terça-feira, 25 de novembro de 2014

A SANTA CRUZ

As orientações do Tio Dico, junto ao Rio Puruba. (Arquivo JRS)

                O nosso país, assim como os demais colonizados e cristianizados pelos europeus, mantém tradições que muitos desconhecem as suas origens. Num dia desses, estando pensando a respeito disso, veio à mente as festas religiosas tradicionais dos caiçaras, de um tempo em que nem existiam as capelas, mas em determinadas casas, nas diversas praias, eram comemoradas as datas festivas. “Na casa da Gertrudes acontecia a festa do Sagrado Coração de Jesus. O dia de São João era uma senhora festa na casa do João da Mata”. Assim se recordava o finado Aristeu Quintino.

                Na prosa que eu tive com o Seo Genésio, lá no Camburi, a lembrança mais forte nele era a Festa da Cruz, comemorada no dia 3 de maio. “Era uma grande festa. Vinha gente de todo quanto era canto para esse nosso lugar”.

                Outras comunidades no município de Ubatuba (Centro, Marafunda e Praia do Puruba) têm como festa principal a Exaltação da Santa Cruz, comemorada em 14 de setembro. Diz a história que a mãe do imperador Constantino, Helena – a santa, foi quem encontrou a suposta cruz de Cristo lá no Oriente Médio. Porém, na tomada de Jerusalém, os persas se apoderaram dela. Somente depois de quinze anos, em 628, o imperador bizantino Heráclio, após vencer Cosroes II, devolveu a relíquia numa emotiva cerimônia ao seu lugar de origem. Desde então, esse dia, 14 de setembro, ficou marcado para sempre como  a Festa da Exaltação da Santa Cruz.

                Conversando com o Élvio Damásio a respeito de certos eventos de outros tempos, ele também é da mesma opinião de que as comunidades católicas já não têm o mesmo ardor nas comemorações populares (quermesses com danças e pratos típicos, regatas de canoas com disputas em outras modalidades, procissão marítima e apresentações folclóricas em geral etc.). Mais recentemente, o saudoso Ney Martins, quando predominava uma pastoral popular na religião católica, conseguia unir “o profano e o sagrado” nas festas da cultura caiçara. Foi em ocasiões assim que pude conhecer Ocílio Ferraz, Inezita Barroso e outros nomes da cultura popular brasileira.

                É mérito da Igreja Católica essa religiosidade popular. Os leigos do Brasil, num tempo de pouca assistência da religião oficial, foram responsáveis por isso.  Quem me afirmou nesse sentido pela primeira vez, em 1991, foi o Zé Pedro, lá na Praia da Picinguaba. Ao lhe perguntar por que as tradições (Ciranda, Cana-Verde, Xiba...) estavam morrendo, ele foi categórico: “É por causa de religião. O motivo é este. Veja você: quando eu era mais jovem, aqui na Picinguaba só tinha a religião católica. Todas as festas eram em torno dela. Todo mundo era católico e participava de tudo. Ajuntava muita gente nas nossas festas. Depois, foi chegando outras igrejas que diziam que tudo era pecado, vaidade, que não se podia dançar e nem adorar os santos. Desse modo foi morrendo tudo, as pessoas foram se esquecendo. Agora tá assim. Já tem quatro igrejas diferentes nesse nosso lugar. E as pessoas estão cada vez mais desunidas. Essa tem sido  a nossa cruz nos últimos tempos”.

                Creio que se faz urgente repensar a mística na cultura caiçara. É lógico que, se depender das orientações vindas de Roma, uma teologia mais ligada às paixões do povo deverá sucumbir. Também a doutrina da mídia é converter a todos em realizados consumidores. No fundo, a individualidade predomina e fortalece atitudes acomodantes e individualistas. Em síntese, é dizer: “Eu não quero me incomodar com mais esse aspecto, essa tal de cultura popular e de religiosidade se complementando, dando esperanças mais festivas aos pobres”. Porém, as minhas mais importantes lembranças de vida em comunidade aconteceram em datas festivas, com a caiçarada preparando algo para compartilhar após a parte devocional, inclusive as bebidas, danças e folguedos. Prova maior disso nos ainda vemos na Congada e na Dança de São Gonçalo. Pensando agora, quantos momentos marcantes eu vivi às margens do Rio Puruba tendo a comunidade da Capela Exaltação da Santa Cruz como referência? E as festas da Comunidade do Itaguá? E os leilões que me recordo nas praias da Fortaleza, Perequê-mirim, Sapê e Sertão da Quina?

                Era uma alegria genuína que passava de pai para filho, que se mantinha pelas gerações. Eram mutirões e mutirões por todo lado (embarrear casa, puxar canoa, roçar, plantar etc. Aquilo era é divino! Enfim, era Tempo de Santa Cruz! Certo estava o meu povo quando repetia: “Não troco essa fé pelo lenho da cruz”.

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