sábado, 29 de junho de 2019

ESPERE SÓ!

Barcos enfeitados (Arquivo JRS)


Procissão marítima (Arquivo JRS)

Entrada da barra (Arquivo JRS)

            No dia 29 de junho, em Ubatuba, os pescadores celebram a festa de São Pedro Pescador. Barcos enfeitados... muita gente embarcada... e mais gente ainda na praia e na boca da barra, por onde entra e sai embarcação a todo  momento! Numa das embarcações, comandando a procissão marítima, segue o padre com a estátua do santo e a comitiva católica. Depois da benção dos anzóis no mar, lá no largo, todos retornam à terra firme para a missa campal. É a religiosidade popular contribuindo para a vida da cidade, alavancando o turismo. Pobres daqueles pescadores que não participam do evento, que não enxergam além daquilo que a crença oferece.

            Religião é manifestação cultural. Tudo (mitos, deuses, demônios, crenças etc.) pertence à cultura humana, faz parte de um saber acumulado ao longo da História que nos permite viver no coletivo de até mesmo milhões de pessoas. Tudo partindo de narrativas, de mitos a nos unir, fundamentando nossas disposições políticas, nossas agremiações religiosas, nossos rumos econômicos etc. Ou seja, as ficções nos edificam enquanto humanidade.

            Antigamente, era nas rodas de conversas que essas ficções se lapidavam. Hoje, as mídias diversas são eficientíssimas, sobretudo para modificar mitos que não estão em conformidade com os rumos de uma elite da sociedade. Qualquer um de nós conhece alguém que não é da elite, mas adotou o discurso da mesma. Por quê? Porque, na sua mente, operou uma manobra eficiente, capaz de controlar o seu corpo a favor de uma causa insana. Ou seja: ele foi dominado pelo discurso da classe dominante (que divide os empobrecidos para manter-se no domínio). Corpo e mente estão sob controle. E a religião enquanto instituição social é aliada dessa classe. Pode até existir facções teológicas libertadoras, mas elas não se expandem como o conservadorismo reinante, que alimenta a “moral de rebanho”. As religiões, creio eu, jamais irão endossar o mito da soberania do povo. O resultado mais evidente é o governo que aí se encontra, com atitudes e discursos que podem desembocar em guerras com o apoio de tanta gente religiosa. Já vimos tal situação em outras épocas (guerra santa, cruzadas, perseguição religiosa etc.).

            As igrejas, que se baseiam em mitos religiosos partilhados, não poderiam reconstruir suas ficções com narrativas em torno de cooperativas, de investimentos em preservação ambiental, em recuperação da vida  marinha e de outras iniciativas em prol da maioria marginalizada? Não poderia o evento divulgado no início deste ser uma festa de todos os pescadores, de ser espaço celebrativo de suas vitórias e lutas pensando, sobretudo, nas futuras gerações?

            Conforme já disse um historiador, “há apenas escolhas culturais, dentro de um conjunto assombroso de possibilidades”. Não espere só!



domingo, 23 de junho de 2019

FRUTA MARGINAL


      
Rio Iriri (Arquivo JRS)

Araçá-buia - noção do tamanho (Arquivo JRS)

Preciosas sementes (Arquivo JRS)

               Gente é assim! Gente nasce numa família enraizada num lugar, com a sua cultura. Essa cultura é a nossa cultura, a nossa herança. É o nosso capital cultural inicial! Com o passar do tempo, só vamos acrescentando, recebendo novas contribuições, reordenando nossos rumos, definindo novas diretrizes. Ao que parece, podemos ser fiéis aos nossos princípios ou adotar outros contrários até mesmo a nós mesmos, que beneficiam poucos e destroem comunidades.

               Essas comunidades são minorias, têm pouca ou nenhuma representatividade. Portanto, estão mais fragilizadas no sistema político e econômico. Sendo assim, facilmente se deixam enganar por interesseiros religiosos, políticos, imobiliários etc. E tem gente que também se aproveita de aspectos culturais das comunidades. Eu conheço gente nossa que diz apoiar a nossa cultura caiçara, mas abraça abertamente políticos que sempre barraram iniciativas populares, de apoio às comunidades; que aprovam leis facilitadoras aos exploradores, aos destruidores das nossas  condições ambientais etc. E pior: fazem discursos que vão na direção de manter os privilégios de poucos e pioram a situação dos mais pobres! O discurso a seguir ajuda a entender melhor o rumo da prosa:

               “É o seguinte, meu amigo: esse pessoal que mora ali há muito tempo não tem documento da terra. Alguém é dono, tem provas legais. Pelo visto, tudo aquilo vai virar loteamento. Quem estiver morando, caso tenha dinheiro, poderá comprar seu lote. Logo começa o serviço topográfico, as vias serão demarcadas e as máquinas entrarão em ação. É o justo”.

