segunda-feira, 28 de agosto de 2023

TENDO CIÊNCIA NOS FATOS

 

Puxada de rede no Perequê-mirim - 1947       (Arquivo C.B. Schmidt)


      Já escreveu Laura Gutman: “É importante refletir e tentar aprender com os antropólogos, os historiadores, os arqueólogos, os filósofos, aqueles que examinam e refletem sobre a evolução do mundo e dos seres vivos para além do nosso lugar. Essa compreensão ‘ampliada’ nos oferecerá um ponto de vista realista sobre nossa pequena realidade cotidiana”.

     A introdução acima foi buscada porque me encontro diante do estudo do amigo Peter Santos Németh, que se fez caiçara com os caiçaras da praia da Enseada, em Ubatuba. Dali sentiu a necessidade de pesquisar mais, de lançar luzes no nosso viver, na nossa cultura.

     Eu sempre acreditei que as culturas são ferramentas que garantem a nossa sobrevivência e nos ajudam encontrar um propósito  de vida. Portanto, transmitir nossas raízes culturais são ensinamentos mais que necessários. O Peter, que se fez pescador com os pescadores, tal como o Roberto Ferrero e outros mais, no ano de 2016, sob o título A tradição pesqueira caiçara dos mares da ilha Anchieta: a interdição dos territórios pesqueiros ancestrais e a reprodução sociocultural local, apresentou a dissertação para obtenção do título de mestre em Ciência Ambiental, na USP (Universidade de São Paulo). Dentre outros, ele me cita como pesquisador local. Ele nem imagina o quanto me honrou o seu trabalho e o tanto de alegria em ver os seus esforços na empreitada. Parabéns mesmo! O que retransmito a seguir, com algumas adaptações entremeadas de comentários, faz parte dessa realização que deve muito à cultura caiçara, aos moradores da comunidade tradicional da praia da Enseada.

 

       O presente estudo analisa os saberes e técnicas patrimoniais utilizadas pela população dos pescadores caiçaras que atuam na região da Ilha Anchieta e Enseada do Flamengo, em Ubatuba, litoral norte do Estado de São Paulo. Este corpo cumulativo de habilidades especiais, transmitidas oralmente, compõe o conhecimento tradicional pesqueiro local, patrimônio imaterial sobre o qual fundamentam sua reprodução sociocultural e o manejo de seus pesqueiros tradicionais.  Hoje, conforme preconiza o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Lei 9.985 de 18 de julho de 2000), as populações tradicionais que usam territórios dentro de unidades de conservação podem desempenhar um papel de maior destaque, sendo-lhes assegurado: o direito de uso dos recursos naturais necessários à subsistência, valorizados seu conhecimento e cultura; a participação efetiva na criação, implantação e gestão das unidades de conservação, considerando as necessidades das populações locais no desenvolvimento de técnicas de uso sustentável. Através de nossa pesquisa, localizamos as escrituras originais de “compra e venda” da Ilha Anchieta com os nomes de todos os “outorgantes” e/ou “transmittentes” (assim denominados nos documentos) e a listagem detalhada das benfeitorias “desapropriadas”. Após serem expropriados de suas posses em 1905 e 1906, essas famílias foram habitar, fora da Ilha, “praias próximas”, tais como Enseada, Toninhas, Perequê-Mirim, Saco da Ribeira, Lázaro, Flamengo e Sete Fontes.


        Quem me confirmou a informação acima foi o Seo Dito Coimbra, do Perequê-mirim, e a Dona Gertrudes, das Toninhas. Segundo esta saudosa caiçara, até a família Cabral Barbosa morava na Ilha Anchieta.


      Expulsos de seus territórios originais na Ilha Anchieta desde o início do século XX, posteriormente, por volta dos anos 1950, iniciou-se também um processo de expropriação de suas terras no continente pela especulação imobiliária que vorazmente avançava pelo litoral norte de São Paulo. “Perdendo suas terras, era todo o mundo caiçara que vinha abaixo”(MARCÍLIO, 1986: p.13). Sem mais terras para plantar e marginalizados pelos “biscates” proporcionados pelo crescente “turismo” dos anos 1950-1960, restou apenas o mar para esses originalmente pescadores-lavradores (DIEGUES, 1979: p.198-199), tornando-se a pesca artesanal seu principal meio de subsistência e último bastião da livre expressão cultural de seu modo de vida tradicional.


       Reconheço, neste parágrafo acima, o que eu pude testemunhar: quantas famílias conheci morando no continente, mas oriundos das ilhas? Alcides “Bambá”, Eugênio Inocêncio, Pedro “Vitoreiro”, Salete, Oscar e outros relembravam de seus pais e avós, de suas roças, de suas vidas relativamente isoladas, de como foram enganados, trapaceados, iludidos. No caso da Ilha Anchieta, o que houve foi uma retirada imediata da comunidade para tornar o espaço um presídio estadual. Depois, estando assentados, tendo recolonizados os espaços em terra, aparentemente estabilizados, veio a especulação imobiliária. Os espertalhões se apresentaram. Um caso que me abalou muito foi o relato da Dona Chica, esposa do Argemiro Nascimento: “A nossa família e a família do Gusto eram da praia da Santa Rita. Esse Maciel, o tal de Bráulio Santos e mais alguém que não me recordo o nome deram um jeito de negociar tudo aquilo, venderam ao Pirani. Até a capela de Santa Rita foi levada para a Enseada. Ou seja, até o padre se envolveu na negociação, no convencimento da retirada das pessoas e das suas marcas daquela praia”. Esse Pirani, citado pela Dona Chica, tinha loja no edifício Andraus (na capital paulista) atingido por um incêndio em 1972, quando eu era servente de pedreiro e trabalhava com o Seo Sebastião Honório, no Perequê-mirim. Me lembro dos comentários na obra assim que o rádio de pilha deu a notícia. Resumindo: de momento em momento, ao longo das décadas recentes, grande parte dos caiçaras foram cumprindo uma via sacra, se espremendo em áreas impróprias, sendo explorados, se corrompendo  e/ou se valendo dos saberes de outros tempos para sobreviverem. São estes saberes que fundamentaram a tese do Peter e tantos outros pesquisadores que nos acodem hoje nas muitas reflexões que lançam luzes no nosso viver. Gratidão a essa gente toda!

4 comentários:

  1. Infelizmente, a Igreja quase sempre se colocou a serviço do opressor. Vide o papel do padre no convencimento dos caiçaras.

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  2. Pois é. O serviço ao oprimido quase sempre fica sempre na pregação.

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  3. Caro Prof. Zé Ronaldo você é quem me honra com essas palavras, e me honra mais ainda, quando corrobora minhas reflexões superficiais de "turista" com sua vasta Pesquisa de toda uma vida junto ao seu Povo Caiçara que eu tanto amo. Essas confirmações que você apresenta valem mais do que a aprovação que tive da banca examinadora, é a aprovação de um dos maiores guardiões da Cultura Caiçara ubatubana. Este seu blog é uma legítima enciclopédia, um verdadeiro arcabouço cultural Caiçara que sempre muito me ajuda nos estudos e vai continuar ajudando as futuras gerações. Nunca cansarei de lhe parabenizar pela sua Pesquisa.

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  4. É muita bondade sua. Agradeço de coração. Você merece tudo de bom, Peter. Abraços a toda a família.

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