria no seu ponto comercial, ali na Rua Conceição, teve tempo de me perguntar algumas coisas a respeito da história da Ilha da Vitória. O que eu sei é fruto das rodas de conversas dos velhos pescadores da minha terra. Um desses contadores mais queridos foi Eugênio Inocêncio. É dele que reproduzo a última parte do texto.

     A Ilha da Vitória pertence ao município de Ilhabela, cuja sede administrativa está na grande Ilha de São Sebastião. É um arquipélago caiçara. A distância da costa é de mais de 6 léguas, mas sempre houve uma boa relação com os moradores da costa de Ubatuba. Imagine remar com regularidade essa distância! Hoje, com os motores nas embarcações, está mais fácil  a vida desses caiçaras-ilhéus.


     Considerando a tradição dos contadores, dentre eles o saudoso Eugênio Inocêncio, só existe moradores na ilha de uns duzentos anos para cá. Assim como já comprovado na Ilha do Mar Virado, no sítio arqueológico, onde pesquisadores da USP encontraram ossadas com idade superior a dois mil anos, cujos “habitantes eram coletores- pescadores, com uma expectativa média de vida de 25 anos e baixa estatura”, espero que os estudos mostrem algo similar na ilha em questão. Afinal,  também existe vários sambaquis, com indícios de ocupação muito antiga na Ilha da Vitória. Os estudiosos devem estar debruçados nos sinais dos sambaquis de lá.  Hoje, segundo dizem, ainda há cerca de 50 pessoas na Ilha da Vitória. Eu cheguei a conhecer alguns ilhéus que migraram para a costa ubatubana, em busca de melhores condições para se viver. Muita coisa eu aprendi trazido por caiçaras vitoreiros. O Ovo que cura, um dos primeiros textos do blog é um exemplo desse aprendizado.


             Eugênio Inocêncio, um parente muito próximo, filho da Maria Balbina, do Mar Virado, era um negro claro de olhos verdes. Ilhéu da gema. Boa parte da vida passou na Ilha do Mar Virado;  a outra boa parte viveu morando na Ilha da Vitória (a mais próxima dos ubatubanos nas relações de amizade e de comércio). O que lhe restou de vida foi um mínimo de tempo na Praia do Perequê-mirim.

              Do Eugênio, bom apreciador da “branquinha” e muito bom de conversa, eu ouvi sobre o “russo da ilha”. Vitorov era o seu nome. Porém, os ilhéus o chamavam de Vito Ovo. Veio com um grupo para o Brasil fugindo do regime comunista, da perseguição de Stálin na União Soviética, logo depois do primeiro quartel do século XX.

              Ao chegarem ao Brasil, do porto de Santos foram encaminhados para a capital, onde as autoridades não tinham ideia de onde acomodar os quase duzentos russos (e russas!). A solução provisória foi encaminhá-los à Ilha Anchieta, onde funcionava a Colônia Correcional.      Colocaram os coitados na praia do Sul, sem nada para comer, nem espaço para plantar. Logo estavam famintos, desesperados. Nesse ambiente qualquer caiçara se vira bem: marisca, coleta frutos e raízes, faz armadilhas para os bichos etc., mas russos !?! Morreram quase todos intoxicados. Uns dizem que foi por mandioca brava, mas o Eugênio, ouvindo o Vito Ovo, me garantiu que na verdade eles comeram nogas (frutos da nogueira) acreditando serem castanhas. A fome era tanta...

              Victorov, gritava na praia do Sul quando o Constantino (da Vitória) o socorreu. Ainda jovem, e com o poder dos remédios caseiros dos ilhéus, logo se recuperou. Com o passar do tempo aprendeu a língua e a cultura dos caiçaras. Por lá se casou e foi pai de caiçarinhas.

             Eugênio, em suas divagações, contava histórias da Rússia (de um lugar beira mar chamado Mezem, de revolução, de palácios fantásticos) que um dia aprendeu, debaixo da jaqueira, no Saco da Flexeira, onde morreu de velhice o russo-caiçara Vito Ovo.

(Nota: as castanhas da nogueira eram usadas para fazer sabão e também como combustível de candeia).