No tempo ruim Seu Manuel não descia sua canoa pro
mar. Restava-lhe olhar da janela da casa as condições de navegação. Uma vez
que a maresia ou o mar grosso como chamava abocanhava todo o jundu da praia.
O velho pescador dizia sempre:
- Isso aí é o mar fazendo uma faxina. Ele está
devolvendo tudo que não lhe pertence pra terra. Pode esperar que assim que
amansar essa força de água, o Canto Bravo vai estar lotado de tudo que é
coisa.
Dito e feito. Quando o mar acalmou, Seu Manuel
correu pra praia pra fazer um levantamento das condições de trabalho. Uma vez
que seus suplementos caseiros já haviam se esgotado. Faltava tudo. Culpa da
maresia.
Já na praia avistou a criançada que revirava o
acervo trazido pelo mar. Uma farra. Era boneca sem perna e sem cabeça.
Carrinho de plástico desbotado, com rodinhas e sem rodinhas. Soldadinhos de
plástico. Bola de capotão murcha. Mas para aquelas crianças que nada tinham
era como achar uma canastra de pura fantasia infantil. Era só aguçar a
imaginação que aqueles brinquedos ficavam perfeitos. Exoticamente perfeitos.
- Dá até graça. - Dizia Seu Manuel.
- Que coisa festosa, essas crianças, parecem até
um cardume de panaguaiú na guanxuma!
Assim era o dia na praia do Felix onde um desses
meninos nasceu. Outro divertimento desse menino era se empapuçar de laranja
mixirica e competir no campeonato de cuspida de caroço. Dependendo de onde
voasse o caroço, era de lá que viria sua noiva. Não sei porque ele proclamava
a quatro ventos que a sua seria do Itaguá. Sempre a sua semente da laranja
era arremessada para lá.
Logo cedo a vida exigiu desse menino. Com
quatorze anos fez sua primeira viagem redonda. Um estágio de um ano num barco
de pesca traineira. Aprendeu a tirar de letra as tempestades de frio, de
vento e de mar grande. Formou-se na universidade da coragem. Com direito a um
amor em cada porto. Com o dever de ter calma necessária para resolver
problemas. Ganhou inteligência e sensibilidade no tratamento com seu próximo.
Seu Manuel dizia que é o mar que forma homens
destemidos e de caráter. Religioso, tem Deus como seu mestre e o Palmeiras
como paixão.
A vida difícil na infância, a falta de bens
materiais não o tirou do caminho do bem. Mas forjou a valorização de cada
coisa conseguida com dificuldade.
Hoje, mestre pescador, em seu meio século de
vida, é amigo de verdade dos amigos, é irmão de verdade dos irmãos,
trabalhador destemido, feliz, alegre, festeiro, companheiro, amante,
conciliador e poeta.
Do Felix para minha vida, esse menino trouxe a
certeza que era eu a escolhida desde sempre. Afinal, sou do Itaguá.
Como diria Seu Manuel:
- O que está escrito por Deus, ninguém rabisca!
Neste Dia dos Namorados, feliz aniversário, Amor!
FONTE: O GUARUÇÁ
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos
Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da
sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá
Ubatuba.
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