sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O NAMORO DO NANICO

Velhos caiçaras (Arquivo Trindadeiros)

         Não é de hoje que as pessoas aprontam das suas! Tudo pode acontecer quando se vive em sociedade, por mais reduzida que seja a povoação. Um exemplo que narro agora ocorreu na Praia Grande do Bonete, uma das maravilhosas comunidades do município de Ubatuba. A época era essa, próxima de Dia de Finados, no final da década de 1950. O personagem principal era o finado João Nanico. O tema foi adultério. Os intrometidos, que após sondagens flagraram o afoito roceiro-pescado: tio Tião e Chichico.

         Numa comunidade pequena, pouca coisa escapa das percepções dos moradores. Às vezes, nem precisa falar nada para despertar suspeitas. Assim foi com os dois: se olhavam de vez em quando como se estivessem combinando alguma coisa, saiam pelos caminhos que se encontravam em algum lugar, riam de frases maliciosas, trocavam presentes etc. O primeiro a sondar as saídas do João Nanico para a casa de sua comadre foi o meu tio, reconhecidamente um arteiro até os dias atuais. Ele se esgueirou entre os abricoeiros do jundu, na escuridão das grandes árvores, para confirmar a suspeita de que quase todas as noites os amantes se encontravam na casa dela e se amavam perdidamente.

         “Ela espera o marido inválido dormir, dá um sinal pela janela da cozinha... e lá se vai o Nanico para a camarinha que está do outro lado da casa, perto da cozinha. Ele entra pela janela”. Depois de escutar a novidade trazida pelo tio Tião, o Chichico combinou uma parceria para a noite seguinte. No outro dia, no horário previsto, ao sair de sua casa, distante mais ou menos trezentos metros da casa da amante, o velho caiçara foi seguido pelos dois dispostos a darem um susto no casal. Logo que o nosso personagem principal estacou no terreiro, os dois se ocultaram atrás da grande jaqueira que ficava quase na porta da cozinha. Não demorou para aparecer a claridade da lamparina sinalizando que o momento era aquele. E lá se foi o Nanico.

         De forma bem sorrateira, muito cauteloso para não fazer barulho algum, estando em boa forma física, o Nanico foi passando confiante e ansioso pela janela aberta. É o amor, né?!? Nesse instante, saindo de trás da jaqueira, os dois correram e deram um empurrão no aventureiro. Foi uma barulheira só porque deve ter caído sobre panelas do outro lado. No mesmo instante os dois arteiros sumiram em direção à praia. Bem longe foram dar risadas e imaginar a situação constrangedora aos amantes. Afinal, alguém os pegara no pulo.

         No dia seguinte, o João Nanico estava machucado. Ao ser questionado, a resposta era: “Tropecei na noite passada numa porcaria de balaio que estava no corredor da casa e bati de cabeça num armário de louça”. Coitado do Nanico! Só muitos anos depois, quando não faltava muito tempo para morrer, é que soube da verdade. Quem contou a ele foi o próprio tio Tião Armiro. Quantas artes fez este caiçara!
        


         

