domingo, 30 de junho de 2013

O BOI É O TEMA (II)

Saíra beija-flor e sanhaço azul dividem o lanche (Arquivo JRS)

A Dança do Boi do Itaguá deixou de se apresentar nos carnavais por volta de 1947. De 1950 a 1970 muitos grupos se formaram, mas apenas como grupo de dança e não como folguedo, isto é, sem dramatização.
A música usada para a Dança do Boi é composta de versos de improviso, mas o refrão sempre foi o mesmo; diz assim: “Investe, investe meu boi, pro lado que tem mais gente”. E nesse momento o boizinho corre para cima do povo, tendo que ser contido pelos cavalinhos e toureador.
De 1950 a 1962, a Dança do Boi era tão importante no carnaval caiçara, que chegava a sair diversos grupos de vários pontos do município. Exemplos: Augusto do Cristino e o grupo do Morro da Pedreira, Sidônio e o grupo do Perequê-açu, mestre Veiga e o grupo do Taquaral, mestre Diniz e o grupo da Rua da Adutora (Matadouro), Emílio Graciliano e o grupo do Mato Dentro (Rodovia Oswaldo Cruz), irmãos Albado e o grupo do Bairro da Estufa. Eles competiam entre si. No último dia de folia, os grupos se reuniam na Praça Nóbrega para a famosa Briga de Boi. Aquele que se mantivesse inteiro era o vencedor do carnaval.
Em 1958, Augusto do Cristino  (Pedreira) preparou o seu boizinho com uma caveira de boi recheada de cimento, para que o mesmo aguentasse, na hora da briga, as cabeçadas do adversário. No domingo de carnaval, à tarde, o grupo do Augusto estava se dirigindo para a praia do Perequê-açu, pois era costume os grupos de Dança do Boi e blocos de enredo dançarem um pouco em dois bares da época (Rancho do Galo e Rancho da Sereia). Estando no meio da ponte do Rio Grande, eis que o grupo da Pedreira se encontra com o grupo do Sidônio que vinha para a cidade, em sentido contrário. Não deu outra!  A Briga do Boi teve início. O boi devidamente preparado, com uma cabeça reforçada, deu uma cabeçada no outro que o jogou na água. Foi uma gargalhada e corre-corre, pois a maré estava cheia e o Sidônio, emaranhado dentro do boizinho, quase morreu afogado.

sábado, 29 de junho de 2013

O BOI É O TEMA (I)

Arcaide e sanhaço folha-seca contentes com banana (Arquivo JRS)


Ficou pronto! Está lá, na Casa Caiçara, o nosso primeiro livro; da turma da oficina de xilogravura. O texto é do Boi de Conchas, do Júlio Mendes. A versão para a literatura de cordel se deve ao Jorge Ivam. Creio que outros virão na esteira desse material.
Procurando saber de como esse tema (boi) veio para em Ubatuba, na terra dos caiçaras,achei umas informações interessantes.

Tudo leva a crer que as primeiras manifestações se deram na década de 1930, conforme mostra o jornal da época “Echo Ubatubense”. É onde diz que a Dança do Boi era apresentada pelo senhor Carlinhos, ou “Carrinho”, filho de um maranhense. Portanto, vem do Norte a nossa tradição, assim como vem do Sul a nossa Dança da Fita (trazida de Santa Catarina pelo pescador João Vitório, da Praia da Enseada). Observação: foi o pessoal do Itaguá que fez a primeira apresentação da Dança do Boizinho. E eles continuam bons na tradição cultural do nosso município, representam muito bem a cidade de Ubatuba!
Com o pai, o Carrinho aprendeu a confeccionar o boizinho e os cavalinhos para brincar o carnaval. Os amigos da área Itaguá-Acarau e adjacências se esmeravam no enredo: Leopoldo Scongelo era o patrão (mestre), Joaquim Thiago, o Velho Quincas, era o angariador de donativos. Anísio José dos Santos e Lauro Bougert, vestidos de mulheres, eram ricas fazendeiras que brigavam entre si para comprar o boi. Sebastião Rita era o contador de histórias. Dito Paratiano desejava matar o boi e repartir a carne com os pobres. Euclides Estevan, o “Quidi”, era o dançador que ficava debaixo do boi. Miguelzinho Firme e Joaquim Firme, dançadores nos cavalinhos. Augusto Bernardo, o “Patera”, era o toureador. Antonio Pinho e Antonio Pedro eram os mascarados. Os integrantes do conjunto musical eram: Alfredo Mariano, Arlindo, João Paru, Tibúrcio e Otávio Rolim (violas). Benedito Paru tocava rabeca. O sucesso desse pessoal foi tão grande no carnaval de 1940 que até provocou ciúmes aos demais blocos carnavalescos, resultando em ameaças de “quebrar o boi e seus componentes caso se apresentassem no ano seguinte”.
No ano seguinte, para que a Dança do Boi do Itaguá se apresentasse tranquilamente, Leopoldo Scongelo, mestre da dança, veio até a cidade e solicitou ao delegado de polícia segurança ao seu grupo. E assim foi feito. O delegado e um soldado vieram até a Barra da Lagoa e conduziram o grupo até o centro da cidade. Assim os foliões do Itaguá puderam brincar o carnaval de 1941.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

TIO LINDO

            
Festa no meu quintal. (Arquivo JRS)
 Vendo uma imagem no facebook, lembrei-me de algo que já escrevi. Foi verdade mesmo!

   
         As rodas de causos ainda existem. Hoje os caiçaras e outros contadores se encontram, principalmente, em frente aos portões, diante de suas casas, pois o jundu, “lugar sacrossanto” no dizer do finado Antonio Maior, “agora está tomado pelas mansões dos tubarões”, pelos quiosques etc. Embora em algumas praias ainda seja possível tal ritual, o mais comum é, no meu caso, de aproveitar as mínimas oportunidades pelas ruas da cidade, sobretudo em “época de vacas magras”, quando a maioria dos rostos é conhecida. O que eu narro agora me veio à mente depois de uma prosa com o Élcio e o Belinho, em frente da moradia deste.

