Um barco na areia - Arquivo Santiago |
Meu pai na última embarcação - Arquivo JRS |
Antigamente, o fim da vida de uma canoa era virar cocho na casa de farinha, jardineira, lugar para se sentar debaixo de uma sombra etc. Mas o que fazer com um barco que deixou de servir à pescaria? Eu, olhando as madeiras que retornam aos poucos ao chão, presto homenagem aos conhecidos construtores de barcos no nosso chão caiçara: Leovigildo (meu pai), Velho Alexandrino, tio Dito Félix, Jacó Meira, Marquinhos, Juvenal e tantos outros. O estimado Santiago mostra outro caminho: o da poesia. Valeu, Santi!
O velho barco Noiva do Sol
há muito se foi nas marés do tempo
As águas, as areias, os anos
cobriram seu casco, beberam suas histórias
enterraram seu convés
Os pescadores que o conduziam
pelas pescarias e rumos
repousam em casa
ou na memória
ou labutam ainda com outros barcos
mar adentro
Talvez só o mar mesmo saiba
dos destinos dessa gente
moldada a sal e sol
As crianças que brincavam
sobre o convés soterrado
puxando uma ponta de corda
que surgia do chão,
elas cresceram
Decerto muitas esqueceram
o barco da infância
na praia dos anos
Porque os barcos
são para isso feitos
navegar, navegar e
perecer
como perecem as gentes
As madeiras nascem nas florestas
do alto olhando as praias
no silêncio em que nascem
os mundos
Um dia um canoeiro,
um mestre construtor de barcos as recolhe
e lhes dá novo destino
As canoas nascem árvores
as árvores morrem canoas
Os barcos são casas temporárias
de vidas que vão ao mar
e lançam redes e lançam a sorte
que é peixe arisco
O barco Noiva do Sol
às vezes reaparece
nalguma maré seca que repuxa areia e
descobre suas velhas madeiras
encharcadas e grudadas de cracas
revelando as costelas carcomidas do cavername
como o esqueleto de um bicho
muito antigo
Efemeramente
o sol brilha novamente sobre o velho barco perdido
que tinha o nome de Noiva do Sol
mas casou-se com o mar.
A saudade de navegar faz as madeiras rangerem
Na maré cheia pequenos peixinhos deslizam entre as pontas lascadas
e ruínas do
barco esquecido que não esquece o mar
Não dura muito esse reaparecimento
como não dura nossa existência
As marés
recobrem novamente
esses resquícios de um tempo
e o barco Noiva do Sol
desaparece na areia
Como nós também um dia desapareceremos
Mas o velho barco
cumpriu seu rumo, seu tempo, seu trabalho
e adormece sereno
E nós?
Pequenas canoas solitárias
nos encontrando e desencontrando
nas remadas longas
da travessia do existir
navegando na insondável
maré dos tempos
Um dia também repousaremos
e o sol seguirá nascendo
sobre nossas memórias
que um dia se apagarão
como o velho barco na areia
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