Gratuidade (Arquivo JRS) |
O dia amanheceu frio, do jeito
que eu gosto.
“Ai
foi que o barraco desabou/ nessa que o meu barco se perdeu/ nele tá gravado só você e eu”.
Como a justificativa do refrão do samba, a
prosa começa quando Idalina perdeu um anel valioso: seu marido, o Albino.
Idalina, mulher caiçara bem à
frente de seu tempo. Idalina que nos deixou dois livros (Terra Tamoia e Bom dia
Ubatuba) com a sua visão de mundo: do mundo caiçara de Ubatuba na segunda
metade do século XX. Idalina que era desenvolta e resolvia quase tudo sozinha.
Idalina que registrou o seguinte:
Amanhecera um dia límpido e sereno. A vida exigia de cada um de nós o
que pudéssemos dar. E eu tinha tão pouco a dar: apenas amor aos semelhantes,
que brotava espontâneo da minha alma sempre humilde, mas disposta a repartir o
quinhão de som com os friorentos em transição pelo planeta Terra.
Caminhava
alheada a tudo, quando a voz amiga de um velho pescador me chamou. Com seus
sessenta e quatro anos de idade, ele empurrava com vigor um carro de mão repleto
de pescadinhas frescas e bonitas.
“Onde
as pescaste?”.
“No
Itaguá, ali perto do lugar onde a senhora comprava meu pescado há trinta e
cinco anos atrás”.
Sorri
ao notar a saudade no seu falar. Olhei seus cabelos brancos, seus olhos vivos e
alegres, não como outrora. Senti saudade e muita pena, pois os homens para mim
são quase deuses. No íntimo, não aceito a destruição de meus irmãos e disse-lhe
isso em voz alta. Ele parou o carro na calçada, tirou o chapéu da cabeça e
perguntou inocentemente:
“Bom,
Dona, se somos quase deuses, o que são as mulheres?”.
“Elas
já nascem deusas, Antônio”.
De fato, as mulheres já nascem
deusas. Sabe por quê? Porque elas podem conceber, trazer ao mundo novos seres
humanos. Eu devo a vida a uma mulher; você também! As primeiras divindades, antes da ascensão do
machismo na mentalidade humana, eram femininas. Portanto, devemos combater
posturas machistas (veladas ou explícitas), criar novas criaturas baseadas em
novos mitos (palavras), imaginar novas realidades capazes de uma nova humanidade. A primeira atitude é
perceber e combater o machismo nas mídias sociais e em nosso entorno. A Idalina
há muitas décadas atrás estava certa: as mulheres já nascem deusas. Agora só você e eu.
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