         O ano era de 1969, quando os americanos chegaram à Lua. Nas praias, em todos os lugares comentava-se a notícia que chegava até nós pelos rádios. Os mais antigos ainda lembram-se muito bem das instalações para que rádio funcionasse: era necessário um fio (antena) estendido acima do telhado, no correr da cumeeira, de onde descia uma ligação com o aparelho (rádio) que, devidamente fixo num ponto alto (para que poucas mãos o alcançassem), depois de abastecido com “potentes pilhas”, eram sintonizados poucos momentos por dia por motivo de economia.           Assim chegavam as notícias, as músicas, o Projeto Minerva, a Voz do Brasil... Pela localização geográfica do nosso município, era lógico que as emissoras cariocas dominassem o espaço. Afinal, estávamos aos pés da Serra do Mar. Mas... deixando de lado tudo isso...de repente quase todo mundo passou a entender de espaço sideral, de satélites, de potência americana e da corrida espacial contra os russos, etc. Era o assunto do momento depois das festas de junho.

         Naquele tempo, apesar de gostar dos encontros, de se visitarem regularmente, muitos caiçaras tinham suas casas bem afastadas. Quando alguém questionava, a resposta sempre era: “Estou cuidando da minha posse”. Porém, nós sabemos que é questão de índole: os caiçaras gostam de se isolar para não serem perturbados, nem molestar ninguém. O meu tio Lindo era um desses casos. Morava na praia do Cedro, próxima da Deserta, depois - bem depois!- da Ponta da Fortaleza, na qual o acesso ainda hoje é por um estreito caminho de servidão que, felizmente, nenhum ricaço ainda cercou. Porém, todo dia de domingo ele estava na praia da Fortaleza. Eu adorava escutar os seus causos.          Também ele entendia de satélite e dos assuntos internacionais do momento. Afirmava:

         - Os satélites estão nos ares e controlam as nossas vidas; alguns até dizem que nos enxergam mesmo dentro de casa. Não tem como escapar dos olhares deles.

         E esse papo ia longe. Discutia-se muito por isso, mas nunca se concluía nada. O tio Lindo adorava uma cervejinha; até dizia que era remédio. Só sei que, de remédio em remédio, ele ficava “sapecado”, tropeçando até em concha de sapinhaoá na areia. Eu me preocupava com ele; achava que poderia se machucar num caminho tão ruim de andar quando estava são, imagine naquelas condições. Assim comentei com o meu tio Tonico:

         - Ele vai sozinho? O senhor não pode servir de companhia para que nada aconteça ao tio Lindo?
         De pronto o meu tio respondeu:

         -Que nada, Zezinho! Você já aprendeu uma coisa: agora tem satélite por todo lado, controlando tudo por aí! O tio também tem o dele! Ele chega bem, você vai ver!

         Assim ele foi pelo lagamá, subiu a Costeira das Pegadas, no canto do Joaquim Silvino. Lá em cima ele estacou, deu um forte assobio e gritou:

         - Satélite! Vem! Vem! Vem, Satélite!
         Correndo, todo feliz, lá se foi o seu cachorro cor de vinagre. Ah!!! Eu ri muito naquele dia por causa do nome que ele deu ao bicho: era muito apropriado e atualizado.
      Alguém consegue imaginar um caiçara vivendo sem cachorro?

quarta-feira, 26 de junho de 2013

NINGUÉM SILENCIOU O FREI PIO


É uma mariposa! (Arquivo JRS)

Bem antigamente, na história da humanidade, os homens só falavam. Depois, começaram a desenhar. Nisto inventaram as letras, e, as palavras escritas vieram para que a nossa evolução cultural, tecnológica etc. chegasse ao ponto que é hoje.
As palavras, creio eu, marcaram muito a gente bem antes do aprendizado da escrita (graças a um professor ou professora). “Que saudade da professorinha...”. 
     Um exemplo de alguém que me marcou pelo uso das palavras foi o Frei Pio, um religioso franciscano que veio para Ubatuba na segunda metade da década de 1960. (E aqui repousa para sempre!). Seus sermões eram incisivos, iam ao cerne das questões, questionavam mesmo!
Numa ocasião, na capela da Praia do Sapê, onde está enterrado o meu cordão umbilical (e dos irmãos!), um turista paulistano contraiu matrimônio com alguém que também não era do nosso lugar. Os motivos do noivo para ser nesse lugar pobre a celebração religiosa:      1º) “O frei, mesmo sabendo que a marcha nupcial foi decretada imprópria (*) para os recintos sagrados, sendo proibida nos templos pelas autoridades eclesiásticas,  permitiu que os músicos a executassem”. 2º) “É nosso desejo que a nossa vida a dois seja tão simples como a desses caiçaras do Sapê, como os frequentadores desta capela bem perto do mar”. Foi quando, pela primeira vez, eu me encantei com o compositor Mendelssohn.
Muitos anos depois, ao conversar com o idoso frei a respeito daquela ocasião do casamento do Sapê, ele sabiamente falou:
"O caso é que eu não poderia negar a beleza da música, quando o artista toma a realidade e faz dela um sonho. Nesse sentido, eu nunca vou acatar  qualquer determinação dos meus superiores, nem do Santo Ofício. Até hoje não fui excomungado. Também já estou muito velho para me preocupar com isso. Agora, em relação ao casamento, desde aquele tempo eu acho que o certo seria voltar a um modelo antigo, do tempo em que Jesus vivia na Galileia, quando o casal fazia um contrato: primeiro moravam um ano juntos para depois ser realizado o casamento. Seria o mais correto, não acha?”. Eu somente balancei a cabeça concordando com alguém tão especial.