               Na posse daquela caiçara que nasceu e sempre viveu ali, eu encontrei o araçá-buia (também chamado de araçá-boi), recolhi três discretamente, esperei amadurecer e agora tenho as sementes. Elas certamente se desenvolverão em outros espaços, mas o seu lugar de origem, o terreno onde peguei as frutas, tem tudo para ser um local estéril, uma periferia abandonada, com lixos e esgotos que não fornecerão mais sementes, nem raízes, nem palmitos... Seus rios límpidos serão canais sujos. Seus filhos serão marginalizados de uma forma mais cruel. Entende agora o que é opção cultural? Depois não adianta reclamar que essa juventude nega a nossa cultura, não quer nem escutar os nossos causos etc. Nem adianta cantar, fazer dancinhas pra lá e pra cá, mas ser contra um enfrentamento real dos políticos da elite, dos especuladores e seus comparsas que aí estão atuantes. Na verdade, por ingenuidade e falta de reflexão - ou mau caráter! -, podemos estar aliados a esses princípios que matam culturas, que matam a nossa cultura caiçara, que nos mata.

               O que vemos é um massacre contra as nossas riquezas (via ideologia, via poder de polícia...). E assim desaparecem as matas e suas diversidades. Desaparecem nossos conhecimentos! Há quem diga ainda que isso é justo!?

sábado, 22 de junho de 2019

AULA NO SERTÃO



Aula no sertão (Arquivo JRS)

            No dia 19 de junho de 2019, eu, a professora Alícia e a turma do 3ºA, da E.E. “Florentina M. Sanchez”, passamos uma tarde de aula muito diferente: fomos acolhidos no Ubatumirim pelo professor Elizamar e equipe local. Na verdade, fomos ao sertão da Sesmaria do Ubatumirim.  Lá chegando, me lembrei de um morador antigo, do Melentino, cujo primeiro contato eu fiz em 1981, por ocasião do censo agropecuário.

            Na ida, o motorista do ônibus, muito camarada, parou no mirante da estrada para uma sessão de fotografias. Parabéns pelo gesto! Na estrada para o sertão, Elizamar nos aguardava. Assim que desembarcamos, começamos a trilha monitorada pelo anfitrião. No início, na primeira parada, ouvimos a explanação sobre os aspectos geográficos do lugar: serras, planície, rios, mata ciliar etc. O destaque foi para as transformações constantes, pela força das águas, dos caminhos de servidão. Andamos por uma mata exuberante, ouvindo os pássaros; de vez em quando algumas casas... Beleza!

            Ao chegarmos ao acesso da área do Elizamar, outro parceiro já nos aguardava para explicar o trabalho extrativista, de plantio e de preservação ambiental desenvolvida por eles. Nesse momento valeu tudo: desde experimentar cacau até tentar subir na palmeira pupunha. Parabéns aos meninos pela empolgação. Após contato com os demais familiares, nova explicação sobre a horta, o cultivo sob a mata, a produção de energia, o banheiro de serragem, a compostagem etc. E logo ali um chiqueiro para os curiosos apreciarem, com direito a escorregão no morro.

            O momento tão aguardado foi o do lanche: polpa de jiçara (ou juçara), café, leite, bolo, mandioca, banana... Tudo delicioso! Prosas e prosas, mas o pessoal se lembrou do rio, do tão esperado banho. Alguns corajosos enfrentaram a água fria, mas logo estávamos nos despedindo para o retorno. Ainda deu tempo de uns ousados se agarrarem a uma corda e se jogarem no rio no meio do caminho. Elizamar, a companheira e a filhinha foram conosco até onde estava o motorista e o ônibus nos esperando. Muito bom mesmo! Ah! “Longe, né?!?”. Agora o pessoal sabe o porquê do professor Elizamar deixa de dar aulas algumas vezes.