terça-feira, 28 de outubro de 2014

SABEDORIA DOS VELHOS CAIÇARAS


Os preconceitos, os alinhamentos com as ideias dos dominantes propagadas sem escrúpulos algum pela televisão, revistas etc., a “sabedoria de papagaio” sugadas de aparelhinhos eletrônicos tão vulgarizados nas mãos de todo mundo, sobretudo das crianças, vão encaminhando para sistemas totalitários, que dão continuidade a sistemas similares aos dos nazistas. Você duvida?
Quem estudou a História sabe dos primeiros séculos, quando o cristianismo, graças ao fanatismo comandada pelo Patriarca Cirilo, destruiu a maravilhosa Escola de Alexandria, regredindo a cultura erudita ao nível ínfimo. E quem não aprendeu que tais palavras (judiar, judiação etc.) são decorrentes da perseguição iniciada na mentalidade cristã europeia contra a etnia judaica há quinhentos anos? E a palavra denegrir, derivada da desvalorização do negro, não soa tão chique a tanta gente?
É assim que me preocupo com tanta gente boa, pobre também, engolir a isca da alienação, do julgamento unilateral. Em tempo de disputa eleitoral a moda é dizer que “grupo X é bom, sem corrupção, enquanto que grupo Y é o contrário”. Na verdade, fazemos parte de uma natureza que não é tão natural assim. Ela é pensada por poucos, para servir a poucos. O velho Rousseau já disse que “o homem nasce bom, a sociedade o corrompe”. As pessoas são manipuláveis, interessantes aos ideólogos de um sistema constantemente reconstruído para manter o status e poderes de uma minoria. Assim, sob “tanta clareza” decorrente da já citada sabedoria, “pode até matar a própria mãe”. Cruz-credo!
Precisamos estar atentos e exercitar ao máximo a nossa capacidade reflexiva. O pior que podemos fazer é, sob um discurso aparentemente inteligente, estarmos sendo idiotas, contribuindo para um sistema ganancioso e destrutivo, a começar pelos mais pobres. O Velho Zacarias da Ponta dizia:

               “Chegará um tempo em que não haverá mais peixe. Depois que não haver mais miuçalha, tubarão vai devorar tubarão”.

LIÇÕES CAIÇARAS

Casa do Nhonhô Armiro, na Fortaleza (Arquivo Tio Salvador)
Hoje, aniversário de Ubatuba e do mano Mingo, nada como uma poesia dele! 


Foi com o tupinambá
que meu antepassado
aprendeu a fazer casa
de barro pilado,
de teto de sapé,
de imbé amarrado,
no verão refrescado,
no inverno aquecido.
E depois da casa pronta
acrescentou um toque de poesia
ao fazer uso das taramelas
para trancar portas e janelas.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

MEMÓRIAS PRECIOSAS (IV)

Praia Grande- Ubatuba- Década de 1970 (Arquivo histórico)

 A Dona Celeste, caiçara da Comunidade do Itaguá,  deu a seguinte informação a respeito da Procissão do Fogaréu: “Os homens usavam um manto, uma espécie de camisa rocha (da Irmandade do Senhor dos Passos) e cada um carregava uma tocha feita de bambu. Acontecia na Semana Santa, na passagem da quinta para a sexta-feira santa, Naquele tempo não tinha isso de procissão ser tarde. Era de madrugada que elas tinham início”. A partir disso, ambas discorrem em torno de muitos assuntos: Dona Gertrudes se recorda do breve tempo em que morou na Praia da Fortaleza: “A Jorgina, filha do Tião Rocha, foi dar aulas lá. Eu fui para ajudar no trabalho. Era no Canto do Tio Onofre, na casa dele, que acontecia o ensino. Foi quando eu conheci a Evarista,  a sua irmã Maria, o Genésio, o Cândido (que ainda era um rapazinho) e tantos outros. De lá era o João Bento, pai da Vitalina [mãe da minha comadre Luzita casada com o Nilo Cabral]. Um irmão dela era apaixonada por uma moça que decidiu ser freira e foi para São Paulo. Pois ele a seguiu, se encontravam no convento (dizia ser primo dela). Por fim se casaram e ficaram por lá mesmo.  Aproveitando a deixa, Dona Celeste brinca: “Você conheceu o meu primeiro marido. Depois que ele morreu, eu me casei com o Arthur. Ele também morreu. Agora, quando alguém se aproxima, logo eu vou dizendo que já matei dois”.
Com a chegada da minha irmã Ana, a dona Gertrudes entra no assunto de outras pessoas do seu tempo de juventude: “A Josefa, que foi casada com o Sebastião Rita, ainda era minha parente. Também era Cabral, nascida na Praia da Maria Godói” [Aproveito essa parte para informar ao pessoal presente do fechamento, por parte do condomínio da Ponta das Toninhas, do Caminho de Servidão que ligava as Praias de Fora e chegava ao canto da Praia do Góis, na Enseada]. “Pois é, meu filho! É assim mesmo! O povo do lugar vai perdendo sua liberdade, seus direitos. Essa gente que chega vai se apossando e estragando tudo”.
“O marido da Josefa era muito mentiroso. Sabe a história dos pintos vestidos? Conto agora: a galinha chocou uma grande ninhada de pinto, mas logo o gavião começo atacar e foi diminuindo-a. Ao reclamar com o Sebastião, que devia fazer algo que impedisse a ação do predador, a Josefa escutou isto: ‘Faz uma camisinha para cada pinto, mulher. Assim, quando o gavião grudar as garras no coitado, ele vai levar só a camisinha, pois o pinto vai se escorregar e escapar de ser comido. O jeito é vestir o pinto com camisinha’. Dizem que deu certo. Então, não é de hoje que a nossa gente põe camisinha no pinto".