(Nota: Decretação imprópria pela Igreja Católica, em 1947).

sábado, 22 de junho de 2013

EXPERIÊNCIA NUMA COMUNIDADE ISOLADA

Mar....céu...costeira...Tudo é lindo! (Arquivo JRS)

                Relendo uns textos antigos, achei este da amiga Regina Azevedo. Trata-se de uma jovem professora que, corajosamente, idealista ao extremo, deixa a comunidade do bairro da Estufa II (em Ubatuba) e vai com muita animação para a comunidade do Saco do Sombrio, na costa da Ilhabela, bem distante do porto principal, por volta de duas horas e meia de canoa motorizada.

                “Se todo animal inspira ternura, que houve então com o homem?”

                É baseado neste princípio que não devemos perder a sensibilidade nem a ternura diante do trabalho que nos exige acima de tudo responsabilidade como educadores que somos, criando e despertando no educando a necessidade da auto contribuição para a mudança, por uma sociedade mais justa, livre e fraterna.
                Em 1992, numa reunião de avaliação com a fundação [Vivendo a Terra] e alguns professores, tive a oportunidade de conhecer o Pedro, a Vera, a Sibila e o Pedrinho – uma família que a seis anos morava na Ilha de Búzios, numa das comunidades isoladas de pescadores ao norte da Ilhabela. O trabalho deles não estava somente contido no ato de ensinar a ler, escrever ou contar, era (é) um trabalho que vai além dessa experiência. É um trabalho de interação com o meio que exige acima de tudo, muita coragem e sabedoria. E só foi através deles que também hoje, eu estou tendo a oportunidade de trabalhar em uma outra comunidade isolada do município de Ilhabela –a na comunidade do “Saco do Sombrio” ou Paranabi (nome da escolinha). Foi minha primeira experiência no campo profissional, o que trouxe um enriquecimento bastante significante para meu autoconhecimento, embora muitas pessoas não acreditam que possam existir em comunidades, pessoas que sobrevivem em condições extremamente simples, ou ainda, de extrema pobreza. Essas famílias desenvolvem atividades agrícolas e a pesca artesanal como um meio de subsistência. Essas pessoas ainda existem, elas residem em casas de pau-a-pique (construídas pelos próprios moradores) - muitas ainda! -, sem o contato com a luz elétrica, vivendo à base do lampião a gás ou a lamparina, se locomovem através de pequenas embarcações com chuva ou sol, ou longas caminhadas que cortam a mata. A água é fonte de vida para todos nós. Para eles, essa água ainda vem de graça através das cachoeiras e/ou nascentes que ficam localizadas nas proximidades de suas pequenas casas. São famílias de pescadores que em si, a cultura caiçara (ou o próprio caiçara melhor dizendo), está em extinção, é uma cultura que caracteriza a própria identidade. Nela estão presentes os causos, as histórias, o artesanato, as brincadeiras, os brinquedos confeccionados pelo próprio caiçara, pelas crianças, a maneira de falar, de agir, de pensar, a religiosidade presente nas danças, nas rezas. Enfim, mesmo que muitos não reconheçam essa cultura, é preciso não deixá-la morrer. É por essas razões que devemos nos sensibilizar com a situação e passar a contribuir com a reconstrução do que ainda resta, utilizando instrumentos concretos que temos em mãos, de modo a fazer com que o educando assuma a cidadania e se comprometa com a transformação da realidade local. Essa experiência permitiu que eu conhecesse de perto a realidade que os cerca e a interação do trabalho educacional com essas comunidades. Para isso é preciso estar aberta, introduzir-se à cultura desse povo, ouvindo suas histórias, participando de suas festividades, brincadeiras, das atividades pesqueiras e agrícolas que acontecem.


                                                                                                                          Regina Natividade Azevedo

quarta-feira, 19 de junho de 2013

CORTIÇO EM FESTA



Papão 
       A amiga Fátima Souza registra neste texto a tradição caiçara que continua no espaço deixado pelos avós Sebastião Rita e dona Josefa. As novas gerações mantêm os eventos que as unem, reforça a cultura caiçara do Itaguá e nos dá muita alegria. Abraços a esse pessoal maravilhoso! Ah! Como é bom se recordar da alegria do saudoso João de Souza em ocasiões assim!

     No Itaguá ainda têm remanescentes de caiçaras. Depois de perderem seu espaço natural de fazer festas para o tão chamado progresso que corrói, impõe e aniquila com as tradições locais, ainda resta um nicho de conhecimento e sabedoria, principalmente de coragem e vontade de agregar valores, respeitar as tradições e fazer as festas conforme eram nos tempos dantes.
   Este espaço é lá no CORTIÇO. Um quintal aconchegante onde de geração para geração é passado seus costumes e tradições, para que todos saibam e respeitem suas origens.
     Também sou de lá. Já comandei essas festas. Como meu pai, como meus avós e demais antepassados. Hoje é o Papão e Lisandra que com a ajuda da família e agregados comandam a Dança de Congada, Folia de Reis e organizam a Grande Festa do Cortiço em junho.
     A festa é como era antigamente. É só chegar e participar. Ao participante cabe colaborar com um prato, ou uma bebida alusiva a data. Nada é cobrado. Não é essa a intenção.
   O que se espera é que todos se divirtam igualmente. Mais antes da diversão, tem a devoção. A procissão do mastro de São João, cantoria de folia, a reza, aí sim, é só se acabar na Ciranda, Tontinha e Cana Verde, Dança do Chapéu, Caranguejo, danças típicas de Ubatuba, sob o toque das violas dos grandes mestres: - Seu Dito Fernandes, Senhores Foliões e a rabeca imperdível de Mario Gato. Haja fôlego!
    A Luciana faz um vinho quente dos deuses. Também se pode saborear o quentão, chá de amendoim, caldinho verde, pé de moleque de gengibre feito por Dona Elisa e principalmente a estrela da festa, a nossa Concertada.
   Numa mesa arranjada embaixo do cacaueiro, acontece explicitamente um concurso de bolos, doces e salgados trazidos por todo mundo.
    Me lembro do bolo de mandioca com recheio de goiabada da Dona Salete, hummmm! Tem também o bolo de fubá com erva doce de minha mãe. Sem comentários...
     É o pecado da gula! A turma fica com a barriga que é um porão de barco abastecido!
    Quer mais? Uma quadrilha de dezoito pares, muito bem marcada pelo mestre Élvio.
Final da noite, depois das crianças dormirem, grupinhos se formam para tomar todas ainda restantes e traçar comentários sobre a festa acontecida. Lógico que uma roda de causos se forma instantaneamente. E a risadalhada vai até as tantas. Vai até um mais velho mostrar que passou da hora de se recolherem. Houve-se só resmungo dos mais jovens...
     Dia seguinte o cortiço volta ao normal. Se é que existe normal para o cortiço.
     Sabe-se que naquele espaço todo mundo briga e reza unido. Tem que ser cem por cento corticeiro para ter a riqueza de ser simples e a arte de fazer belas festas sem tirar proveito financeiro disso. Só o verdadeiro prazer de viver e festejar.
     Esse ano não participei... ainda!
  Mas bebo sempre dessa fonte. Afinal também provenho de lá.
     Parabéns, família e amigos.
   Quem nasce no cortiço tem alegria no sangue e festa no código genético.

