sexta-feira, 7 de outubro de 2022

AS BELAS MEMÓRIAS DA TIA HELÔ

            

Capa do livro - Arquivo JRS

        Há apenas alguns dias descobri uma falha em minhas publicações no blog. Alguns textos foram convertidos em rascunhos, desapareceram para os leitores. Este - As belas memórias da Tia Helô, testemunho maravilhoso do estimado Jorge Ivam, era um deles. Lógico que precisava ser resgatado! Afinal, trata-se da apreciação de uma memorialista fantástica: a Tia Helô. 

        Tia Helô, quando eu a conheci, exercia a profissão de professora na E.E. Capitão Deolindo, em Ubatuba. Era Mestra em Língua Portuguesa. Na mesma época, quando uma poesia minha foi classificada no concurso da Fundart, foi essa pessoa maravilhosa quem se ofereceu para a declamação na noite das premiações. 

        Desde já peço desculpas a quem acompanha o blog por tal falha não percebida há tempo. E peço perdão ao amigo Jorge por apenas agora recuperar o seu texto primoroso.


As belas memórias de Tia Helô

        Na semana passada, Michael Keep comentava, numa crônica para o suplemento Equilíbrio da Folha de S. Paulo, que muitas vezes o leitor fica decepcionado ao conhecer o escritor, pois julga, equivocadamente, que a fala deste tem a mesma sedução de sua escrita.

          Lembrei-me de Keep quando comecei a ler “A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta”, de Heloísa Maria Salles Teixeira, e, por pensar que não é raro também encontrarmos pessoas que são extremamente interessantes quando falam e burocráticas quando escrevem, fiz-me esta pergunta: será que o livro da Tia Helô é tão sedutor quanto sua fala? É que essa mulher espirituosa só precisa de poucos minutos de conversa para cativar o interlocutor, ser o centro das atenções. Nas poucas vezes que tive contato com ela, fiquei fascinado com sua energia, sua inteligência, seu carisma. Com certeza, se tivesse seguido a carreira de atriz, seria uma estrela conhecida mundialmente.

        A minha pergunta obteve resposta logo. As primeiras páginas já me fisgaram. Tia Helô escreve com elegância e correção. Seu texto tem a virtude de fazer o leitor esquecer-se de que está lendo as memórias de uma professora de português. O pedantismo, típico de tantos mestres dessa disciplina, não achou lugar em sua escrita, que flui com a mesma naturalidade e o mesmo encanto de sua fala.

            De leitura agradabilíssima, além de extremamente formativa e informativa, essa obra deveria ser obrigatória nos concursos públicos e nas escolas de nosso município. 

            Muitos fatores concorrem para que a leitura desse livro seja prazerosa. A leveza do estilo da Tia Helô, seu senso de humor, sua seleção dos fatos. Este quesito é crucial.  Ao olhar para trás, um memorialista precisa selecionar criteriosamente o que deve  entrar no livro, isto é, deve ponderar o que é essencial e o que é (senão supérfluo) dispensável. Imagino o quanto ela deve ter ficado angustiada para condensar, nesse livro, quase um século de uma vida vivida intensamente. O resultado mostra, entretanto,  que soube lidar magistralmente  com isso. Passo a passo, os fatos vão sendo tratados na justa medida: o que merecia mais delonga recebeu atenção maior, o que era mais episódico foi relatado com brevidade. Tudo está em seu devido lugar.

            São formativas as páginas desse livro porque, entre outros motivos, mostram o percurso de uma pessoa exemplar, uma mulher que enfrentou os percalços da vida sem se abater, sem jamais perder a dignidade e muito menos lamentar-se. Ficou órfã de pai e mãe ainda criança, viu dois filhos morrerem jovens; sofreu muito, mas essas e outras tragédias não foram suficientes para tirar-lhe o desejo de viver, lutar.

            E o que dizer da sua garra, da sua entrega na vida profissional? Que desprendimento! (Como atestam os depoimentos de seus alunos.). Que dedicação para ensinar e aprender! Quantos professores se disporiam (ou se dispõem mesmo com todas as facilidades de hoje) a arrostar a oposição do cônjuge e arriscar a vida diariamente  subindo e descendo à noite a  Serra do Mar “simplesmente” para melhorar sua formação?  E quantos encontrariam, no meio de sua cansativa labuta,  ânimo para a luta sindical?  

            Esse livro é formativo também na demonstração de tolerância com o outro. É de se supor que a autora, em algum momento de sua longa vida,  tenha sofrido alguma injustiça ou tenha sido vítima de alguma intriga em virtude da inveja que devia (involuntariamente) causar, entretanto, sabiamente não usa suas memórias para acertar as contas com ninguém. Passa por cima de qualquer dissabor que possa ter tido e só menciona pessoas para agradecer-lhes a amizade ou indicar-lhes qualidades. Nunca para criticá-las.  Ao contrário, quando revela alguma “desavença” é para desculpar-se, não para expressar mágoas. Por exemplo, atribui à sua imaturidade as discórdias que tinha com a sogra. Acusa-se de não ter sabido, na época, respeitar a cultura local, os valores da comunidade.

            Não se trata de síndrome de Pollyana. É que tia Helô está acima das questiúnculas a que muitos indivíduos dão uma enorme importância. Procura compreender seus semelhantes em vez de julgá-los. Por isso é tão amada, por isso permanecerá sempre como um exemplo a ser seguido e, como diz Camões, vai “da lei da Morte se libertando”.

            Seu livro também tem imenso valor informativo, porque é obra  de quem pode dizer: “Meninos, eu vi”.Tia Helô é testemunha privilegiada das numerosas mudanças pelas quais o Litoral Norte, o Vale do Paraíba e, (Por que não dizer?) o Brasil passaram nesse período de oito décadas e meia.  Ela, que conviveu com a elite e com os mais humildes moradores de comunidades pesqueiras tem muito a dizer e diz, inclusive comprovando com fotos magníficas. Como no ditado popular: “mata a cobra e mostra o pau”.          Por tudo isso e muito mais - que você, leitor, poderá descobrir - a leitura de  “A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta” é indispensável.     

Autor: Jorge Ivam

    

(Observação: o texto original data do final de janeiro de 2013)

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