Da Dona Gertrudes também escutei história do Tenório, dos chafarizes no centro da cidade, do sonho com a Ivete Maciel, “logo após a sua morte, na Barra do Guanandi, na Praia da Enseada”. Isso – de registrar essas memórias preciosas - vai longe se depender da minha disposição!

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

MEMÓRIAS PRECIOSAS (III)

Celeste e Gertrudes: vidas bem vividas (Arquivo JRS)

“Foi numa Dança de São Gonçalo que eu comecei a namorar. Foi assim: o Benedito Lopes já era meu conhecido desde criança. Também foi criado nas Toninhas. Só que nunca nós imaginamos de namorar. Ele até tinha namorada na ocasião da tal dança. Eu, numa das vindas de Santos, onde trabalhava como doméstica, fui ver uma Dança de São Gonçalo, na casa do João do Gusto. Eu vestia na ocasião um vestido de tafetá lilás, com um cinto branco e uma sandália branca. Porém, faltou uma dama. De tanto insistirem, eu acabei aceitando dançar no lugar daquela que faltava. Adivinha quem foi o meu companheiro de dança? Acertou! Só sei dizer que eu e o Benedito Lopes fizemos toda a dança e a mesura. Todo mundo gostou muito. Para encurtar a conversa, assim que eu voltei para o meu trabalho em Santos, ele também foi trabalhar lá. Desse modo continuamos o namoro e nos  casamos. Eu tinha trinta e nove anos; ele era um ano mais velho do que eu. Logo nasceram as meninas (Maria e Regina). Os meus netos são o Rogério e o Rodrigo. Você os conhece. 
A nossa casinha era no canto direito das Toninhas. Era de sapê, com chão batido. Mais tarde o meu marido fez um cimentado de vermelhão. Depois, já a outra casa, era mais bem acabada. Era um tempo que eu cheguei a cuidar de várias casas de turistas, além de lavar roupa para fora. Às duas horas da madrugada eu já estava de pé. As minhas filhas vinham estudar no Itaguá, na escola Altimira; depois na cidade, na escola Deolindo. Vinham de ônibus. A Maria sempre foi muito trabalhadeira, dava conta do trabalho direitinho. Já a Regina nunca levou jeito para ser do lar.
Naquele tempo as crianças estudavam na Enseada. Todo mundo só andava a pé. Desde menina eu trabalhava. Consertei muito peixe para o Hipólito Giraud, para o João Vitório e para o Francisco Maciel, lá na Praia da Enseada. Também trabalhei na cidade, na casa do Doutor Rui. Foi onde conheci o Geraldo, que mais tarde se casou com a Maria do Sebastião Rita. A filha do Doutor Rui foi estudar na França, se tornou médica. Ela, após se casar, construiu uma casa na Praia Vermelha, na estrada que vai para a Fortaleza. O seu marido tinha o nome de Meneses. Numa ocasião, estando eu em casa, aquele carro chegou na porta. Era ela que foi me buscar para fazer uma peixada na sua casa. Fomos ao mercado comprar peixe, depois fui com ela até Praia Vermelha. Lá eu passei o dia. Agora não sei mais dizer dela, nem da sua família. Tinham uma filha (Maria da Glória) que era doente. Ela se tornou médica especialista em mongoloide [Síndrome de Down]. Eles tiveram uma propriedade na Almada, na Ponta do Altar. Compraram do Mané Careca, pai do Luiz Careca. Eu e o meu marido, a pedido dela, fomos num dia dar uma olhada lá. Era uma casa boa, tinha água encanada da cachoeira. Deve ter vendido tudo aquilo.