(Fonte: O Guaruçá)

terça-feira, 18 de junho de 2013

LEMBRA, EMÍLIO?

               
Namoro na Mantiqueira (Arquivo JRS)

                De vez em quando me ponho a pensar em situações que parecem estar tão longe...Resolvo escrevê-las e me dou conta que estou fazendo algo de encontro ao que disse o poeta Heine, um alemão que adorava salsichas: “É moeda antiga, refundida por ti e novamente lançada à circulação com outro cunho e outro brilho”.
                Por estes dias, saindo dos Correios, encontrei o Emílio Campi, um amigo de infância dos bons tempos da Praia do Perequê-mirim. O ramo dele é comunicação, com destaque para o jornal Maranduba News.
                Em meados da década de 1970 a Família Campi se mudou para Ubatuba, foram morar numa chácara que pertencia à família,  ao tio Aldo, nas imediações da família Barreto. A mãe, a saudosa dona Helena, foi a primeira motorista que eu conheci. Fazia sucesso em sua Kombi. O cachorrão preto tinha o nome de Terremoto. Tilinha e Hermínia eram as irmãs do Emílio.
                Um dos irmãos Campi tinha uma propriedade no Sertão do Perequê, próximo do rio. Seus vizinhos eram o Bráz, o Dionísio e a dona Júlia. Como era lindo por ali! Quanto ingá-feijão eu não debulhei por ali!? Numa ocasião, precisando de alguém para roçar o mato pelas divisas, ele contratou o Dito Costa, um caipira que morava  perto do Dito Funhanhado. Explicou-lhe todo o trabalho ao mesmo tempo que conversava com a carinhosa esposa. Esta o tratava por “benzinho”. “Benzinho, explica para o seo Dito que não pode cortar as helicônias”. “Benzinho, chama o seo Dito para tomar um suco”. “Benzinho, vai até o açougue do seo Antônio Valério e pede para o Zé Canela tirar uma peça inteira de picanha para eu assar”. “Benzinho, dá uma passada na praia e vê se o Itagino pescou carapau”...
                Depois das instruções e de um lanche reforçado, o Dito Costa pegou as ferramentas e se embrenhou no mato. Um cachorro vira-lata era a sua companhia; de vez em quando abocanhava um preá e deixava aos pés do dono para ser depositado no embornal. Umas cobras padeceram na roçadeira. De repente bateu uma dúvida: será que o terreno continua depois do rio, morro acima? Preocupado em não fazer serviço mal feito, o jeito era voltar até a casa do patrão e perguntar a respeito disso.
                O nome do homem era diferente, mas...  “gente rica escolhe o nome que quiser; tudo fica chique”. Conforme avistou o paulistano gostosamente desmontado na espreguiçadeira em cafunés com a amada, o Dito tascou:

                - Seu Benzinho, faz o favor de tirar uma dúvida: onde é mesmo a divisa da terra do senhor?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

VOCÊ SE LEMBRA?

Apresentação da Cia Pia Fraus, no Festival da Mantiqueira.

                Após ter chegado da aconchegante São Francisco Xavier, do VI Festival da Mantiqueira, onde literatura e cultura popular fazem uma parceria interessante, li mensagem do primo Cláudio que, após ver a fotografia de um engenho de garapa feita pelo Eliseu Costa, lá na Ponta Grossa, num terreiro caiçara, se lembrou de um igual que existia na casa do Nhonhô Armiro, na Praia da Fortaleza. De vez em quando a gente estava por ali, tomando uma caneca de garapa com o tio Clemente, o santista fervoroso, graças à genialidade do Pelé.
                Para proteger o engenho de pau foi construído um ranchinho minúsculo, coberto de sapê. Era bem ao lado da casa, perto da porta da cozinha. Rente a ele tinha uma jaqueira, cujos frutos eram do tamanho de uma bola. Que delícia! Essa espécie é raridade hoje. Quem souber de alguma se sustentando por algum lugar me avise.
                Mais atrás da casa da família ficava a casa-de-farinha. Quinzenalmente era feita a farinha de mandioca para o consumo. Era o nosso pão, o nosso básico do escaldado  e ainda servia para ser comercializada na cidade, rendendo algum dinheiro que o Nhonhô guardava com desvelo.
                Saindo por um caminho, já na divisa com as terras da tia   Maria Tereza, ia-se até uma bica d’água no pé-do-morro. Era de onde vinha a água fresca. Na cozinha, num banco pequeno, ficava a talha de água. Quando dava sede, bastava destampa-la e afundar a caneca que ficava emborcada sobre a tampa.
                Ah! Para encerrar: era de engenho assim (de madeira) que saía a garapa. Virava o café nosso de cada dia. Era uma forma de economizar açúcar. Agora, onde tomar um café de garapa? E, dessas novas gerações, quem sabe apurar a garapa ao ponto de melaço?

