domingo, 27 de agosto de 2023

LIÇÃO DE PINTURA

 

Parede reveladora - Arquivo JRS



 

Quadro nenhum está acabado,

Desse certo pintor;

Se pode sem fim continuá-lo,

Primeiro, ao além de outro quadro.

 

Que, feito a partir de tal forma,

Tem na tela, oculta, uma porta

Que dá ao corredor

Que leva a outra e a muitas outras.

 

      João Cabral de Melo Neto, um poeta que admiro, com o título A lição de pintura, me conduz à reflexão após uma prosa com o jovem Mateus.

      Mateus, quando cursava o ensino médio, formava dupla com Jakson, estavam sempre juntos nos diversos lugares e atividades. Ganharam o apelido de “Acerola e Laranjinha” devido a uma série televisiva. Os dois eram muito educados, sabiam se sair bem em todas as situações. Eu me simpatizava muito com eles. Os anos se passaram. Dias atrás reencontrei com Mateus, virou um rapagão, aparentemente continua sereno. Ele estava no hospital regional de Caraguatatuba, como acompanhante do avô que sofrera um AVC (acidente vascular cerebral). Naquele momento se encontrava preocupado e com certa tristeza: “O meu avô melhorou, mas não me reconheceu nessas horas todas que eu fiquei com ele no hospital”. Eu percebi que a questão era importante para ele. Busquei consolá-lo: “Talvez seja questão de tempo. O cérebro tem uma plasticidade incrível, se adapta às condições que se lhe impõe. Tenha a certeza que ele vai melhorar”. Mateus pareceu aceitar a possibilidade de recuperação do avô; mudamos de assunto. Logo ele estava contando do trabalho, dos colegas: “Estou nessa empresa que ganhou a licitação do trecho da BR-101 que vai de Ubatuba ao Rio de Janeiro. O salário mensal é de R$ 1.300,00 (mil e trezentos reais). Para mim que sou sozinho até dá para viver, mas quem tem família... Não sei como um amigo consegue sobreviver. Ele tem esposa e filha, pequena ainda, paga aluguel de R$ 900,00... Como ele consegue? Paga aluguel... O que sobra para as outras despesas?”. Naquele momento eu tirei uma lição de pintura: uma porta que dá a um corredor que leva a outra e a muitas outras. A “indignação” de Mateus demonstra que o quadro não está acabado, que precisa da reflexão e da ousadia para um aperfeiçoamento, para alcançar uma beleza maior.

     No fundo, o avô do Mateus, o pai do Mateus e o próprio Mateus se comparam à vida e morte severina tão belamente descrita pelo talentoso João Cabral. Numa passagem do poema, inquirido enquanto busca trabalho, responderia:

 

    Pois fui sempre lavrador,

    Lavrador de terra má;

    Não há espécie de terra

    Que eu não possa cultivar.

 

     Mateus, seu pai, seu avô... Tantos outros migrantes que buscaram o território caiçara devido as injustiças em suas terras de origem se encaixam no poema. No desabafo desse jovem trabalhador - que tive a felicidade de conhecer ainda adolescente – estão implícitas as imposições que sustentam o capitalismo, a felicidade de poucos mantida pela exploração dos trabalhadores, pelo empobrecimento dos povos. Diante deste quadro, o que inevitavelmente deve acontecer é a reformulação da cultura caiçara sem se descuidar daquilo que a gerou nos séculos: as condições ambientais e a melhor interação possível das pessoas com a natureza, a nossa "galinha dos ovos de ouro”.  É a “indignação” de Mateus e de tantos outros que permitirão aperfeiçoar uma cultura local e as que vão chegando, que continuarão a pintura, que intervirão com mais consciência. Na verdade, esse jovem é “um certo pintor” que pode continuar explorar outras saídas, abrir outras portas para renovados horizontes no território caiçara, produzir novo quadro que se tornará uma pintura maravilhosa.


O estimado Jorge Ivam fez o seguinte comentário que enriquece a postagem acima:

    Zé, a propósito do assunto acima, lembro-me que, há alguns meses, li um texto de um agente de saúde de Ubatuba que se declara de DIREITA . Fiquei perplexo. Um indivíduo nessa função tem de visitar muitos pacientes e, com certeza, lida com a miséria mais crua. Esse trabalho seria desesperador para qualquer um que tivesse um pouco de humanidade por constatar que pouco ou quase nada pode fazer para mudar imediatamente essa realidade. Era de se esperar que tal funcionário sofresse de uma angústia profunda por se saber impotente diante do quadro social com o qual tem de conviver, mas o referido agente deve achar que o mundo é bom desse jeito mesmo. Nem sequer considera que há injustiça. Provavelmente julga que, se ele pode ter uma motocicleta para a chegar à casa de pessoas que nem têm o que comer é porque ele merece, batalha; elas, ao contrário, são preguiçosas. A miséria é problema delas. Ele se compraz em entregar as mensagens cumprindo aquilo que é designado como seu papel. A realidade não o comove, não o sensibiliza, por isso acha muito natural ficar do lado dos ricos, idolatrá-los.


3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Zé, a propósito do assunto acima, lembro-me que, há alguns meses, li um texto de um agente de saúde de Ubatuba que se declara de DIREITA . Fiquei perplexo. Um indivíduo nessa função tem de visitar muitos pacientes e, com certeza, lida com a miséria mais crua. Esse trabalho seria desesperador para qualquer um que tivesse um pouco de humanidade por constatar que pouco ou quase nada pode fazer para mudar imediatamente essa realidade. Era de se esperar que tal funcionário sofresse de uma angústia profunda por se saber impotente diante do quadro social com o qual tem de conviver, mas o referido agente deve achar que o mundo é bom desse jeito mesmo. Nem sequer considera que há injustiça. Provavelmente julga que, se ele pode ter uma motocicleta para a chegar à casa de pessoas que nem têm o que comer é porque ele merece, batalha; elas, ao contrário, são preguiçosas. A miséria é problema delas. Ele se compraz em entregar as mensagens cumprindo aquilo que é designado como seu papel. A realidade não o comove, não o sensibiliza, por isso acha muito natural ficar do lado dos ricos, idolatrá-los.

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    1. Muito pertinente o comentário, amigo. Acrescentei à postagem.

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