Naquele tempo as casas da cidade, na beira da praia, acabavam na casa do padre João [que até hoje pertence à Igreja]. É onde funciona a Sorveteria Rocha, de onde parte a Rua Professor Tomáz Galhardo, na Avenida Iperoig. [A Diocese de Caraguatatuba é quem recebe o aluguel do imóvel, segundo o Rogério]. Depois vinha o cemitério e o lugar onde era a primeira Santa Casa do Senhor dos Passos. Foi destruída por um incêndio. Tudo por ali, até chegar ao mar, era só mato”. Neste momento chega a Dona Celeste, do Itaguá: “Eu tenho oitenta e cinco anos; sou neta do Velho Cristóvão. Nasci e cresci nas Toninhas. Sempre que posso venho conversar com a Gertrudes”.

sábado, 18 de outubro de 2014

MEMÓRIAS PRECIOSAS (II)

A Igreja da Exaltação da Santa Cruz na primeira metade do século XX
 
               A prosa com a Dona Gertrudes estava em vias de realização há um certo tempo, quando fui convidado por seu neto Rogério Estevenel para um almoço com o pessoal da Folia do Divino. Trata-se de uma ocasião única, quando essa mulher caiçara de memória tão privilegiada recebe os devotos e a Bandeira em sua moradia (localizada bem próxima do Rio Grande de Ubatuba, no final da Rua Ponciano Eugênio Duarte), oferecendo a comidoria bem caiçara. É a perpetuação de alguns sinais da devoção católica e da hospitalidade da cultura local.
               A conversa foi muito facilitada pelo fato de eu ter um conhecimento prévio dos lugares e de muitas pessoas da área original da Dona Gertrudes. Afinal, eu vivi e convivi entre o Perequê-mirim, Enseada e a Toninhas, num tempo onde os novos colonizadores ainda eram pontuados e respeitavam os humildes nativos. “O espaço era nosso; o tempo era o nosso patrão”. Por isso que, imediatamente eu viajava pelos lugares e via as pessoas com as lembranças da narradora querida.

               “Eu nasci na Praia das Toninhas, num tempo que tinha muita gente morando. Era uma parentada só. A nossa vida era na roça, plantando de tudo, fazendo farinha de mandioca. Havia roça pelos morros. A nossa era no morro da Praia Grande, onde as posses eram dos Diogo, dos Velloso e dos Ferreira. Só que já no meu tempo nenhum deles morava lá. A maioria dos eitos cultivados ficavam na parte do fora do morro das Toninhas, onde tem as prainhas da Maria Godói, da Xandra, da Pixirica e do Tapiá. São as Praias de Fora. A gente trazia aquela carga de mandioca e fazia a farinhada na casa do João do Gusto, com casa no canto esquerdo da Toninhas. Tinha o João do Gusto (que era o pai da Vitalina), o Antonio do Gusto (que casou com a Geraldina, filha do velho Cristóvão, cuja filha é a Celeste [mãe do Élvio Damásio e das meninas].
O meu pai, Cristóvão Cabral Barbosa,  filho de João Cabral e da escrava Gertrudes, carinhosamente chamada por “Tia Inhá” era muito trabalhador. A minha mãe, Benedita Francisca do Nascimento tinha muita disposição para tudo. Para ter uma ideia disso, quando ela vinha sozinha para a cidade, levava uma hora a pé. Ela era ligeira. Só que quando trazia a gente, aí demorava mais porque as crianças eram mais vagarosas.