              Tenho certeza que é graças a tais condições de vida, com hábitos pobres, mas saudáveis, que eu tenho uma boa saúde. Concordam comigo?

quinta-feira, 13 de junho de 2013

FOI EM UBATUBA !



Julinho Mendes 
Que tal a Igreja Matriz de Ubatuba, onde, no cume, bate vento sempre?


        Este texto do Júlio, há coisa de onze anos atrás, foi representado no BAMBU DE VEZ, do grande artista caiçara Bado Todão. Quanta coisa boa, quanto pirão e quanta diversão nas tardes de domingo!


       O que fazer com essa globalização e com essas mentalidades religiosas retrógradas que vão matando o espírito junino, as nossas bebidas e comidas tradicionais? 

       Viva Santo Antonio, o casamenteiro!

      Cipriano, como já sabemos, era lá das bandas de São Luiz. Do tipo coronel, mandava e desmandava; era viúvo e pai de uma filha só. Esta se chamava Margarida, moça prendada, mas muito namoradeira, namorava Antonio num dia e Pedro no outro.

   Sabedor daquela poligamia, Cipriano resolveu acabar com a situação, chamou os dois namorados de sua filha e fez a seguinte proposta:
     - Casa com minha filha o primeiro que, no dia 24 me trouxer o peixe chamado cavala pra eu fazer o tal Azul Marinho! Nesse dia, Margarida vai estar vestida de noiva no altar da capela, com o padre ao lado, esperando aquele que primeiro trouxer a cavala pra eu fazer o meu Azul Marinho!
     Pedro sorriu com a declaração do futuro sogro, pois era pescador e, embora difícil naquela época, sabia onde encontrar tal peixe. Antonio, coitado, entristeceu, era lavrador, sabia apenas cuidar da roça, nunca subiu numa canoa, mas pelo amor de Maria, daria um jeito na situação.
    Chegou o grande dia, 24 de junho, dia de São João, e como prometido Margarida estava de véu e grinaldas na beira do altar da capela a espera de um dos noivos, aquele que primeiro chegasse com a cavala na mão a entregar a seu pai. Ao lado do altar estavam também o padre, os pais dos noivos, o prefeito da cidade, o delegado, e muitos convidados, todos curiosos e ansiosos para saber quem seria o verdadeiro esposo de Margarida.
      Não demorou apareceu Antonio de braços com a mãe e trazendo um embrulho debaixo do braço. Margarida sorriu contente ao ver Antonio se aproximando, pois era ele sua maior paixão também. Antonio se aproxima, e diante do futuro sogro, fala:
    - Tá aqui coronel Cipriano, a sua cavala. Vamos fazer o casamento que sua filha agora é minha! Cipriano, que de peixe conhecia pouco, estranhou a grossura daquela cavala, e assim falou:
  - Mas Antonio esta cavala tá muito gorda e barriguda?!
   - É que a bicha tá com ova, coronel! Declarou Antonio.
   Vendo a alegria da filha, coronel Cipriano, cumpre sua promessa e manda o padre iniciar a cerimônia...
Já nos finalmente e para consagrar o casamento, o padre profere a tradicional pergunta entre os convidados:

    - Se tiver alguém contra esse casamento, que fale agora ou se cale para sempre?

    O silêncio tomou conta entre os convidados, e não demorou uma voz lá de fora se pôs a gritar:
    - Eu tenho, seu padre, eu tenho!!!
 Era Pedro que chegava todo arregaçado, esfarrapado, segurando pelo rabo uma enorme e verdadeira cavala.
   - Tá aqui coronel, demorei, mas consegui pescar uma cavala! A sua filha é minha!
   - Agora é tarde Pedro, Antonio chegou primeiro e me trouxe uma bonita cavala ovada.
   Desconfiado, Pedro pede para ver a tal cavala que Antonio trouxe.
    - Isso é baiacu pintado de cavala seu Cipriano, não tá vendo que ainda tá com tinha fresca?!
   A confusão estava formada. Embravecido Cipriano que não é de descumprir palavra, tira Antonio do altar e coloca Pedro ao lado de Margarida e manda o padre continuar a cerimônia.
   Margarida não se contem de alegria e sorri abertamente, porque Pedro era seu amor também, mas tava com dó de Antonio.
     O padre gostava de um bailado e para acabar logo com aquela bagunça, fez novamente a pergunta para consagrar o casamento:

    - Se tiver alguém contra esse casamento, que fale agora ou se cale para sempre?

    Margarida olha pro lado e vê Antonio em prantos, e lembrando de suas safadezas com ele, é ela quem responde ao padre:
      - Eu tenho seu padre!
   - Que é isso minha filha? Pergunta surpreso o padre.
    - É isso mesmo seu padre, eu sou contra o meu casamento com Pedro ou com Antonio sozinho. Só caso se for com os dois!
     - Que é isso minha filha? Pergunta agora arrepiado o coronel Cipriano.
     - E papai, eu só caso se for com os dois.
    - Você tá ficando louca, onde já se viu uma coisa dessa minha filha?
     - Não estou louca não papai, eu estou é grávida, e não sei se o filho é de Antonio ou é de Pedro.
    Os convidados estavam de boca aberta, o padre tava mais vermelho que melancia pro lado de dentro e o pai da noiva, de tão nervoso que tava, apertava tanto o seu baiacu, que fazia o bicho soltar fumaça pelo olho.
     - Se é assim, minha filha, você vai casar com os dois! Colocou Antonio de um lado e Pedro do outro e ordenou ao padre que fizesse o encerramento do casório.
    O padre não tendo como desobedecer a ordem do coronel, assim declarou:
    - Até que a morte os separe, eu os declaro maridos e mulher.
  - Vamos pro baile pessoá que a fogueira tá queimando e a sanfona vai tocá! Ordenou o poderoso coronel Cipriano, que saiu abraçado com o padre, segurando o baiacu e a cavala trazidos pelos genros.
E a festa no arraiá foi até o sol raiar, com direito a dança de quadrilha marcada pelo padre, café de cana, quentão, pipoca, doces, salgados, e pra fortificar os convidados, não faltou o azul marinho com pirão de banana verde.
(FONTE: O GUARUÇÁ).

quarta-feira, 12 de junho de 2013

QUE LINDO !!!

