terça-feira, 31 de março de 2020

UM PÉ DE QUINA

Hotel Picaré nos idos de 1950 (Arquivo Clayton)


     









Sementes de araribá (Arquivo JRS)
          “Hoje é um bairro, conhecido como Sertão da Quina; para nós sempre foi Morro da Quina. E tem também o Sertão do Ingá, o Sertão do Meio e o Sertão do Araribá”, afirmou um dia o saudoso Tio Izídio, da Caçandoca, gente dos Antunes de Sá, os herdeiros da fazenda Caçandoca que começava na Pedra do Cruzeiro (ou Pedra do X), não muito longe do Hotel Picaré, e terminava na Pedra do Frade, lugares que todos precisam conhecer um dia. Esse saudoso tio foi casado com a Tia Luzia, irmã da Vovó Martinha. Portanto, minha tia-avó, meus tios-avós. Vovó Martinha e Vovô Estevan eram os pais do meu pai (Leovigildo Félix dos Santos). Ela era da praia do Pulso e ele da Caçandoca, do ramo dos Félix que preferiu a praia. Os outros foram para o Rio Escuro e para o Morro da Quina.

            “Mas por que tem esse nome de Morro da Quina, titio?”.   Eu sempre tive essa facilidade para especular, de querer saber a respeito de tudo. “Essa é fácil, meu filho! É porque naquele morro, bem onde depois foi construída a capela, tinha uma grande árvore, um enorme pé de quina, onde, desde os tempos mais antigos, as pessoas iam buscar folhas e raspas para a cura da doença chamada maleita. Depois, quando eu era criança ainda, apareceu um outra doença, a pior de todas que eu conheci até hoje: era a gripe espanhola. Aqui, no nosso lugar, muitos morreram. A Anna, mãe do Estevan, vosso avô, foi uma das primeiras. O pai dele, o Francisco Félix também não demorou muito. Os dois cemitérios (da Maranduba e da Floresta da Raposa) ficaram cheios, precisaram abrir mais espaço em volta. Desse tempo é a morte também do velho pé de quina, porque era todo mundo acorrendo até aquele morro para tirar folhas, raspar tronco e galhos, ter alguma coisa para fazer o chá. A coitada da árvore não aguentou a demanda. Acabou a doença... morreu muita gente... e morreu o pé de quina! Tempo depois, com o aparecimento da santa, no lugar do pé de quina foi construída a capela em honra a Nossa Senhora das Graças. Ali, no morro da quina”.

              Mais tarde, o escritor Pedro Nava escreveu a respeito dessa peste do começo do século XX, na Primeira Guerra Mundial:

          “Era apavorante a rapidez com que ela ia da invasão ao apogeu, em poucas horas, levando a vítima às sufocações, às diarréias, às dores lancinantes, ao letargo, ao coma, à uremia, à síncope e à morte em algumas horas ou poucos dias. Aterravam a velocidade do contágio e o número de pessoas que estavam sendo acometidas. Nenhuma de nossas calamidades chegara aos pés da moléstia reinante: o terrível não era o número de casualidades mas não haver quem fabricasse caixões, quem os levasse ao cemitério, quem abrisse covas e enterrasse os mortos. O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes, a impossibilidade de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva…”.

                 Me lembrei dessa prosa com o titio, ainda na minha criancice, porque tenho ouvido falar muito de um medicamento por nome de cloroquina, testado por um médico francês como eficiente no tratamento das vítimas do coronavírus, a peste do momento. Tomara mesmo! E estabeleci uma ligação: cloroquina... quina...Morro da Quina! É isso! O princípio da quina, a sabedoria dos nossos antepassados! Haja pé de quina!