Por ser muito devota, a minha mãe, juntamente com mais gente que morava nas Toninhas, não perdia as festas na cidade, sobretudo aquelas da Igreja. Participava das procissões, das missas...Tinha muitas vezes que a gente saía da cidade já perto da meia-noite. Todo mundo ia caminhando: passava pelo jundu, pelos ranchos de canoas e pelos terreiros das casas que existiam desde o lugar que hoje é em frente ao campo de aviação [aeroporto] até a Barra da Lagoa. Indo pelas Praia do Itaguá, passando pelo Acaraú, em frente ao armazém do Tenório [onde hoje tem um posto de gasolina, na margem do Rio Acaraú], rompendo a Praia Grande e subindo o morro, a gente já estava em casa. No dia seguinte, caso tivesse alguma festa, ninguém tinha preguiça de repetir o mesmo percurso. Quantos bailes eu aproveitei naquele tempo! No Perequê-mirim, era na casa dos Campistas que eu mais me divertia”.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

MEMÓRIAS PRECIOSAS

Dona Gertrudes: caiçara de prosa maravilhosa! (Arquivo JRS)

               “Você está com doze anos? Então deve ter nascido em 1919, certo? Vinte e sete de dezembro, né? Pronto! Agora você já tem registro e pode viajar para Santos!”. Foi assim que eu imaginei o tabelião resolvendo a questão de Gertrudes Francisca do Nascimento, caiçara da Praia das Toninhas, filha de Cristóvão Cabral Barbosa e de Benedita Francisca do Nascimento. “Nesse tempo eu ainda era Nascimento. Não trazia o nome da família do pai porque, naquela época, os filhos só eram registrados tendo o nome da descendência materna. O nome que tenho hoje – Gertrudes Francisca Lopes – vem de quando eu me casei com Benedito Lopes”. Neste dia (15/10/2014) passei uma tarde inesquecível, numa prosa maravilhosa com Dona Gertrudes e outras pessoas da nossa terra, da nossa cultura. Desde já agradeço ao Rogério Estevenel pela articulação do encontro. Valeu mesmo!

               Dona Gertrudes tem uma memória maravilhosa nos quase 95 anos. Oficialmente esta é a sua idade, mas há controvérsias. Afinal, era já tinha vivido alguns anos quando, ao precisar ir para Santos, descobriu que não tinha registro civil.
               Após tantas conversas com a caiçarada antiga de Ubatuba, é a primeira vez que me deparo com uma narrativa de ida de mulher (adolescente, no caso) para a região da Baixada Santista no começo do século XX, com intuito de ampliar as suas possibilidades de sucesso. Aos homens isso era comum: iam trabalhar nos bananais para terem uma renda garantida. Assim foi com meus avós, com o meu pai e tantos outros. Muitos desses migrantes caiçaras nunca mais voltaram às terras ubatubanas. A adolescente Gertrudes, por recomendação de padre João, foi interna na A.L.A (Assistência ao Litoral de Anchieta), localizada na Rua Conselheiro Nébias, na cidade de Santos. “Lá eu morei por cinco meses. Depois saí e passei a trabalhar como doméstica. De vez em quando eu vinha passear em Ubatuba, visitar a família, o meu pessoal. Viajei no Santense, no Valença, no Ubatubinha, no São Paulo...Eram barcos que faziam as viagens costeando esses lugares todos”.

               O padre Johannes Beil, o Padre João tão estimado pelos caiçaras da primeira parte do século XX, desenvolveu a sua pastoral no litoral norte paulista até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, quando, devido ao contexto geopolítico, foi obrigado a se retirar da zona costeira. Uma característica da sua atuação era contribuir para a formação escolar e profissional da juventude caiçara. Por isso esteve à frente da construção da escola de pesca na Ilhabela, na implantação de escolas isoladas, no transporte marítimo motorizado para atender as praias mais distantes etc. Porém, através da conversa com a Dona Gertrudes, fiquei sabendo desse seu gesto mais radical: conduzir a outras possibilidades numa cidade litorânea já mais desenvolvida. Creio até que esse exemplo de encaminhamento possa ter sido o apelo para que as Cônegas de Santo Agostinho fundassem a A.L.A em Ubatuba, na Rua Gastão Madeira, onde hoje está a Escola Olga Gil, a prefeitura e adjacências, cujas religiosas (Glória, Nair, Laura, Sofia...) tive a honra de conhecer e de apreciar os trabalhos. Quantas jovens tiveram suas oportunidades a partir dali!?! Nesse momento desponta na minha memória alguns nomes queridos: Neide, Bernadete, Izabel, Elisabeth, Verônica, Ângela, Nazareth...

terça-feira, 14 de outubro de 2014

BRINCADEIRA TEM HORA!