Painel produzido por alunos da Escola Maria Alice (Marafunda)

O que está escrito por Deus ninguém rabisca


        No tempo ruim Seu Manuel não descia sua canoa pro mar. Restava-lhe olhar da janela da casa as condições de navegação. Uma vez que a maresia ou o mar grosso como chamava abocanhava todo o jundu da praia.
           O velho pescador dizia sempre:
         - Isso aí é o mar fazendo uma faxina. Ele está devolvendo tudo que não lhe pertence pra terra. Pode esperar que assim que amansar essa força de água, o Canto Bravo vai estar lotado de tudo que é coisa.
         Dito e feito. Quando o mar acalmou, Seu Manuel correu pra praia pra fazer um levantamento das condições de trabalho. Uma vez que seus suplementos caseiros já haviam se esgotado. Faltava tudo. Culpa da maresia.
      Já na praia avistou a criançada que revirava o acervo trazido pelo mar. Uma farra. Era boneca sem perna e sem cabeça. Carrinho de plástico desbotado, com rodinhas e sem rodinhas. Soldadinhos de plástico. Bola de capotão murcha. Mas para aquelas crianças que nada tinham era como achar uma canastra de pura fantasia infantil. Era só aguçar a imaginação que aqueles brinquedos ficavam perfeitos. Exoticamente perfeitos.
          - Dá até graça. - Dizia Seu Manuel.
        - Que coisa festosa, essas crianças, parecem até um cardume de panaguaiú na guanxuma!
      Assim era o dia na praia do Felix onde um desses meninos nasceu. Outro divertimento desse menino era se empapuçar de laranja mixirica e competir no campeonato de cuspida de caroço. Dependendo de onde voasse o caroço, era de lá que viria sua noiva. Não sei porque ele proclamava a quatro ventos que a sua seria do Itaguá. Sempre a sua semente da laranja era arremessada para lá.
Logo cedo a vida exigiu desse menino. Com quatorze anos fez sua primeira viagem redonda. Um estágio de um ano num barco de pesca traineira. Aprendeu a tirar de letra as tempestades de frio, de vento e de mar grande. Formou-se na universidade da coragem. Com direito a um amor em cada porto. Com o dever de ter calma necessária para resolver problemas. Ganhou inteligência e sensibilidade no tratamento com seu próximo.
       Seu Manuel dizia que é o mar que forma homens destemidos e de caráter. Religioso, tem Deus como seu mestre e o Palmeiras como paixão.
       A vida difícil na infância, a falta de bens materiais não o tirou do caminho do bem. Mas forjou a valorização de cada coisa conseguida com dificuldade.
       Hoje, mestre pescador, em seu meio século de vida, é amigo de verdade dos amigos, é irmão de verdade dos irmãos, trabalhador destemido, feliz, alegre, festeiro, companheiro, amante, conciliador e poeta.
       Do Felix para minha vida, esse menino trouxe a certeza que era eu a escolhida desde sempre. Afinal, sou do Itaguá.
        Como diria Seu Manuel:
        - O que está escrito por Deus, ninguém rabisca!

        Neste Dia dos Namorados, feliz aniversário, Amor!

FONTE: O GUARUÇÁ
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.

ESPORTE E CIDADANIA


                Quando eu era criança, além das remadas, braçadas e correria no lagamar, pouca coisa se falava na área de esportes em Ubatuba. Também nem televisão, revistas ou jornais tínhamos.

                No domingo que passou (09 de junho), novamente eu acompanhei a Associação Nunes de Karatê. O meu filho – Estevan – foi um dos atletas a viajar 250 quilômetros a fim de aperfeiçoar o seu desempenho. Foi o XX Torneio da Amizade de Karatê-do, em Arujá (SP).
                Ao todo foram dez atletas espalhados nas diversas categorias. E todos foram muito bem!  

                Raffaella Rezende (ouro e prata), Maria Rosa  Etzel (bronze), Terezinha Maria (ouro), Alexandre Domingos (ouro e prata), Leonardo Nunes (prata e bronze), Estevan José (ouro), Rômulo Marcondes (5º lugar), Ruan R. Etzel (ouro), José Adriano (6º lugar) e Weider Nunes (prata). Mais importante que as conquistas foi a oportunidade de convivência e de crescimento de todos, inclusive dos familiares dos competidores.


                Um dos objetivos deste texto é agradecer aos pais dos alunos da Associação e demais apoiadores: Rocha Sorvetes, Pelé (do Supermercado Paulista). Mercadinho e Padaria São Bento e Castellar Engenharia, cuja sede está em Curitiba – PR. Parabéns por acreditarem no potencial dos atletas, ajudando a abrilhantar um pouco mais a nossa cidade, fortalecendo a esperança de um mundo melhor!
                Ah! Que legal! E pensar que os mais velhos, ao nos verem brincando de luta na fofa areia da praia, diziam: "É bom pararem com isso! Ficar aloitando à toa pode deixar vocês bacatudos, rendidos!".

terça-feira, 11 de junho de 2013

A TITIA BENZEDEIRA

Parte do painel do CANTAMAR  (Arte: Júlio Mendes)

                Zé, coloque em seu BLOG :
          Disse Goethe: "NEM TODOS OS CAMINHOS SÃO PARA TODOS OS CAMINHANTES".
É verdade! E sendo assim, eu digo que O MEU CHÃO NÃO É DE TERRA, NÃO TEM TRILHO DE CAMINHO, NÃO TEM ESQUINA DE RUA E NEM RUA COM ESQUINA. O CAMINHO DE MEU CHÃO É O MEU PRESSENTIMENTO, SIGO O BRILHO DO SOL, VOLTO NO RASTRO DA LUA. 
                                                                    Julinho Mendes.
       
