domingo, 9 de junho de 2019

SÓ VOCÊ E EU

Gratuidade (Arquivo JRS)


               O dia amanheceu frio, do jeito que eu gosto.

               “Ai foi que o barraco desabou/ nessa que o meu barco se perdeu/ nele tá gravado só você e eu”.

               Como a justificativa do refrão do samba, a prosa começa quando Idalina perdeu um anel valioso: seu marido, o Albino.

               Idalina, mulher caiçara bem à frente de seu tempo. Idalina que nos deixou dois livros (Terra Tamoia e Bom dia Ubatuba) com a sua visão de mundo: do mundo caiçara de Ubatuba na segunda metade do século XX. Idalina que era desenvolta e resolvia quase tudo sozinha. Idalina que registrou o seguinte:

               Amanhecera um dia límpido e sereno. A vida exigia de cada um de nós o que pudéssemos dar. E eu tinha tão pouco a dar: apenas amor aos semelhantes, que brotava espontâneo da minha alma sempre humilde, mas disposta a repartir o quinhão de som com os friorentos em transição pelo planeta Terra.
               Caminhava alheada a tudo, quando a voz amiga de um velho pescador me chamou. Com seus sessenta e quatro anos de idade, ele empurrava com vigor um carro de mão repleto de pescadinhas frescas e bonitas.
               “Onde as pescaste?”.
               “No Itaguá, ali perto do lugar onde a senhora comprava meu pescado há trinta e cinco anos atrás”.
               Sorri ao notar a saudade no seu falar. Olhei seus cabelos brancos, seus olhos vivos e alegres, não como outrora. Senti saudade e muita pena, pois os homens para mim são quase deuses. No íntimo, não aceito a destruição de meus irmãos e disse-lhe isso em voz alta. Ele parou o carro na calçada, tirou o chapéu da cabeça e perguntou inocentemente:
               “Bom, Dona, se somos quase deuses, o que são as mulheres?”.
               “Elas já nascem deusas, Antônio”.

               De fato, as mulheres já nascem deusas. Sabe por quê? Porque elas podem conceber, trazer ao mundo novos seres humanos. Eu devo a vida a uma mulher; você também!  As primeiras divindades, antes da ascensão do machismo na mentalidade humana, eram femininas. Portanto, devemos combater posturas machistas (veladas ou explícitas), criar novas criaturas baseadas em novos mitos (palavras), imaginar novas realidades capazes de uma nova humanidade. A primeira atitude é perceber e combater o machismo nas mídias sociais e em nosso entorno. A Idalina há muitas décadas atrás estava certa: as mulheres já nascem deusas. Agora só você e eu.

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