sábado, 28 de junho de 2014

O COLAR DE DANDARA

 
"Ela se sustenta num chão com muitas histórias" (Arquivo JRS)

    Nesta semana encontrei a Fátima de Souza, caiçara do Itaguá e minha amiga desde o tempo do ginásio. Aproveitamos para tirar um tempo de prosa. 
         Além de comentar suas ideias inéditas a respeito de algumas transcrições, também levantou o tema de alguns problemas sociais do tempo de nossos pais, quando crianças e adolescentes eram levadas por alguns ricaços “piedosos” para “acabar de criá-los em melhores condições, dando roupas, escola, emprego...”. Ficamos pensando, então, como teria sido no tempo da escravidão oficial, quando os africanos e seus descendentes eram apenas objetos para qualquer uso do seu dono. 
        Em Ubatuba, até o final do tráfico negreiro, em algumas praias eram desembarcados os coitados dos negros. O presente texto da Fátima mostra isso, surge desse contexto. 
        Parabéns, amiga!                                                                                                                                                                                              
      Em alguns séculos atrás, as fazendas açucareiras de Ubatuba abastavam-se em divisas provindas da mão-de-obra escrava. Negros, arrancados de sua África como plantas arrancadas pelas raízes  jogadas em outros lugares a espera de serem replantadas ou descartadas do direito de viverem.
      Não era difícil todas as noites se ouvir no terreirão da “Casa Grande” o pedido de misericórdia no ar, trazido através do som dos atabaques. Vinha de onde estavam os negros amontoados independente de sexo ou idade: a senzala. O machucado dos açoites, a falta de saneamento fazia proliferar doenças... Mas a maior dor, a dor mais insuportável era a falta de liberdade, a falta de reconhecimento de ser gente, a dignidade zero.
    - Eh! Eh! Buana, nego nasceu pá apanhá! - Dizia Preto Velho, para camuflar e desculpar a dor.
     Os lotes de negros comprados no Rio de Janeiro eram despejados pelos navios negreiros na praia de Ponta Aguda. Esses lotes aguardavam seus compradores no senzalão da praia da Lagoa. Para driblar a fiscalização à frente deste lugar erguia-se um cenário de “Casa de Fazenda” que nunca existiu. Quem olhava do mar tinha a certeza que se tratava de uma “Casa Grande” de fazenda, mas que nunca existiu. Era uma fachada para camuflar o senzalão.
      Dito Carro apeou do cavalo, chicoteou o ar para impor respeito, pisou forte. O barulho de suas botas arrepiava de horror qualquer criatura que o conhecia.
   Arrogante, o capataz bulia com os negros aos trancos, verificando a numeração das placas de cobre dependuradas nos pescoços judiados.
    Um sorriso maligno lhe percorreu a cara quando achou o lote que procurava. Dois machos adultos, uma criança de aproximadamente dez anos e uma moça com o julgo de quinze anos, ornada por um colar de ossos trançados em palha de embira, além da numeração. Dandara era seu nome!
      Dito Carro lambeu os beiços! Juntou uma mão na outra e estalou os dedos secos. Fez cantar o chicote com a força de um demônio. Arrastados aos trancos e barrancos os negros chegaram à fazenda destinatária. Dandara não tinha mais forças para aguentar tamanho suplício. Ferida e exausta se jogou num caco de esteira na senzala.
      No céu a lua apareceu. Dentre as frestas da taipa a luz do luar fez brilhar o colar de Dandara. Aconteceu um milagre! As chagas de Dandara se fecharam. Neste instante a porta da senzala rangeu com violência. Dito Carro adentrou em busca de Dandara a fim de satisfazer seu vil prazer. O inacreditável aconteceu, o colar de Dandara inflamou-se e as chamas produzidas pelo colar queimou as mãos enormes e malévolas de Dito Carro, que se jogou no chão uivando de dor.
    Dizem que pelo resto da vida esse meliante usou luvas para esconder as mãos sapecadas pelo fogo emanado do colar de Dandara.

(Fonte: O Guaruçá)

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