sábado, 1 de junho de 2019

UMA PEQUENA PEÇA NUM GRANDE JOGO

"Rebeldes" (Arte: Estevan)


               Não é de hoje que eu percebo o sentido da frase "algumas coisas devem ser escondidas, viver na ignorância". Talvez precise entender melhor para melhorar a minha atuação junto às injustiças, mas... Entender eu entendo!

               O finado Florisvaldo, o “Flor”, um baiano que escolheu Ubatuba para viver, no tempo em que eu era criança, me contava de um conterrâneo seu que ele muito admirava e que era perseguido pelas Forças Armadas: “Zezinho, você é muito criança ainda, mas vou lhe contar de um baiano arretado, desses que não tem medo de nada. O nome dele é Marighella”. Nunca eu iria imaginar que existia uma pessoa com esse nome. Só sei que o “Flor” se orgulhava desse baiano. “É um lutador contra estes militares que estão aí, garantindo esta ditadura que é favorável aos estados Unidos”. Eu não entendia nada, mas gostava de ver a empolgação das palavras cheias de sotaque daquele baiano, amigo do meu pai a tal ponto de ser o padrinho de um dos meus irmãos, do Clóvis.

               Florisvaldo era pedreiro, vivia nas obras como o meu pai. De vez em quando estava puxando rede na praia da Maranduba junto com o Velho Zacarias, meu pai e outros caiçaras pescadores. Escutava muito antes de dar qualquer opinião. Por isso eu também o escutava com maior atenção. “No mundo, Zezinho, há duas ordens fortes: os russos e os americanos dos Estados Unidos. Eles disputam entre eles e buscam aliados entre os países. É por isso que o Marighella diz que estamos entre os capitalistas e os comunistas. Agora, por exemplo, graças ao apoio dos militares, quem continua prevalecendo no nosso Brasil são os capitalistas. É por isso que as empresas deles estão se espalhando em nossa terra”. Mais tarde, estudando a História, aprendi que esse tempo é conhecido como Guerra Fria. Na gozação com alguns colegas logo imaginei usar cobertores para esquentá-la. Era a forma de desprezar o puxa-saquismo do nosso professor, contrariando a posição do nosso “Flor”. Lógico! Ele “era rico” [tinha uma variant verde, do ano], enquanto o “Flor” sempre suou para viver do nosso jeito.  E na pobreza dele ele explicou um dia: “Esse baiano Marighella, admirado por este baiano Florisvaldo, vive por aí perseguido por ser um guerrilheiro urbano. Sabe o que é isto? É quem não se conforma com a ditadura no nosso país e parte para a luta armada nas grandes cidades. É nelas que estão os órgãos importantes, os grandes empresários e lideranças deste nosso chão. É por isso que escolhem agir assim. Na verdade, um guerrilheiro entende da situação política e toma uma posição que entende ser importante para a nossa libertação, para a libertação do nosso Brasil. Só não sei se as armas vão resolver muita coisa. O que precisa é estudar, Zezinho”. 

       Quem era o “Flor”? Alguém que tinha uma certeza: um grande jogo acontece a partir das pequenas peças. A sua situação de migrante, bem longe da sua adorada Bahia, atestava  essa verdade. Valeu para este caiçara conhecer o "Flor", receber a sua contribuição cultural. Valeu mesmo!!!
              

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