            Tio Izídio disse ainda: “Era chá de quina,  banha de lagarto derretida no café, canja de galinha e um preparado de cachaça e limão. É que era remédio contra a terrível peste”.

sábado, 28 de março de 2020

QUERER VIVER



 
Da raiz morta sob a terra,,, um cupinzeiro! (Arquivo JRS)
                Na natureza, nós nunca nos cansaremos de ver exemplos de busca de vida, de querer viver: é uma árvore que solta um mergulhão ou um broto encantador ao perceber que a sua existência está ameaçada por alguma coisa, por uma praga... ou uma orquídea que, ao passar por condições duras, ameaçadoras, se embeleza ao máximo na próxima florada... é um carrapicho que se gruda nos bichos para ser levado a vicejar em outros territórios etc. Outro exemplo: quem nunca viu, pelas costeiras, aquelas plantas que se desenvolvem nas brechas, nas rachaduras das pedras? E quando menos se espera, lá está um arbusto, uma árvore. Nunca me cansei de admirar, no ilhote do Mar Virado, um coqueiro altíssimo, sempre produzindo naquelas condições que parecem impossíveis! Agora, até mesmo distante dele, imagino o mar trazendo um coco seco, jogando furiosamente entre as pedras mais altas, onde conchas já se transformaram em farelo...De repente sai o broto, se apoia no material que está ali, se sustenta e cresce aquele tanto capaz de extasiar nossa visão. Isso é querer viver! Volto a dizer que as turbulências querem nos sacudir, nos impulsionar. A começar pela velha biblioteca da minha cidade, as leituras me fizeram entender que nas rachaduras das turbulências podemos semear boas sementes, contribuindo assim para gerar um mundo melhor.

               Você consegue com facilidade imaginar mil reais. Também não é difícil imaginar um milhão de reais. As coisas vão se complicando quando é preciso imaginar um bilhão, um trilhão e por aí afora. São quantias que parecem nem caber no mundo. Ao ouvir que os Estados Unidos vão desembolsar trilhões para as pessoas e as empresas deles a fim de conter a propagação do coronavírus, fico pensando: de onde eles tiraram esse dinheiro?

       Não precisa ser muito esperto para saber que as riquezas se formam a partir da exploração dos outros (pessoas e países). Alguns são trilionários neste mundo. Já bilionários são algumas centenas. Mas muito mesmo são os pobres, os empobrecidos que se esgotam para dar lucro a alguém! Imagine o longo tempo em que uma minoria parasita, vive às custas de quem trabalha! Você poderia viver melhor, ter outras opções de lazer com a família, proporcionar ótimos estudos aos filhos, se realizar em atividades dignas etc. E por que não enxergamos isso? Respondo: porque existe uma ideologia dominante! Vou explicar a partir de um exemplo desses dias: fulano de tal, que conheci desde menino e agora já é policial gordo, me avistou de máscara diante da farmácia e foi dizendo: “Daqui a dez dias isso passa. O governador agora quer fazer teste até em mortos”. Logo percebi a sua intenção: defender o presidente que diz que isso (a pandemia de coronavírus) não é nada, que todos devem voltar a trabalhar, repetindo a obtusidade de poucos líderes mundiais. E ainda falou do aperto em que está passando o seu velho pai, vendedor autônomo. Eu sei, conheço-o desde quando a filharada era pequena. (Eu teria vergonha de posar com carro do ano, estar visivelmente bem e ainda deixar o velho nessa correria). Quem faz a cabeça desse indivíduo? Por que não continua lendo, não estuda, não reflete mais para entender que a riqueza acumulada nas costas dos pobres daria para deixá-los muitos meses resguardados desse mal que se alastra demais? (Acabei de ouvir: num só dia, novecentos e setenta morreram na cidade da Lombardia, na Itália. O ministro da saúde do Brasil não compareceu ao encontro mundial de seus pares para refletir e tomar mais medidas contra a doença).

          São trilhões e bilhões que servem a uma minoria. “O mundo tem de perder gente para que esses privilégios atuais continuem possíveis”. Você pensa que essa “segurança” do presidente é verdadeira? E o que dizer daqueles que fazem carreatas em vez de fazer passeatas? Todos eles protegidos, acomodados em máquinas que riem do seu moderníssimo carro popular, se escondem dentro de veículos fechados, com ar condicionado etc. e saem apitando, convocando os pobres para movimentar o comércio, garantir o lucro deles. Você deve se posicionar entre a riqueza, o pensamento de poucos e o seu velho pai que jamais alcançará um milhão de reais, trabalhando até se acabar ali mesmo, sentado numa banquetinha. Você acreditou que essa ajuda de custo anunciada na televisão é bondade do presidente? Saiba que é resultado das lutas de quem quer viver, de quem está semeando boas sementes nas rachaduras da turbulência! Cabe a você decidir entre a opressão e a vida.

quarta-feira, 25 de março de 2020

SOMOS UMA FORÇA INVENCÍVEL!

