quarta-feira, 12 de outubro de 2022

UM UNIVERSO MUITO MAIS GRANDIOSO


Puxada de rede na praia do Itaguá - década de 1980 (Arquivo Caiçara Ubatuba)

    Orgulhosamente começo este a partir da frase do amigo Peter Santos Németh (o “Alemão”) em relação à Ilha Anchieta, antiga Ilha dos Porcos: 


“A Ilha Anchieta é um universo mais grandioso e complexo do que um simplório presídio”. 


      Foi a História da Ilha Anchieta e o grande envolvimento do Peter com a vida dos pescadores caiçaras que desembocou nesse trabalho muito importante (A TRADIÇÃO PESQUEIRA CAIÇARA DOS MARES DA ILHA ANCHIETA: A INTERDIÇÃO DOS TERRITÓRIOS PESQUEIROS ANCESTRAIS  E A REPRODUÇÃO SOCIOCULTURAL LOCAL). Me apegarei a uma parte que eu acompanhei bem. Afinal, eu nasci quando as comunidades do lado Sul estavam deixando seu isolamento cultural devido às levas  de turistas advindas da abertura da estrada Ubatuba-Caraguatatuba, em meados do século XX. Disso afloraram os loteamentos, as construções pelos jundus e costeiras, os muros demarcando terrenos, as modernas formas de exploração e de alienação.

 

O relativo isolamento do caiçara paulista, causado por sucessivos altos e baixos econômicos (VIANNA, 2008: p.258) do litoral sudeste brasileiro, deve ser visto não como um isolamento de fato. Sempre que necessário essas pequenas comunidades litorâneas, “aproveitando-se das menores condições que pudessem ser favoráveis ao homem”, gravitaram economicamente em torno dos grandes centros comerciais, “enviando-lhes sua parca produção - farinha de mandioca, peixe, algum café” e aguardente em canoas de voga. Viagens que proporcionaram a “oportunidade de se ganhar um excedente que complementasse a produção doméstica em comunidades relativamente auto-suficientes”. (MUSSOLINI, 1980: p.221-226).

Foi esse isolamento relativo que garantiu a tenência de saberes e fazeres culturalmente diferenciados por essas comunidades, e que de certo modo manteve o patrimônio cultural tradicional protegido até meados dos anos 30, quando por pressão de um novo mercado emergente consumidor de pescado, essas comunidades caiçaras passaram a se dedicar mais intensivamente à pesca e ao universo marítimo (DIEGUES, 1973;1983; ADAMS, 2000).

Essa mudança fez surgir entre os caiçaras o que Mourão chamou de “ideologia da pesca”, além de uma nova noção de trabalho: Em vista disso, atualmente, os antigos caiçaras paulistas, hoje em parte convertidos em pescadores exclusivos, reordenam seu modo de vida e seu referencial cultural, os quais passam a se articular mais intensamente, ao contrário do passado, com o universo marítimo. (ADAMS, 2000: p.155). O caiçara passou então a agregar novos valores externos, como pescar além das necessidades de “subsistência”, gerando excedente suficiente para comprar pequenos motores e redes de nylon que melhoravam os resultados da pesca, alimentando o círculo vicioso de exploração e dependência econômica que culminou na crise de sobrepesca dos anos 1970.

A renda na pescaria é meio fraca né... antes Alemão, prá começá: num tinha água, num tinha luz, essas coisa pra pagá (contas), você andava sossegado. Adepois, também, claro, as coisa foram mudando, que tinha água e luz, você tinha que se daná porque no fim do mês você tinha que tê o dinheiro né? Você tava devendo... então mudô muito... (DOS SANTOS, 2015, comunicação pessoal)

A princípio essas novas visões de mundo e valores não tradicionais, agregados pelos pescadores locais, geraram um grande impacto sociocultural, o da sobrepesca estimulada pelo aumento do consumo urbano de pescados. Pescar muito além do volume consumido localmente, causou a sobre-explotação dos estoques pesqueiros através do uso de técnicas mais agressivas (ALMEIDA, 2005: p.58), tais como o arrasto de porta motorizado, e as parelhas.

A sobrepesca resulta da erosão das normas de autocontrole, da prudência e da solidariedade comunitária. Ela ocorre quando os pescadores não se preocupam com o recurso, com sua comunidade e com os outros. Então sua capacidade de se comunicarem entre si, de concordarem e cooperarem se perde. (Jentoft, 2000 apud BERKES et al., 2006: p.251)

Outra característica observada localmente foi a do peixe capturado ser considerado pelos pescadores locais, como “dinheiro em caixa”. Chegando à praia, o balaio de peixes se transforma imediatamente em “dinheiro vivo” (DIEGUES, 1983: p.152), pois a venda é feita diretamente ao consumidor (Figura 23), que muitas vezes está aguardando a chegada do pescador (KANT DE LIMA e PEREIRA, 1997: p.238).


       Agora, concluo neste tempo de tantos pobres enganados pelas mentiras disseminadas nas redes sociais e em muitas igreja: na verdade, cada ilha deste território caiçara, cada praia, cada costeira, cada mangue... enfim, todo este chão tão caro ao nosso povo é um universo muito grandioso para ser colocado apenas como fonte de riqueza para uns pouquíssimos. Prova disso, dessa escalada contra os mais pobres, sobretudo àqueles que dependem do mar mais diretamente, que garantem nossos pescados, é a PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N° 3, DE 2022 (nº 39/2011, na Câmara dos Deputados) que vai na direção de propor uma simples mudança de transferência de propriedade dessas terras do governo federal para estados e municípios. Mas, na verdade, é um aceno para que esses entes possam privatizar, edificar, aterrar etc. O projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados. Ubatuba e todo território do povo caiçara só tem a perder caso as riquezas públicas garantidas pela Constituição de 1988 de que “as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar” (Artigo 10 da Lei nº 7.661) passem ao controle de grupos econômicos e políticos locais, resultando em privilégios de poucos. Podemos muito brevemente começar uma prosa assim: “No tempo em que essas praias, essas ilhas e essas costeiras eram do povo...”. Cruz credo! Contra esta possibilidade, me apego a uma frase de Paulo Freire: "Esperançar é ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras".


Recomendo a leitura: A TRADIÇÃO PESQUEIRA CAIÇARA DOS MARES DA ILHA ANCHIETA: A INTERDIÇÃO DOS TERRITÓRIOS PESQUEIROS ANCESTRAIS  E A REPRODUÇÃO SOCIOCULTURAL LOCAL, desse autor (Peter) da praia da Enseada, em Ubatuba.

Nenhum comentário:

Postar um comentário