        A tia Terezinha há pouco nos deixou. Era a última tia benzedeira. Agora, na minha família não tem mais ninguém. As outras (tia Maria Mesquita, tia Aninha, tia Martinha, tia Apolônia...) já se foram faz um tempinho, “dentro do combinado”. Creio que era a única no bairro do Ipiranguinha. Não sei como vão se virar os muitos pobres que a procuravam com tanta esperança de serem aliviadas.
                No começo do ano acompanhei o caso do Beto, um pedreiro esforçado que havia contraído leishmaniose no Pé-da-Serra, num serviço de manutenção por ali. Semanalmente ele estava na casa da titia para uma sessão de benzimento. Tomava um café depois de mais de meia-hora de rezas e imposições de mãos; nunca saía sem levar uns matos para banhar a ferida feia que lhe roía o calcanhar. “É mosquito-palha que fez isso, primo. Mas a titia vai curar”. De nada adiantava eu recomendar que fosse ao Posto de Saúde procurar uma orientação do doutor Teófilo. “Para mim, bastam a fé e o poder que a titia tem”.
                Ontem, pedalando pela estrada com uma caixa de ferramentas na garupa, encontrei o Beto. Ainda estava com uniforme de trabalho, cheio de disposição de chegar em casa, tomar um banho, encher a pança e descansar para enfrentar a luta que continua a cada dia. Perguntei da ferida. “Já passou; só tem a cicatriz! Valeu muito o poder da titia! Se não fosse as suas rezas e tudo aquilo que ela me indicava eu teria perdido a perna. Agora, o que decidiu de vez foi a pimenta!”.

                Como assim? Pimenta? “É isso, primo. Por fim a titia me deu umas dez malaguetas e a seguinte ordem: ‘Faça em duas vezes esse punhado. Amasse bem em cima de uma pedra, acrescente um punhadinho de sal e coloque em cima da carne viva. O Nosso Senhor vai te curar. Só não esqueça de agradecer depois’. E foi mesmo! Agora não sinto nada! A fé da titia ajuntada aquele monte de mato e ao poder da malagueta matou o veneno do mosquito-palha, graças à Deus!”. 

sexta-feira, 7 de junho de 2013

ESTE MENINO VIVE DIZENDO HERESIA

Mestre Dito Fernandes também representa a religiosidade popular
                 Neste final de semana acontece a festa no Sertão do Puruba, na Comunidade Católica que tem Dito Fernandes, dona Mocinha, Pedro Brandão e tanta gente de raiz caiçara. Espero que muita gente possa desfrutar das atividades, especialmente da Congada que só ali tem. Por isso reaproveito um texto antigo (mas nem tanto!) para permitir reflexões acerca da cultura popular, da criatividade dos pobres no cultivo da esperança.

               O título  - Este menino vive dizendo heresia - vem de uma frase é do saudoso tio Maneco Mesquita, um caiçara que se preocupava muito com a imagem, com a sua aparência pessoal. Explico melhor: nunca se viu ele sair de casa sem estar devidamente vestido (roupas passadas, sapatos brilhantes, chapéu impecável, lenço no bolso etc.). Nesse caso, ele se referia ao meu primo Fernando, só que não me recordo mais do contexto, porque foi que ele afirmou isso.  Só a palavra heresia me interessava. O tio Clemente foi o meu socorro.
                Com a paciência que lhe era peculiar, o titio, um santista devoto, admirador fanático do Pelé, me explicou que heresia era uma palavra grega; queria significar escolha, preferência para discordar de alguma coisa. Então eu deduzi que o Fernandinho, vulgo “Chico Pomba”, era alguém questionador.
                Mais adiante, outro tio – o Tonico – deu a segunda versão: heresia era um pensamento religioso diferente da doutrina da igreja católica. Herético era aquele que merecia ser perseguido e punido porque não aceitava os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana.
                O meu raciocínio neste assunto deu outros passos conforme eu cresci, fui lendo e estudando. As pesquisas históricas e a literatura me ajudaram muito. Foi quando eu passei a imaginar os meus antigos passando por apuros caso vivessem em outra época, próximo dos inquisidores e de seus tribunais que apreciavam a morte pela fogueira. O que seria das imprecações maravilhosas do Mané Bento? E as benzimentos da tia Aninha, da tia Maria, da dona Josefa, do Mané Mariano e de tantos outros? Como terminaria a tia Maria da Barra que ensinava o catecismo dizendo que Jesus tinha dois apóstolos por nome de Judas: o "Matadeus" e o "Carioca"? E o João Pimenta, o “incréu”, com o seu linguajar herético, que fim teria? Da religiosidade popular, então, nada seria permitido!
                Desconfio que muitos desses caiçaras se desesperariam em saber que uma tal de Joana D’Arc, depois de acusada de heresia, foi queimada viva em trinta de maio de 1431, na França. Nem sei se, devido ao isolamento no qual vivíamos, eles souberam que, em 1920, o papa Bento XV a declarou santa.
                Quantas heresias! 
                Ainda bem!

quarta-feira, 5 de junho de 2013

AO CANTAR DO GALO


galo
           Na madrugada, quando o escuro ainda toma conta do
 mundo caiçara, os galos cantam chamando a manhã, 
trazendo tantas recordações, inspirando tantas 
poesias,inclusive esta do mano Mingo.