Grafite no túnel (Arquivo JRS)
Somos uma força! (Arquivo JRS)


           De acordo com a minha infância, no primeiro modelo de vida comunitária experimentado em família, na praia onde nasci e nas outras onde fui me criando, era natural uma referência de vida coletiva que estava em oposição, em muitos aspectos, ao modelo que hoje predomina entre nós, na sociedade atual, onde a ganância, o lucro a qualquer custo tem o maior valor, “merecem” ser idolatrados, são marcas da ideologia dominante.

                Hoje, o mercado e suas leis se tornaram absolutos em comparação à dignidade da vida, a solidariedade, o respeito à natureza. Os demais viventes da Terra são apenas figurantes nesse cenário, nem merecem a mínima consideração. Se a vida das pessoas pouco importa, a dos animais menos ainda! Por isso que, vez por outra, ao participar de ações que confrontam o sistema capitalista, neoliberal, assisto descasos por parte de muita gente, até de "caiçaras engajados", que escrevem "textos comprometidos com a cultura popular". Lógico que são uns coitados, que nem sequer têm consciência do tempo, da vida que “entregam” em benefício de poucos! Minha estimada amiga Egléia afirma que “estão idiotizados”. E é isto mesmo! “São uns cabeças-gordas, incapazes de um exercício mental para perceberem a alienação em que vivem!”. Pois é! Ah se fizessem um mínimo de ginástica mental!”.

                Meus parentes, que vou chamar aqui de “João e Maria” cresceram também no clima comunitário nosso, de caiçaras pobres dependendo do mar e da roça; se desenvolveram graças ao peixe com banana e farinha. Só um detalhe: bem jovens se tornaram “crentes”, seguiram outra religiosidade diferente da católica, aprendendo a doutrina onde a realização econômica (acumular dinheiro e bens, ser rico) é identificada como “graça de Deus”. E seus filhos foram educados assim: “netos de caiçaras, mas agora apenas ubatubenses”. Agora, prestando mais atenção ainda: estando eu e vários outras pessoas vestidos à caráter, com cartazes, faixas etc. numa manifestação contra o sistema social que desmerece a vida da maioria, causando e mantendo a vivência miserável, ao passar por uma rua avistei alguns rostos indiferentes à nossa movimentação, como se não houvesse justificativa para isso, sendo natural essa coletividade que aí está matando, esse modelo tão injusto. Dentre esses alienados, avistei uns filhos de “João e Maria”. Um deles, o caçula, bem vestido e bem nutrido, me perguntou: “Que baianice é essa?”. (Notaram o preconceito contra nordestinos?). Eu, sem nenhuma paciência em perder tempo com o “menino”, respondi: “Eu sou caiçara, com muito orgulho! Para receber uma resposta a essa pergunta, você tem de procurar um baiano!”. (Será que alguém vai perder tempo para uma pergunta idiota dessa?). E me fui achegando aos outros que faziam parte do meu grupo, que se manifestavam a favor da vida para todos.

                Agora, em tempo de pandemia, os “meninos de João e Maria” devem ter notado que as leis do mercado, “os ditames capitalistas”, não os acudirão, pois só importa o lucro a qualquer custo. A solidariedade, as medidas verdadeiramente coletivas que se danem! “O Estado que cuide disso!”. Uns ricaços já se expressam assim: “Pra que se preocupar, deixar de trabalhar e de ir à escola? Vai morrer alguns milhares de pessoas, mas a economia será salva. E além do mais, só os velhos morrerão”. E tem pobre defendendo tal absurdo, inclusive católicos, parentes meus!