           
O desfile desce a Rua Dona Maria Alves. Hoje é o "Calçadão" (Arquivo Histórico)

           Olá, Flávio Augusto! Que bom tê-lo como seguidor no blog!

O escrito Malba Tahan conta que “o saudoso professor Tales Melo, um grande matemático brasileiro, ao visitar o Ginásio de Friburgo, teve ocasião de palestrar com vários alunos. Em dado momento um adolescente, em tom muito sério, perguntou:
               - Que idade o senhor tinha, Dr. Tales, quando descobriu esse teorema que tem o seu nome: Teorema de Tales?”.

               A introdução acima foi só para entender o que contarei agora:

               No meu segundo ano escolar, na Escola Agrupada do Perequê-mirim, no tempo em que sentávamos em duplas, naquelas carteiras de ferro e madeira maciça com um buraco para tinteiro no meio do tampão, tendo a professora Valda como mestra enérgica, o meu colega de assento era o João Góis.
               O Joãozinho adorava conversar. Era muito espirituoso, estava sempre soltando suas gracinhas. Em decorrência disso, numa ocasião eu levei o pior. Assim se deu:

               Mesmo sabendo que a professora era brava, “descia o braço” quando alguém extrapolava os limites da disciplina, numa manhã, logo após a volta do recreio, estando ela escrevendo  a atividade na lousa, o danado tascou:

           - Professora, a minha mãe comprou um remédio da senhora.
         - Meu remédio? A sua mãe comprou? Como assim? Eu não tenho remédio nenhum para vender!
          - Ah é! Então amanhã eu trarei a latinha como prova, onde se lê Pastilhas Valda. É mentira minha?

            No mesmo instante, estando perto de nós e não se conformando pela intromissão no roteiro da aula, enquanto todo mundo ria alto, ela partiu para dar um tapa no abusado. Porém, o danado abaixou a cabeça, se desviou. Adivinha quem recebeu o tapa com muita força? Eu! Afinal, era quem formava dupla com ele. Só que, ao contrário do filho do Seo Dito e da Dona Preciosa, eu era bem quieto durante as aulas, buscava aproveitar bem mesmo dos esforços dos professores! "Um aluno exemplar", diziam eles.

               Ela se desculpou comigo e em seguida, aí sim, se voltou para o Joãozinho sem ter como errar pela segunda vez.

            Num tempo em que a profissão de professor está tão desprezada pelo Estado e por muitos pais, quero homenagear os meus primeiros mestres: Olga Gil, Valda Virgílio, Pedro Eurico, Oberdan e Osmildo.

               Em tempo: aquela frase lida naquele tempo, quando tínhamos aula de leitura aos sábados, não me saiu da memória:

“No Japão todos creem firmemente que sem professor  não há imperador”. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

IGREJA DOS NEGROS

Quem foi o artista que, em 1982, produziu essa obra de arte?

O Velho Silvério, o saudoso Sabá, era negro mesmo! A mamãe usava o termo de “negro fechado” para indicar o indivíduo de pele bem preta. Desse negro eu escutei, pela primeira vez, o seguinte:

“Hoje eu tô aqui vendendo o meu peixinho, criando honestamente a minha família, seguindo a religião católica... Mas nem sempre foi assim! O meu finado tio Nicolino contava que, até bem pouco tempo, a nossa gente sofria demais. Eram do eito, escravos. Não tinha fazendeiro que não usasse os pretos como burro de carga, só dando comida e ensinando os costumes dele para os coitados. Até religião de preto era coisa que não prestava. Desse modo tivemos que aprender aquilo que ensinavam os padres. Fomos batizados e passamos a ser católicos.

