Parede reveladora - Arquivo JRS |
Quadro nenhum está acabado,
Desse certo pintor;
Se pode sem fim continuá-lo,
Primeiro, ao além de outro quadro.
Que, feito a partir de tal forma,
Tem na tela, oculta, uma porta
Que dá ao corredor
Que leva a outra e a muitas outras.
João Cabral de Melo Neto, um poeta que
admiro, com o título A lição de pintura, me conduz à reflexão após uma prosa com o jovem Mateus.
Mateus, quando cursava o ensino médio,
formava dupla com Jakson, estavam sempre juntos nos diversos lugares e
atividades. Ganharam o apelido de “Acerola e Laranjinha” devido a uma série
televisiva. Os dois eram muito educados, sabiam se sair bem em todas as
situações. Eu me simpatizava muito com eles. Os anos se passaram. Dias atrás
reencontrei com Mateus, virou um rapagão, aparentemente continua sereno. Ele
estava no hospital regional de Caraguatatuba, como acompanhante do avô que sofrera um AVC (acidente vascular
cerebral). Naquele momento se encontrava preocupado e com certa tristeza: “O meu avô melhorou, mas não me reconheceu
nessas horas todas que eu fiquei com ele no hospital”. Eu percebi que a
questão era importante para ele. Busquei consolá-lo: “Talvez seja questão de tempo. O cérebro tem uma plasticidade incrível,
se adapta às condições que se lhe impõe. Tenha a certeza que ele vai melhorar”.
Mateus pareceu aceitar a possibilidade de recuperação do avô; mudamos de assunto.
Logo ele estava contando do trabalho, dos colegas: “Estou nessa empresa que ganhou a licitação do trecho da BR-101 que
vai de Ubatuba ao Rio de Janeiro. O salário mensal é de R$ 1.300,00 (mil e
trezentos reais). Para mim que sou sozinho até dá para viver, mas quem tem
família... Não sei como um amigo consegue sobreviver. Ele tem esposa e filha,
pequena ainda, paga aluguel de R$ 900,00... Como ele consegue? Paga aluguel...
O que sobra para as outras despesas?”. Naquele momento eu tirei uma lição
de pintura: uma porta que dá a um corredor que leva a outra e a muitas
outras. A “indignação” de Mateus demonstra que o quadro não está acabado, que
precisa da reflexão e da ousadia para um aperfeiçoamento, para alcançar uma
beleza maior.
No fundo, o avô do Mateus, o pai do Mateus
e o próprio Mateus se comparam à vida e morte severina tão belamente descrita
pelo talentoso João Cabral. Numa passagem do poema, inquirido enquanto busca
trabalho, responderia:
Pois fui sempre lavrador,
Lavrador de terra má;
Não há espécie de terra
Que eu não possa cultivar.
Mateus, seu pai, seu avô... Tantos outros
migrantes que buscaram o território caiçara devido as injustiças em suas terras
de origem se encaixam no poema. No desabafo desse jovem trabalhador - que tive a
felicidade de conhecer ainda adolescente – estão implícitas as imposições que
sustentam o capitalismo, a felicidade de poucos mantida pela exploração dos
trabalhadores, pelo empobrecimento dos povos. Diante deste quadro, o que inevitavelmente
deve acontecer é a reformulação da cultura caiçara sem se descuidar daquilo que
a gerou nos séculos: as condições ambientais e a melhor interação possível das
pessoas com a natureza, a nossa "galinha dos ovos de ouro”. É a “indignação” de Mateus e de tantos outros
que permitirão aperfeiçoar uma cultura local e as que vão chegando, que continuarão a pintura, que intervirão com mais consciência. Na verdade, esse
jovem é “um certo pintor” que pode continuar explorar outras saídas, abrir
outras portas para renovados horizontes no território caiçara, produzir novo quadro que se tornará uma pintura maravilhosa.
O estimado Jorge Ivam fez o seguinte comentário que enriquece a postagem acima:
Zé, a propósito do assunto
acima, lembro-me que, há alguns meses, li um texto de um agente de saúde de
Ubatuba que se declara de DIREITA . Fiquei perplexo. Um indivíduo nessa função
tem de visitar muitos pacientes e, com certeza, lida com a miséria mais crua.
Esse trabalho seria desesperador para qualquer um que tivesse um pouco de
humanidade por constatar que pouco ou quase nada pode fazer para mudar
imediatamente essa realidade. Era de se esperar que tal funcionário sofresse de
uma angústia profunda por se saber impotente diante do quadro social com o qual
tem de conviver, mas o referido agente deve achar que o mundo é bom desse jeito
mesmo. Nem sequer considera que há injustiça. Provavelmente julga que, se ele
pode ter uma motocicleta para a chegar à casa de pessoas que nem têm o que
comer é porque ele merece, batalha; elas, ao contrário, são preguiçosas. A
miséria é problema delas. Ele se compraz em entregar as mensagens cumprindo
aquilo que é designado como seu papel. A realidade não o comove, não o sensibiliza,
por isso acha muito natural ficar do lado dos ricos, idolatrá-los.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirZé, a propósito do assunto acima, lembro-me que, há alguns meses, li um texto de um agente de saúde de Ubatuba que se declara de DIREITA . Fiquei perplexo. Um indivíduo nessa função tem de visitar muitos pacientes e, com certeza, lida com a miséria mais crua. Esse trabalho seria desesperador para qualquer um que tivesse um pouco de humanidade por constatar que pouco ou quase nada pode fazer para mudar imediatamente essa realidade. Era de se esperar que tal funcionário sofresse de uma angústia profunda por se saber impotente diante do quadro social com o qual tem de conviver, mas o referido agente deve achar que o mundo é bom desse jeito mesmo. Nem sequer considera que há injustiça. Provavelmente julga que, se ele pode ter uma motocicleta para a chegar à casa de pessoas que nem têm o que comer é porque ele merece, batalha; elas, ao contrário, são preguiçosas. A miséria é problema delas. Ele se compraz em entregar as mensagens cumprindo aquilo que é designado como seu papel. A realidade não o comove, não o sensibiliza, por isso acha muito natural ficar do lado dos ricos, idolatrá-los.
ResponderExcluirMuito pertinente o comentário, amigo. Acrescentei à postagem.
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