            Aproveito, hoje, para dar outras informações a respeito do espaço visitado, o chamado sertão da Sesmaria do Ubatumirim. Quem se interessar, pode procurar mais detalhes no meu blog (coisasdecaicara.blogspot.com). Trata-se de uma entrevista antiga que fiz com dona Sílvia Pollaco Patural: ela e o marido, ainda jovens, vieram viver no Brasil, cultivar bananas em Ubatumirim. O título é:

Franceses sonhando em terras de Ubatuba

        De fato as terras do Ubatumirim, sobretudo as da Sesmaria, nos agradaram muito. Aí fomos acolhidos na casa da família do Manoel Leopoldo. Para a dormida nos dispuseram uma sala com esteiras e penico, onde havia um montão de sapê secando. Era um calorão de janeiro; baratas passeavam por todos os lados. Ao abrirmos a porta para a entrada de frescor, também entraram os cachorros. Mesmo assim, nós, de tão cansados, desmaiamos. No dia seguinte fomos conhecer a Sesmaria, dos Nunes Pereira. Gostamos muito. Ainda bem que a volta para a cidade foi de canoa.
        Chegando à cidade, logo procuramos nos informar sobre a situação legal daquelas terras. Quem nos deu segurança e nos garantiu da propriedade dos Nunes Pereira  foi o coronel Ernesto de Oliveira, pai do “Filhinho” (da farmácia). Satisfeitos e cansados embarcamos no ônibus para Taubaté. A viagem durava na média de quatro horas, mas o tempo tinha de estar bom, sem chuva, senão...
        Após um breve período fizemos a segunda viagem para o Ubatumirim. Desta vez a noite nos alcançou na praia da Itamambuca. Novamente pedimos pouso, mas as condições estavam tão críticas, enquanto que o luar e a noite estava tão convidativos, que acabamos pegando uma  humilde coberta que nos ofereceram e fomos dormir nas areias da praia. Jean-Pierre somente ajeitou os “travesseiros” com a própria areia. Só sei que acordamos no dia seguinte com o sol brilhando e a maré quase nos alcançando os pés. Chegando no Ubatumirim nos reencontramos com o Mané Leopoldo e compramos a Sesmaria do Ubatumirim, que era dos Nunes Pereira. Ela distava seis ou sete quilômetros da praia. Mais tarde nós compramos mais uma posse.     Logo iniciamos a plantação de bananeiras, alcançando a marca, em poucos anos, de trinta mil pés.
        A primeira dificuldade sentida era com relação ao deslocamento, pois se perdia muito tempo indo a pé desde a cidade até o Ubatumirim. Me parece que pelo mar a distância era de vinte e dois quilômetros, enquanto que por terra, seguindo o caminho usual dos caiçaras, perfazia trinta e seis quilômetros.
        Eu trabalhava lecionando francês em Taubaté, enquanto o meu marido se dedicava com exclusividade ao nosso empreendimento em Ubatuba, pois tínhamos camaradas que precisavam ser orientados e acompanhados em seus trabalhos, senão... Dessa necessidade surgiu a ideia de se fazer um barco. Foi quando o nosso quintal em Taubaté se transformou num mini-estaleiro, recebendo as madeiras e o motor de centro-modelo Ford alemão.

        
         Após anos plantando, com vários funcionários (Dito Rolim, Melentino...), a plantação estava em franca produção, começando a dar lucro. Surgiu a necessidade de aprimorar o transporte dos produtos. Era o ano de 1958 quando compramos, na Casa Granadeiro, em Taubaté, um trator. Questão: Como trazer o trator para Ubatuba, depois levá-lo até o Ubatumirim? Solução: Desmontá-lo todinho, transportar pela rodovia e pelo mar, e, remontá-lo na roça, onde ficou definitivamente.
        Aconteceu a melhoria na estrada da Sesmaria para o trânsito adequado do trator. Para levar o trator até o bananal, Jean-Pierre abriu uma estrada de sete quilômetros, sem máquinas, apenas com foices e enxadas. No local denominado “gurita” foi preciso fazer uma ponte de madeira que fosse bem resistente para que pudesse passar o trator puxando a carreta carregada de bananas. Ele ainda ensinou um empregado chamado Freitas a dirigir o trator, dando algumas noções de mecânica; pensava, num futuro próximo, ensinar outros rapazes e montar um curso para a formação de técnicos agrícolas. Foi uma grande novidade. Era gostoso ver o trator repleto de meninos, com o meu marido passeando com eles; lotavam a carroceria. Essa condução era atrelada a um carroção que escoava toda a produção para a praia, onde um barco grande, cujo nome era Manaus,  comprava tudo”. (Observação: a entrevistada disse que a compra das terras da Sesmaria se efetivou em 1954).

sexta-feira, 21 de junho de 2019

É ROXO MESMO!