Ah, povo-gado! Diz a história que, por volta do ano 45, o imperador Cláudio, constatando uma alternativa de modelo de sociedade perigoso que se apresentava, “expulsou de Roma os judeus que em nome de Chresto provocavam continuamente tumultos”. Nos dias de hoje, seriam “baianices” segundo a fala do “menino-gado”, cujos avós eram simplesmente caiçaras cristãos se assim parecer melhor. 



      

segunda-feira, 23 de março de 2020

O POVO DO ALTINO E O FESTIVAL XONDARO


Altino e esposa (Arquivo Casa de Reza)

Juventude guarani (Arquivo JRS)

A família cresce (Arquivo JRS)



                A Tekoá Jaeexaa Porã, a aldeia Boa Vista está em festa! Cinquenta anos de resistência Guarani Mbya: Altino e Marcos estão orgulhosos de seu povo! Eu me orgulho por tê-los em minhas raízes. A festa continua! Marcos Tupã explicou o que seria o Xondaro. Eu espero conseguir ser fiel ao máximo na sua explanação.

                “Xondaro é a arte dos guerreiros, dos nossos guerreiros. Envolve canto, dança e luta. Também na Casa de Reza se pratica o xondaro, pois envolve vigilância sobre a nossa saúde como um todo, de corpo e mente. A dança e o canto alivia o corpo: o corpo fica livre... a mente se liberta. É por isso que a primeira apresentação, o coral da juventude, é xondaro. Meninos e meninas vão se comprometendo com a aldeia, com o povo guarani, com a nossa garantia de continuar existindo, fazendo sentido nesta Terra. A segurança da aldeia depende dos praticantes dessa arte que vem dos tamoios , dos nossos ancestrais, e persevera até hoje. Daí a importância de ser iniciado desde criança, no coletivo.  Cuidamos deste jardim para que ele continue bonito. A dança e o canto são os primeiros movimentos do xondaro para os sentidos se desenvolverem melhor. Um xondaro está sempre atento, guarda o nosso povo. Assim, um Festival Xondaro demonstra a vitalidade do nosso povo, dá mais força ainda, né?

                Xondaro é aquecimento para resistir à opressão, ao desgaste a qual estamos  submetidos no cotidiano. Alimenta nossas forças e é também diversão. Nos impulsiona a combater todos aqueles que perseguem os indígenas e as lutas indigenistas”.

                Em seguida, dando prosseguimento ao evento, Marcos chamou os representantes das famílias para acertar alguns detalhes da luta, do Xondaro. É isso! Podemos dizer que Xondaro é uma arte marcial genuína dos guaranis! Porém, muito pouco conhecida. Pode ser que falte respeito à maioria das pessoas para importantes valores das culturas indígenas. Pode ser mesmo!

                Nosso desconhecimento, nossa discriminação, nossa apatia, nossa indiferença pelas causas indígenas pode estar como mais uma energia que oprime, bem o oposto de xondaro. 
Altino, o líder guarani (Arquivo JRS)

                Valeu, Altino! Valeu Povo do Altino! Que o Xondaro seja mais uma força contra a pandemia que assola o mundo!

                 No momento atual, pelo desgoverno que temos, podemos gritar como guarani mbya:

            Tereo juma Bolsonaro “ (Fora Bolsonaro).

sábado, 21 de março de 2020

O POVO DO ALTINO (III)

Primeira apresentação (Arquivo JRS)

Primeira apresentação (Arquivo JRS)


O povo de Altino é uma das minhas raízes! Os traços fisionômicos da Vó Matinha, do Tio Chico e de outros parentes não negam! Por isso a razão de me alimentar deste pensamento de respeitar e valorizar o ser índio, de estar com eles. Conforme um ditado, “o pensamento que você rega, cresce”.
Tio Chico e mano Mingo (Arquivo JRS)
Vó Martinha (Arquivo JRS)


