terça-feira, 1 de agosto de 2023

NOIVA DO SOL

 

Um barco na areia - Arquivo Santiago
 

Meu pai na última embarcação - Arquivo JRS


     Antigamente, o fim da vida de uma canoa era virar cocho na casa de farinha, jardineira, lugar para se sentar debaixo de uma sombra etc.  Mas o que fazer com um barco que deixou de servir à pescaria? Eu, olhando as madeiras que retornam aos poucos ao chão, presto homenagem aos conhecidos construtores de barcos no nosso chão caiçara: Leovigildo (meu pai), Velho Alexandrino, tio Dito Félix, Jacó Meira, Marquinhos, Juvenal e tantos outros. O estimado Santiago mostra outro caminho: o da poesia. Valeu, Santi!


O velho barco Noiva do Sol

há muito se foi nas marés do tempo

As águas, as areias, os anos

cobriram seu casco, beberam suas histórias

enterraram seu convés

Os pescadores que o conduziam

pelas pescarias e rumos

repousam em casa

ou na memória

ou labutam ainda com outros barcos

mar adentro

Talvez só o mar mesmo saiba

dos destinos dessa gente

moldada a sal e sol

As crianças que brincavam

sobre o convés soterrado

puxando uma ponta de corda

que surgia do chão,

elas cresceram

Decerto muitas esqueceram

o barco da infância

na praia dos anos

Porque os barcos

são para isso feitos

navegar, navegar e

perecer

como perecem as gentes

As madeiras nascem nas florestas

do alto olhando as praias

no silêncio em que nascem

os mundos

Um dia um canoeiro,

um mestre construtor de barcos as recolhe

e lhes dá novo destino

As canoas nascem árvores

as árvores morrem canoas

Os barcos são casas temporárias

de vidas que vão ao mar

e lançam redes e lançam a sorte

que é peixe arisco

O barco Noiva do Sol

às vezes reaparece

nalguma maré seca que repuxa areia e

descobre suas velhas madeiras

encharcadas e grudadas de cracas

revelando as costelas carcomidas do cavername

como o esqueleto de um bicho

muito antigo

Efemeramente

o sol brilha novamente sobre o velho barco perdido

que tinha o nome de Noiva do Sol

mas casou-se com o mar.

A saudade de navegar faz as madeiras rangerem

Na maré cheia pequenos peixinhos deslizam entre as pontas lascadas

 e ruínas do

barco esquecido que não esquece o mar

Não dura muito esse reaparecimento

como não dura nossa existência

As marés

recobrem novamente

esses resquícios de um tempo

e o barco Noiva do Sol

desaparece na areia

Como nós também um dia desapareceremos

Mas o velho barco

cumpriu seu rumo, seu tempo, seu trabalho

e adormece sereno

E nós?

Pequenas canoas solitárias

nos encontrando e desencontrando

nas remadas longas

da travessia do existir

navegando na insondável

maré dos tempos

Um dia também repousaremos

e o sol seguirá nascendo

sobre nossas memórias

que um dia se apagarão

como o velho barco na areia


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