Visitando sertões (Arquivo JRS)

Maracujá roxo (Arquivo JRS)


               Tenho andado sempre atento para um monte de coisas desde que nasci. A gente é assim, vai se fazendo a partir da nossa herança cultural, das nossas curiosidades etc. Já publiquei um pouco de cada coisa, mas nem sempre me lembro de tudo que publiquei. Nesses dias, por exemplo, após uma visita ao sertão da Sesmaria do Ubatumirim, me recordei do saudoso Antônio Clemente, de quando o conheci em 1981. Na mesma época, perto dali, no Mané Grande, sertão do Pasto Grande, encontrei pela última vez o maracujá amarelo, daqueles pequenos e saborosos que se espalhavam nos capinzais e arbustos. Logo me veio à mente outra espécie de maracujá mais o comum: o roxo miúdo. “Ah! Tão saboroso!”. Na propriedade em que fui nesta semana, acompanhando alunos, recebi como resposta: “Aqui também não tem, faz tempo que não se vê”. Pensei na hora: “Também o espaço, mato natural dele, não existe mais! Agora se encheu de casa!”.

               Dias atrás, a amiga Joana me fez a surpresa: “Olha o que eu catei para você: dois maracujás roxos. Estavam ali, no jundu do Perequê-açu!”. Me alegrei mesmo! Agora, juntamente com as sementes do maracujá branco recolhidos pelo primo Zé Roberto, eu vou preparar o berçário e distribuir por aí, nos caminhos das restingas e jundus que ainda são preservados, as mudas tão preciosas. Só me falta agora o maracujá amarelo, natural de nossas restingas e de nossos morros.

               O finado Mané Bento dizia: “Maracujá é bom para dormir e ter bons sonhos. Os índios comiam e sonhavam sempre. E, de acordo com o que viviam sonhando, eles se animavam para viver acordados: dormiam para sonhar e sonhavam para viver”. Eu acreditei nesse meu finado parente e sempre procurei replantar maracujás, sobretudo o que me rodeavam desde criança.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

AZUL NA SERRA, MENINO NA PRAIA

Algumas artes (Arquivo JRS)


               Cedo, da minha janela, olho a serra: após o verde da mata iluminada, é tudo azul. É frio chegando. Ótimo! Depois de um verão de rachar, seja bem-vindo frio!
               Com o frio vem a vontade de fazer fogueira, de assar batata doce, de tomar quentão e consertada junto aos meus. Vem a lembrança de conversas em torno do calor do braseiro, onde tantas histórias e tantas risadas preencheram nossos momentos. Vêm as modas de viola, vêm os cantadores e tocadores: Vitória, Maria Estefânia, Dário, Elias, Maurício, Antunes e tantos outros. Que caiçarada marcante! Recentemente faleceu mais um desses caiçaras, dos antigos. Belinho nos deixou aos noventa e cinco anos.

               Belinho, da família Rocha (que eu conheci muito bem no Perequê-mirim), era bom de prosa. Seus causos sempre me deram muita satisfação. Ao ver ele defronte a sua casa, na rua Gastão Madeira, mesmo com muita pressa, eu parava para alimentar o meu ser caiçara.

               “Me chamam de Belinho, mas meu nome é Manoel Belo da Rocha. Sou Belinho desde menino, quando vivia na Enseada. Bons tempos! Peixe era de fartura! Cada puxada de rede na praia era uma montoeira que vinha, de todo tipo. No tempo da tainha, então!?! O Macié, que negociava de tudo um pouco, pagava a mulherada pra consertar peixe na barra: era um trabalhão o dia inteiro. Depois de salgado, tudo aquilo pegava sol até secar. Os barcos compravam e levavam para Santos e para outros lugares. Eu era criança ainda, vivia se tecendo por ali, no meio do pessoal mais velho, fazendo algum trabalhinho que pediam pra gente. Por volta das  casas, subindo os morros ficavam os roçados. Mandioca não podia faltar. Depois disso viemos para a cidade e aqui fiquei até hoje. Me aposentei no trabalho de pedreiro, mas fiz de tudo um pouco. A cidade foi crescendo, ganhou campo de aviação, vieram obras e mais obras, os sobrados velhos deram lugar às casas e prédios. Os prefeitos fizeram o que fizeram e deu nisso que você pode ver. O comércio cresceu porque a freguesia aumentou. Alguns comerciantes progrediram, outros se arruinaram. E por falar nisso, agorinha mesmo passou um carro gritando: “É para correr porque é só até sábado”. Querem vender alguma coisa, né? Me fez lembrar de um reclame [propaganda] que escutei assim que vim morar na cidade: “Corra logo, chegou mercadoria nova. Na venda do Lindo agora você leva fumo por metro”.