Antigamente era o canto do galo
nas fímbrias da madrugada
que franqueava os caminhos
às pessoas de bem:
pescadores partindo para o mar,
lavradores nas trilhas das roças,
ou viajantes partindo
(talvez por nomadismo atávico),
pois aqui  não faltava peixe pra comer
nem água boa de beber.

terça-feira, 4 de junho de 2013

ZÉ DO CINEMA


       
                Ontem, na madrugada, faleceu o amigo Zé Aparecido, o “Zé do Cinema”.
                Natural de São Luiz do Paraitinga, o Zé era professor das séries iniciais, mas sempre teve um outro emprego para aumentar a renda. “Quem mandou ser professor?!”. O apelido se devia ao tempo em que trabalhou no antigo Cine Iperoig, na Praça da Matriz (Ubatuba), onde hoje se localiza o teatro. Lembro-me muito bem dele fazendo promoções, indo às escolas para anunciar o filme Carlota Joaquina, rainha do Brasil. A semana inteira a sala ficou lotada.
                Para homenagear o amigo Zé, reapresento o texto a respeito da árvore que nós plantamos na escola Idalina (Bairro Ipiranguinha). Como seria bom se os moradores deste bairro e os alunos se voltassem para a ideologia preservacionista (em todos os sentidos)!
Era assim...
Agora está assim...
     
Dando estes deliciosos frutos.


                     Cheguei agora da escola estadual do bairro (Idalina A. Graça). Aproveitei para recolher alguns frutos (cajá-manga) da frondosa árvore dali. Afinal, cair frutos era o previsível após o vento forte da madrugada. Outra pessoa fez o mesmo cálculo: encheu uma sacola e se foi.


                Pois bem, é sobre a história desse pé de cajá-manga, que há muitos anos vem dando alegria às pessoas, que eu escrevo agora. Tudo começou em setembro de 1999, quando eu e mais cinco professores decidimos promover um gesto concreto, que marcasse a entrada da primavera. Iríamos plantar algumas árvores no terreno da escola para abrandar o calor em épocas quentes, oferecer sombras e frutos, dar mais equilíbrio no ambiente etc. Afinal, quem não prefere um espaço arborizado para quebrar a frieza e/ou feiura das nossas construções? Assim fomos até o amigo Arisson, no Monte Valério, escolhemos algumas mudas e plantamos no referido local (do bairro do Ipiranguinha). Um pé de jambo ficou perto do portão, em seguida vieram as amendoeiras perto de um pé de uva japonesa que já estava bem crescido. Eu decidi, juntamente com a finada Cleuza e o José Aparecido,  que o nosso cajá-manga ficaria o mais protegido possível, perto da secretaria da escola. E ali foi plantado o ser que media 30 ou 40 centímetros. Era o dia 21 de setembro de 1999.


                Ao longo desses anos todos, sempre vejo que as pessoas, sobretudo os meninos, aproveitam bem, apreciam os frutos. Estão constantemente vasculhando por sua volta. Ela, a árvore,  cresceu muito.              Agora, calculo que a gigante, distante do velho tarumã alguns metros, esteja alcançando os seus 15 metros de altura. Também tem um diâmetro considerável. Está linda! Deixa muita gente contente! Só um telhado construído recentemente está sendo castigado pelo impacto das frutas que despencam a partir da metade do outono. Outra coisa ridícula são as marcas deixadas em seu tronco por “seres sem-noção”.


                Para encerrar: de acordo com quem produziu a muda, antigo funcionário da ONG WWF (Fundo Mundial para a Natureza), cuja sede era no Monte Valério, a semente primeira foi recolhido no terreiro da antiga  Fazenda Velha, dos Irmãos Chiéus, os fabricantes da nossa pinga Ubatubana, aquela que deixou muita saudade. Pesquisando um pouco mais, descobri que a origem desta espécie está na Oceania, bem longe daqui. Então, não poderíamos  chamar os navegantes portugueses de “ótimos polinizadores”?

                    É assim, meu amigo Zé! Ficam as lembranças dos bons momentos vividos em comum.

domingo, 2 de junho de 2013

NORTE E SUL

Porto do Paru - Enseada (Arquivo JRS)

                Eu, nascido no lado do Sul, nem fazia ideia do que era o lado do Norte. Só no final da década de 1960, quando os meus tios começaram a trabalhar na A.S.E.L., com o Frei Pio, foi que comecei a entender isso.
                O lado do Sul é todo mundo que nasceu desde a Toninhas até a Tabatinga; o lado do Norte é todo mundo que está depois do Perequê-açu. Hoje parece não haver nenhum sentido nessa divisão, mas antigamente...dependendo do que falasse ou fizesse, lá vinha o dizer: “Também pudera, né? É gente do Sul!”. Ou: “Pelo falar só pode ser do Norte!”
                O Sul, desde a década de 1950, estava conectado com o mundo. Ninguém mais falava “vós mecê”. O Norte permaneceu isolado até a segunda metade de 1970, quando a BR-101 alcançou Paraty. Porém, assim definiu bem o Olympio Mendonça:
                “A principal característica do povo caiçara desta região [Norte] talvez seja a sua grande adequação aos movimentos da natureza que o cerca e envolve. Enfrenta os problemas, ora com a calma de uma mata em repouso, ora com o furor de um mar bravio. Aparentemente  é tranquilo, equilibrado, e pacífico; pode, porém, assombrar pela sua força e tenacidade.

                “Aqui tem gente que quebra um homem ao meio com um        soco e não há mais quem endireita...Assim explicou um caiçara...Mas que jamais se utilizou dessa força para a parte belicosa”. 

                Via de regra, não blasfema contra as intempéries e se acomoda ao sol ou à chuva, à fartura ou à carência, à sorte ou ao infortúnio. Enfatizando, quando enfrenta os fenômenos naturais não força nenhum acontecimento, como bem atesta o verso de um calango colhido no Ubatumirim, em 1972:

                “Peixe de lagoa é sapo/ bagre de mangue é socó/ Tainha também é peixe/ mais não pega no anzó./ Quando não qué pegá,/ não aforce que é pió”.


                O caiçara é, antes de tudo, um equilíbrio, uma adequação ecológica, um prolongamento natural da natureza”.