Nisso que vou proseando, o espaço dos eventos se agita; as crianças do coral, ensaiado pelo Valdecir, fazem bonito. A plateia debaixo da tenda principal está repleta enquanto outros passam pelas barracas apreciando o lindo artesanato. Marcos Tupã esclarece a estrutura da aldeia, a distribuição das famílias e a importância do Festival Xondaro. Pelos corpos, pelas faces alegres, a pintura que contagia. De vez em quando avisto passando tranquilamente pioneiros e pioneiras. Parece que nada perturba esses parceiros e parceiras do valoroso Altino. Transparece viverem em outra dimensão. E lá se vão, naquela lentidão de seus passos, atravessando o mar dos mais jovens. Acho que estão em prece pelo momento em que vive a aldeia.
Velho guarani (Arquivo JRS)

Gerações diferentes, mesmo território (Arquivo JRS)

                Falei ao Marcos e ao Altino da importância de mais eventos assim, convidando mais gente, se dando a conhecer. É oportunidade que estreita os laços de solidariedade entre nós e fortalece a luta dos povos indígenas, da etnia guarani mbya: os pioneiros, que estavam aqui antes de qualquer povo europeu e que deram importantes contribuições ao nosso ser caiçara. Alguém duvida disso?

sexta-feira, 20 de março de 2020

O POVO DO ALTINO (II)

Cacique Altino e eu (Arquivo JRS)


          Na aldeia, após tomar o café num agradável ambiente, proseando com o Marcos Tupã, me desloquei para o terreiro, onde várias mesas estavam disponíveis para os que continuavam chegando para a primeira refeição do dia. Numa delas avistei o Zeferino, um exímio artesão da aldeia Bracuí,  e  Altino, o cacique, dois pioneiros da área, também responsáveis pelo crescimento do grupo guarani m’byá. Ali na mesa conversamos a respeito de muitas coisas, recordamos passagens engraçadas e questionadoras. Por exemplo: do enfrentamento, em meados da década de 1980, com o então prefeito Pedro Paulo, reivindicando apoio na luta pela demarcação das terras, melhorias na região norte do município, inclusive na estrada de acesso, em mais ônibus circulando até Camburi para facilitar a venda de artesanatos e palmitos. A imagem mostra o guerreiro Altino na defesa de causas importantes até hoje.
O aguerrido cacique e o prefeito (Arquivo Casa de Reza)

                “E o que dizer, Altino, das investidas de outras religiões, de religiosos querendo se estabelecer na aldeia, corromper a religiosidade dos indígenas?”. Na sua simplicidade de sempre, assim relatou o veterano cacique: “Muitos pastores já vieram aqui, tentaram nos convencer da religião deles. Chegam com uma conversa que querem ajudar, querem ouvir das nossas necessidades e coisa e tal. Um deles viu as condições da escola, disse que promoveria as melhorias, falou mais uma quantidade de coisas, mas foi embora e nunca mais voltou. Outro, do Rio de Janeiro, como quem não queria nada, logo foi me oferecendo cesta básica. Eu falei que, se quisesse dar essa ajuda, teria que ser para todas as famílias porque todas precisam. Só que, com respeito à religião, nós temos a nossa Casa de Reza, a nossa tradição, os nossos costumes. E vamos continuar sendo assim. Depois disso, ele não apareceu mais. Só os padres católicos, os poucos que vieram aqui nesses anos todos, nunca falaram nada de religião e se mostraram sempre como apoiadores das nossas lutas”.

Crianças e jovens guaranis (Arquivo JRS)

                E a nossa prosa foi longe, com constantes interferências de alguém participando ao cacique a respeito de algum procedimento, de visitantes fazendo questão de o cumprimentar etc. Também fiquei impressionado com vários jovens conhecidos trazendo suas crianças para me apresentarem! Em torno de nós, espalhados pelas sombras das árvores, nas várias mesas, adolescentes conversavam alegremente. Que satisfação em ver esses jovens! É o povo do Altino que cresce!

domingo, 15 de março de 2020

O POVO DO ALTINO (I)

Altino, Zeferino e Marcos, líderes guaranis (Arquivo JRS)
Crianças da tribo (Arquivo JRS)


                 Fui convidado para a festa de cinquenta anos do povo do Altino. Todos foram convidados por esse povo guarani, uma das nossas raízes caiçaras! Eu fui!

