Garateia (Arquivo Canoa Caiçara) |
Achei legal este relato do amigo Peter a respeito dos primeiros anos junto aos caiçaras da Praia da Enseada. Foi tudo isso que resultou no pesquisador que ele se revela a cada dia. Parabéns mesmo! Quer mais? Veja http://canoadepau.blogspot.com.br
Durante 11 anos (2000 a 2011) convivi diariamente com as comunidades caiçaras locais, da Enseada do Flamengo, em Ubatuba, São Paulo. Nesse tempo, diretamente atuei como pescador profissional e aquicultor (maricultor) junto aos pescadores tradicionais locais, compartilhando diariamente durante a intensa faina pesqueira seus saberes, artes, anseios, dificuldades, sofrimentos e alegrias.
Durante esse período em que me transformei em pescador, enquanto absorvia diretamente através da vivência real, os costumes e saberes locais relacionados ao universo pesqueiro tradicional, nunca me foi possível abandonar o olhar crítico, que, internamente e à todo instante, não cessava de tecer questionamentos e comparações entre, aquele modo de vida por mim escolhido e toda a bagagem cultural típica de um citadino de classe média, cuja noção de sobrevivência provinha de uma doutrina urbana que me havia impregnado desde os tempos de criança. Estudar, escolher uma profissão, formar-se na faculdade, arrumar emprego em uma boa empresa, casar, ter filhos e aposentar-se, essa era a cantilena. Não poderia existir vida ou outra forma de sobrevivência que não fosse através desse caminho urbano-industrial.
Quando resolvi romper com esse sistema à mim imposto goela abaixo, e decidi “largar tudo” para ir viver literalmente na beira praia, por muito tempo ainda acompanhou-me a incerteza e o sentimento de culpa, pois, como poderia eu sobreviver naquele lugar novo, onde tudo o que eu havia estudado e aprendido na “escola” de nada servia para assegurar minha subsistência. Enquanto essas dúvidas me corroíam, todos os dias eu ia cada vez mais me aproximando e ganhando a confiança dos pescadores que se reuniam em frente à minha casa para conversarem, remendarem suas redes, consertarem seus barcos e canoas.
Certo dia correu a notícia de que uma “pegadeira de lula” estava acontecendo no Parcelzinho. Perguntei onde era e me disseram: “virando o canal”. Perguntei como se pescava a lula, “cum zagarelho, é tipo uma garateia de pescar espada, mas não precisa de isca, a lula pega sozinha”.
Até aquele momento, nunca nenhum pescador me havia convidado para ir pescar, e mesmo com minha demonstração de interesse pela pescaria de lula, naquela manhã ninguém me convidou para ir pescar no Parcelzinho. Pensei, vou pegar minha canoazinha e ir até esse Parcelzinho, já que “virando o canal” não deve ser tão longe. Peguei a minha garateia de pescar espada, linha, chumbada, arrumei uma corda bem comprida e uma poita para ancorar a canoa. Levei água, faca e uma cuia pra tirar a água (alguns conselhos eu já tinha escutado) e saí remando rumo ao canal da Ilha Anchieta, o temido Boqueirão. Uma hora e pouco remando, cheguei ao Boqueirão, fiz a travessia contornando para fora, virei e... ninguém! Remei mais um pouco para fora, para ter a visão total da costeira e vi ninguém. Comecei então a olhar para todos os lados, procurando, procurando, então vislumbrei bem longe, lá pras bandas do Ilhote das Cabras, bem rente à costeira da Ilha Anchieta, um monte de barcos juntos. Firmei os olhos e reconheci os barcos do Ico e do Jaime, dois pescadores com os quais havia conversado naquela manhã. Estavam muito longe, eu teria que atravessar todo o largo da Ilha Anchieta, atravessando todo o temido Boqueirão, ficando exposto ao vento e à correnteza, e nem ao menos sabia quanto tempo eu iria levar para chegar lá remando minha canoazinha, que era de um tamanho suficiente só para brincar na beira da praia.
Levei uns 5 minutos para decidir o que fazer, resolvi arriscar.
Remei, remei, remei, remei e quase três horas depois cheguei entre os barcos escutando a turma falar: “olha o Alemão aí!”. Achei um local à uma certa distância e joguei minha poita. Arrumei a linha com a garateia de espada e comecei a pescar. Todos os outros pescadores pegavam lulas, uma atrás da outra, e na minha linha, nada. Coloquei uma chumbada, e, nada. De repente armou uma tempestade vindo de sudoeste, cobrindo a Ilha toda, era uma trovoada com nuvens cinzas enormes que avançavam muito rápido trazendo vento e chuva grossa, uma típica chuva de verão. Não desisti, fingi não estar com medo pois todos ali estavam de olho em mim, soltei mais um pouco de corda, pois o vento já estava forte e não queria que a canoa fosse arrastada, e quando a chuva caiu eu deitei quietinho no fundo da canoa e esperei a trovoada passar. Para minha sorte, a chuva de verão é forte, mas passageira, e perto de 30 minutos depois a tempestade já havia passado e o sol da tarde voltava a brilhar. Tirei a água de chuva da canoa com a cuia, e tentei uma última vez pescar, mas nenhuma lula mordia meu anzol, pensei: que mistério será esse... porque só eu não consigo pescar?
Percebi então que era perto de 4 horas da tarde e pelo tempo que tinha demorado para remar até o Parcelzinho, na volta, eu iria chegar só de noite na Praia da Enseada porque não pretendia pedir uma carona de volta, pois tinha que "dar uma de machão" já que ninguém tinha me convidado para estar ali pescando.
Recolhi a poita, ajeitei as tralhas e rumei naquele lindo entardecer para o Boqueirão, aproveitando para atravessá-lo enquanto ainda o dia estivesse claro, por segurança. Cheguei em casa já com a noite fechada, sem lula alguma mas com uma aventura fantástica gravada para sempre na minha alma.
No outro dia, reencontrando a turma de pescadores na praia, ao invés de me chamarem de Alemão, todos brincavam: “ó o matadô de lula aí!”. Por toda aquela semana eu me tornei o “matador de lula”, embora nenhuma delas eu tenha capturado. E a causa desse insucesso logo eu descobri, já que o zagarelho, na verdade não é igual à uma garateia de espada como eu havia erroneamente entendido, na verdade, ele é uma isca artificial especialmente projetada para pescar lulas, então só com muita, mas muita sorte mesmo eu teria conseguido pescar uma lula com a minha garateia.
O resultado dessa epopeia toda foi que imediatamente, todos os pescadores passaram a me chamar para pescar em seus barcos e começaram a me ensinar as técnicas de pesca. Assim, um universo novo e riquíssimo começou a se materializar diante dos meus olhos. Fui iniciado nas artes de pesca e toda a paisagem, os objetos, as ferramentas, os animais, o mar e os peixes, adquiriram novos e surpreendentes significados. Tudo o que eu já tinha visto e experimentado sofreu uma transformação radical tanto na forma como no modo que minha percepção interpretava o ambiente natural. Uma outra dimensão, um outro mundo possível se descortinou e nesse processo eu mesmo me transmutei de maneira irremediável e irreversível.
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