Em Ubatuba só existia uma igreja, no centro da cidade, mas não era essa atual. [Era na Rua Conceição, numa área que abrangia o Ateneu Ubatubense e antiga Câmara Municipal]. Os escravos, todos os pretos, não podiam entrar nela e nem na nova que depois foi construída. O que acontecia era acompanhar os seus donos, mas nem pensar em entrar no templo. Só que a negralhada já tinha ficado dependente dos ensinamentos da religião dos brancos e queriam de qualquer modo poder entrar na igreja. Também havia branco piedoso que não se conformava em ver a minha gente sem lugar decente para a devoção. Como fazer isso se o costume religioso dizia que os dois –branco e preto – não podiam se misturar? Para encurtar a conversa,  porque eu não sei os detalhes, acharam a solução: construir uma igreja para os pretos. ‘Era pequena, mas era bonitinha’ dizia a mamãe. Ficava também no centro da cidade, mais perto do rio [Grande]. Hoje não existe mais. Nem eu conheci essa igreja em pé. Hoje, no lugar dela há uma praça [Nossa Senhora da Paz de Iperoig]. É no caminho para a Rampa [área do mercado de peixe], quase chegando no Sobrado do Porto [Casarão da Fundart]. No começo do século [XX], a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, mais conhecida por Igreja dos Pretos, foi demolida. Dizem que parte do altar dela foi levado para compor aquele bonito altar da Matriz [Exaltação da Santa Cruz]. Depois disso, preto e branco puderam frequentar o mesmo lugar sagrado”.  

Ah! Que saudade do Velho Sabá!

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

AS QUESTÕES NOSSAS DE CADA DIA

        
Lá se foram mais de quarenta anos! (Arquivo histórico)


        Olá, Lyray! O blog te acolhe com muita satisfação!


Na história do pensamento ocidental, a partir dos gregos, as primeiras reflexões eram referentes ao mundo físico, sobre a origem dos cosmos. Só depois, com os denominados sofistas,  a atenção se voltou ao homem e às suas virtudes. Assim nasceu a problemática moral.
Hoje, quando colocamos questões práticas a respeito dos danos ambientais, do crescimento desordenado, das culturas frente à globalização econômica etc., estamos propondo ver além do sensível para alcançar o inteligível. Em filosofia, o estudo das realidades que transcendem as realidades físicas é conhecido como metafísica.
Atualmente, mais do que nunca, precisamos pensar o homem em dois momentos: individual e em sociedade. É de onde se desenvolve a ética e a política.
Essas questões brotaram bem na adolescência, assim que eu deixei o bairro para estudar na centro da cidade. No meu tempo de ginásio, quem mandava no Brasil eram os militares. Em cada escola de nível ginasial e colegial (na atualidade, do sexto ano fundamental  ao terceiro do ensino médio) havia um representante militar para vigiar a disciplina. Em Ubatuba, na escola Capitão Deolindo, quem fazia esse papel era o professor José Simeão, de Educação Moral e Cívica. Discretamente, na sua pequena estatura, o “Sargento Simeão” era os olhos e os ouvidos do Regime Militar. Se nós, adolescentes caiçaras quase totalmente alienados das questões nacionais, sabíamos disso, quem dirá os adultos, os seus colegas professores! Na verdade, o Velho Simeão se esforçava em seus discursos retóricos, mas a sua prática se efetivava nas eleições do Centro Cívico.

O Centro Cívico foi a instância militar que substituiu o Grêmio Estudantil, onde aos alunos era permitido um total protagonismo. Em Ubatuba, na sua fase contemporânea, as mais importantes iniciativas foram propostas geradas no Grêmio Estudantil dessa escola (Deolindo). Por esses dias, passando diante do local onde outrora morava o caiçara Benedito Freitas (na Rua Dona Maria Alves, de onde parte a Rua Gastão Madeira), me veio à lembrança o seu filho Zé Luiz, o Arouca, o Zé Celestino e tantos outros desse "tempo áureo" relembrados pelos alunos mais engajados do meu tempo. Lembrei-me do jornal Saca Rolhas, dos nadadores e das demais categorias desportivas que despontaram cheias de vigor na realidade caiçara de Ubatuba, chegando ao ponto de até terem à disposição uma área apropriada para as suas atividades: o conjunto Itaguá Praia Clube. Ah! Quantas provas natatórias eu assisti sentado à sombra do Cruzeiro de Anchieta!