                 Bem cedo, quando o Sol espiava por cima da Ilha do Prumirim, a partir da BR 101, fui subindo o morro em direção à Tekoá Jaeexaa Porã, a aldeia Boa Vista, me recordando de quando esse valente cacique chegou junto com a abertura da estrada, contratado para derrubar árvores no traçado. Nas noites de sábados, lá estava ele e mais dois ou três na Praça da Matriz, vendendo seus artesanatos. “Índios, meu Deus!” Uns desprezavam, muitos olhavam com curiosidade, outros paravam para conversar e comprar alguma lembrança. Altino, jovem ainda, mantinha a sua altivez, zelava pelo seu grupo. Vinham de outra aldeia, do Sul de São Sebastião, continuavam a diáspora dos guaranis, ocupavam as bordas do litoral.

                Conforme fui subindo, me recordei da primeira vez que enfrentei a estrada para visitar o povo do Altino. Era o ano de 1981. É, já faz um tempinho! Voltando ao hoje, logo avistei a escola e alguns carros. Desci a trilha em direção à aldeia. Eu era o primeiro, lógico! Assim que passei a ponte, o Erick veio me saudar. No trajeto para o refeitório, acima da Casa de Reza, ele me contou de como foi o dia anterior. No local onde serviam o café da manhã, avistei Marcos Tupã, o filho do cacique. “Há quanto tempo!”. Ao seu lado me sentei, sendo logo servido. Uma equipe de homens, mulheres e crianças se viravam no trabalho, nos atendiam com muita satisfação. “Nossa, Marcos! Quanta gente!”. A maioria naquele momento era crianças e jovens. “É, pois é! Agora, Zé, somando os daqui e os de Itamambuca, já somos trezentos!”.  O povo do Altino cresceu bastante. “Que benção! Em 1981, vocês não passavam de dez pessoas!”. E a cada instante nós parávamos a prosa para cumprimentar os que adentravam. Era um entra e sai intenso. A cachorrada também precisava ser enxotada sempre. “Hoje tem mais gente ainda! Os parentes da aldeia de Bracuí vieram celebrar conosco. Ontem eles se apresentaram. Hoje é a nossa vez. Logo mais começa a apresentação do nosso coral”.

sexta-feira, 13 de março de 2020

TURBULÊNCIAS

Brechas no céu (Arquivo JRS)



            De vez em quando eu me lembro de cada uma !!! Desta vez me refiro a uma palavra que escutei pela primeira vez em prosa de serão, no jundu do Perequê-mirim, no começo da década de 1970. O Celino, carioca todo exaltado,  disse mais ou menos isto: “O mundo vive em turbulência, o Brasil se racha por todo lado, mas ai de nós se reclamarmos!”. A palavra, nova para mim, ficou martelando. “Turbulência? Que será isso?”. Naquele tempo, quando nenhum livro tínhamos em casa, não havia como resolver isso tão facilmente. Eu, vergonhoso como era, não perguntei para ninguém. Porém, o Agenor Barreto, assim que saiu do bar do Miguel no dia seguinte, berrou a quem quisesse ou não quisesse ouvir: “Esse carioca fala, fala, fala… Diz palavra complicada pensando que assim cresce em cima da gente, dessa caiçarada que nem escola teve. Quem ele pensa que é? A  Zelma, filha do Seo Pascoal já me explicou isso de turbulência. É perturbação, desordem; quando a gente fica inquieto”.  Assim eu aprendi uma nova palavra e seu significado. Concluí que não fui o único a ficar pensando naquela palavra. Ainda bem que o Agenor se lembrou de alguém que pudesse ajudar na falta de um dicionário!