terça-feira, 11 de junho de 2019

PEIXE É MATO! TÁ PULANDO NO LAGAMÁ!

Aguardando (Arquivo JRS)

Espreitando (Arquivo JRS)


               Olhando o mar com a minha companheira, a enseada de altos e baixos onde tantos sinistros já foram registrados, avisto cardumes.  É tempo deles: fogem do frio em busca de águas quentes. Vêm do Sul; correm do inverno. “Tá vendo lá? Lá longe, no rumo da Ponta do Patieiro, onde tem gaivota rodeando? É um cardume! Olha lá outro! E lá! E lá também! Nossa! Quantos cardumes!”.

               Quantas vezes, logo cedo, na hora do café, aparecia alguém para alvoroçar a manhã com a boa notícia: “O peixe é mato! Tá pulando no lagamá!”.  Novamente, neste espírito de aguardar os cardumes que estão encostando, faço questão de registrar mais uma contribuição da Idalina Graça:

               Madrugada. Adonias, moreno pescador da Praia de Iperoig, sorria para mim enquanto seus braços robustos empurravam a pequena canoa. Eis que parte e cada remada nas ondas vem acompanhada pelas frases soltas, sonoras e belas, que o vento caprichoso reparte comigo. Aqui está o que cantava:

               Na madrugada dourada
               pela luz de um novo dia,
               bem à beira do caminho,
               a casinha emoldurada,
               de alecrim e rosmaninho,
               dorme tranquila e suave,
              enquanto perto se escutam
              gorjeios de passarinho.
                                                
              Por fim a porta se abre,
              um pescador vem saindo.
             Sonda o mar, namora a onda,
             pois o sol já vem surgindo.
            Olha o céu, murmura a prece,
            dá graças ao criador
            e empurra a canoa,
            vai cantando com ardor.

           A noite vem caindo.
           As estrelas aparecem
           iluminando o céu,
           no murmúrio de uma prece,
           quando retornando ao lar,
           o alegre pescador
           traz peixe em sua canoa
           cortando as vagas com amor.

           E ele, o homem do mar,
           se ajoelha na areia,
           o seu olhar vai buscar
           nas nuvens a lua cheia,
           que nessa hora se esconde
          para não turbar a prece
          do pescador que retorna
         quando o dia amanhece.


domingo, 9 de junho de 2019

SÓ VOCÊ E EU

Gratuidade (Arquivo JRS)


               O dia amanheceu frio, do jeito que eu gosto.

               “Ai foi que o barraco desabou/ nessa que o meu barco se perdeu/ nele tá gravado só você e eu”.

               Como a justificativa do refrão do samba, a prosa começa quando Idalina perdeu um anel valioso: seu marido, o Albino.

               Idalina, mulher caiçara bem à frente de seu tempo. Idalina que nos deixou dois livros (Terra Tamoia e Bom dia Ubatuba) com a sua visão de mundo: do mundo caiçara de Ubatuba na segunda metade do século XX. Idalina que era desenvolta e resolvia quase tudo sozinha. Idalina que registrou o seguinte:

               Amanhecera um dia límpido e sereno. A vida exigia de cada um de nós o que pudéssemos dar. E eu tinha tão pouco a dar: apenas amor aos semelhantes, que brotava espontâneo da minha alma sempre humilde, mas disposta a repartir o quinhão de som com os friorentos em transição pelo planeta Terra.
               Caminhava alheada a tudo, quando a voz amiga de um velho pescador me chamou. Com seus sessenta e quatro anos de idade, ele empurrava com vigor um carro de mão repleto de pescadinhas frescas e bonitas.
               “Onde as pescaste?”.
               “No Itaguá, ali perto do lugar onde a senhora comprava meu pescado há trinta e cinco anos atrás”.
               Sorri ao notar a saudade no seu falar. Olhei seus cabelos brancos, seus olhos vivos e alegres, não como outrora. Senti saudade e muita pena, pois os homens para mim são quase deuses. No íntimo, não aceito a destruição de meus irmãos e disse-lhe isso em voz alta. Ele parou o carro na calçada, tirou o chapéu da cabeça e perguntou inocentemente:
               “Bom, Dona, se somos quase deuses, o que são as mulheres?”.
               “Elas já nascem deusas, Antônio”.