            Hoje, ao ver os mais novos com tantos recursos,  constatando que muitos até fogem dos livros, penso que a única biblioteca da minha infância, comandada pela Dona Geni, ficava num espaço de, no máximo, vinte  metros quadrados, na parte de cima do Ateneu Ubatubense, com acesso pela rua Salvador Correia de Sá. Um chafariz em forma de cabeça de leão fazia um charme, na entrada. Na parte de baixo era o museu, a principal atração. Nessa biblioteca, onde a quase totalidade dos livros eram costurados e puídos de tanto uso, fui depois me inteirando conforme as inquietações  apareciam. Nem preciso dizer que o saudoso Celino voltou a falar mais vezes na tal de turbulência. Só aquela nossa biblioteca me fez entender o sentido que esse senhor queria que entendêssemos: as turbulências querem nos sacudir, nos impulsionar para que, nas  suas rachaduras, ousemos semear boas sementes, capazes de gerarem um mundo melhor.  Em pleno regime dos generais, estava certo o papai ao dizer de vez em quando: “Esse Celino é subversivo. Isto sim que ele é! Ele que tome cuidado”. 

               Ah! Como o Celino usaria a palavra turbulência hoje!!!

domingo, 1 de março de 2020

A SINA DOS CAÇÕES


Venâncio: raiz do meu ser arteiro. (Arquivo Má)

        Parece que foi ontem que encontrei o João de Souza e o Uirson proseando no jundu do Acaraú, mas já se passaram mais de quarenta anos. Por gostar de escutar as histórias dos mais velhos, ali me encostei também, adolescente ainda. Em seguida veio o Chico Preto e o Garné; tinham acabado de guardar a canoa e as tralhas no rancho, debaixo da amendoeira maior. Lembro-me tão bem! É como se estivesse vivendo aquele dia agora! O assunto era o cação bravo, um anequim da galha preta, capturado ali mesmo, na chegada das marolas nos sapinhauás. Foi cercado por um pano de rede pequeno, arranjado às pressas pelo Juraci e João de Paula. “Tinha mais de sete arrobas, no cálculo do Jaca”. Nossa! “Pois é, mas isso não é novidade! De tempos em tempos encalha nesse lugar, neste porto mesmo, um bichão desse”. Me espantei. “É mesmo!”, confirmou o João. “Tem um dizer dos antigos que vem da laje do Patieiro, é de onde esses bichos bravos vêm. É dali, onde o cheiro do arroto desses cações bravos nunca se acaba, que se desprende a cada dez, quinze anos, um dos bravos. Eles vêm morrer neste jundu. Papai mesmo conta que já ajudou a enterrar alguns deles. E tem mais: no dizer dos antigos, tudo isso acontece porque um índio, em tempo distante, foi rejeitado pela aldeia de Yperoig, entrou mar adentro, na direção daquela costeira onde o mato é só coqueiro pati, o Patieiro, naquele lugar de cação bravo, na laje do Patieiro. Conta a história que ele nunca mais voltou porque ganhou a admiração dos seres daquele trecho do mar, se tornando um deles. Virou cação também. Só que, ao ficar velho, deixou um dos filhos em seu lugar e veio implorar a acolhida dos homens, querendo morrer e ser enterrado por eles. E a sua descendência, que continua vivendo entre cações, vem repetindo isso. E assim, esse fato se repete de tempos em tempos. Lembram-se que, da outra vez, quem recolheu foi o velho Barroso e o Carrinho”? Nossa! É, pois é… Quantos de nós vai estar vivo quando o próximo cação vier encalhar neste lugar?”, suspirou o Uirson.


        Me recordei dessa prosa porque, dias atrás, na bica do Horto, conversando com o Benedito, gente do saudoso Clarismundo “Falante”, ele deu a seguinte notícia: “Zé, você soube do baita cação que o Ferrinho enredou na praia do Acaraú? Pesou setenta e seis quilos depois de limpo. Disse ele que, estava pescando perto do caisão quando avistou aquela galha por cima da água, vindo para a terra. Então ele a seguiu até quando teve certeza de que a sua rede dava conta do recado, aguentaria o bicho. Aquele mundaréu assustador morreu enrolado na rede. Todo mundo se admirou! Acho que poucos dali tinham visto cação assim, tão grande!”

        Interessante! É a sina dos cações do Patieiro!
  
   Yperoig significa água, baía dos tubarões, na língua dos tupinambás, os antigos donos desta Ubatuba.