               De fato, as mulheres já nascem deusas. Sabe por quê? Porque elas podem conceber, trazer ao mundo novos seres humanos. Eu devo a vida a uma mulher; você também!  As primeiras divindades, antes da ascensão do machismo na mentalidade humana, eram femininas. Portanto, devemos combater posturas machistas (veladas ou explícitas), criar novas criaturas baseadas em novos mitos (palavras), imaginar novas realidades capazes de uma nova humanidade. A primeira atitude é perceber e combater o machismo nas mídias sociais e em nosso entorno. A Idalina há muitas décadas atrás estava certa: as mulheres já nascem deusas. Agora só você e eu.

sábado, 1 de junho de 2019

UMA PEQUENA PEÇA NUM GRANDE JOGO

"Rebeldes" (Arte: Estevan)


               Não é de hoje que eu percebo o sentido da frase "algumas coisas devem ser escondidas, viver na ignorância". Talvez precise entender melhor para melhorar a minha atuação junto às injustiças, mas... Entender eu entendo!

               O finado Florisvaldo, o “Flor”, um baiano que escolheu Ubatuba para viver, no tempo em que eu era criança, me contava de um conterrâneo seu que ele muito admirava e que era perseguido pelas Forças Armadas: “Zezinho, você é muito criança ainda, mas vou lhe contar de um baiano arretado, desses que não tem medo de nada. O nome dele é Marighella”. Nunca eu iria imaginar que existia uma pessoa com esse nome. Só sei que o “Flor” se orgulhava desse baiano. “É um lutador contra estes militares que estão aí, garantindo esta ditadura que é favorável aos estados Unidos”. Eu não entendia nada, mas gostava de ver a empolgação das palavras cheias de sotaque daquele baiano, amigo do meu pai a tal ponto de ser o padrinho de um dos meus irmãos, do Clóvis.

               Florisvaldo era pedreiro, vivia nas obras como o meu pai. De vez em quando estava puxando rede na praia da Maranduba junto com o Velho Zacarias, meu pai e outros caiçaras pescadores. Escutava muito antes de dar qualquer opinião. Por isso eu também o escutava com maior atenção. “No mundo, Zezinho, há duas ordens fortes: os russos e os americanos dos Estados Unidos. Eles disputam entre eles e buscam aliados entre os países. É por isso que o Marighella diz que estamos entre os capitalistas e os comunistas. Agora, por exemplo, graças ao apoio dos militares, quem continua prevalecendo no nosso Brasil são os capitalistas. É por isso que as empresas deles estão se espalhando em nossa terra”. Mais tarde, estudando a História, aprendi que esse tempo é conhecido como Guerra Fria. Na gozação com alguns colegas logo imaginei usar cobertores para esquentá-la. Era a forma de desprezar o puxa-saquismo do nosso professor, contrariando a posição do nosso “Flor”. Lógico! Ele “era rico” [tinha uma variant verde, do ano], enquanto o “Flor” sempre suou para viver do nosso jeito.  E na pobreza dele ele explicou um dia: “Esse baiano Marighella, admirado por este baiano Florisvaldo, vive por aí perseguido por ser um guerrilheiro urbano. Sabe o que é isto? É quem não se conforma com a ditadura no nosso país e parte para a luta armada nas grandes cidades. É nelas que estão os órgãos importantes, os grandes empresários e lideranças deste nosso chão. É por isso que escolhem agir assim. Na verdade, um guerrilheiro entende da situação política e toma uma posição que entende ser importante para a nossa libertação, para a libertação do nosso Brasil. Só não sei se as armas vão resolver muita coisa. O que precisa é estudar, Zezinho”. 

       Quem era o “Flor”? Alguém que tinha uma certeza: um grande jogo acontece a partir das pequenas peças. A sua situação de migrante, bem longe da sua adorada Bahia, atestava  essa verdade. Valeu para este caiçara conhecer o "Flor", receber a sua contribuição cultural. Valeu mesmo!!!